Abordagem

O transtorno bipolar é caracterizado pela ocorrência de mania, ou de episódios de hipomania e depressão.[1] A hipomania e a mania são definidas como estados de humor elevados, expansivos ou irritáveis associados com comprometimento funcional; a duração mais longa e o nível mais alto de disfunção diferenciam a mania da hipomania.[1] De acordo com o DSM-5-TR, o diagnóstico de um episódio de mania requer a presença de um humor significativamente elevado ou irritável, com duração de uma semana ou mais, e associado a, pelo menos, 3 dos seguintes sintomas (4, se o humor for irritável): diminuição do sono, aumento da energia, aumento da atividade dirigida a objetivos ou agitação psicomotora, discurso pressionado, fuga de ideias, distração, impulsividade e grandiosidade. As mudanças de humor têm um nível de gravidade que causa comprometimento funcional significativo ou hospitalização psiquiátrica.[1] Embora os episódios de hipomania sejam mais leves do que os de mania e, normalmente, não justifiquem hospitalização, eles ainda podem estar associados a impactos negativos substanciais nas funcionalidades interpessoal, ocupacional e financeira. O transtorno bipolar I é caracterizado pela ocorrência de 1 ou mais episódios maníacos, e o transtorno bipolar II é caracterizado pela ocorrência de 1 ou mais episódios hipomaníacos e pelo menos um episódio depressivo.[1] Tanto indivíduos com transtorno bipolar I quanto aqueles com transtorno bipolar II geralmente vivenciam episódios depressivos maiores.

O diagnóstico do transtorno bipolar pode ser difícil, sendo comum o diagnóstico tardio, com uma duração média de cerca de 6 anos entre o início dos sintomas característicos do transtorno bipolar e o início do tratamento.[28]​ Embora o transtorno bipolar seja caracterizado por episódios maníacos e hipomaníacos, é mais provável que os pacientes procurem tratamento durante um episódio depressivo, sendo a depressão geralmente a apresentação inicial.[83] As pessoas podem apresentar inicialmente sintomas diagnósticos de transtorno depressivo maior e, só depois, desenvolver mania ou hipomania; embora os números na literatura publicada variem, as taxas de conversão diagnóstica de depressão para transtorno bipolar podem chegar a 30% em 3 anos.[17][18]

Além das apresentações comuns nas fases maníaca, hipomaníaca ou depressiva clássicas da doença, os indivíduos podem também apresentar outras variantes ou comorbidades complexas que dificultam o diagnóstico. Os episódios mistos são caracterizados pela coexistência de sintomas simultâneos de depressão e mania, e representam um estado de tratamento mais difícil.[1] Os sintomas mistos podem estar presentes continuamente ou se manifestarem esporadicamente.[5]​ O transtorno bipolar com ciclagem rápida é definido por 4 ou mais episódios de humor em um período de 12 meses, é mais resistente ao tratamento farmacológico e pode ser agravado pelos antidepressivos tradicionais.[1] Em algumas pessoas com transtorno bipolar, sintomas psicóticos graves e os transtornos do pensamento podem mimetizar esquizofrenia.

A maioria das pessoas com transtorno bipolar sofre com, pelo menos, uma comorbidade clínica que dificulta o diagnóstico e o tratamento. As comorbidades mais comuns incluem os transtornos por uso de substâncias, transtornos de ansiedade, transtornos de pânico, transtorno do deficit da atenção com hiperatividade (TDAH) ou sintomas de atenção quase limítrofes, e condições clínicas comuns como obesidade, diabetes, hipertensão, enxaqueca e síndrome do intestino irritável.[7][8][9][10][11][12][16]​​​ Transtornos de personalidade comórbidos, especialmente os tipos limítrofe e narcisista, são identificáveis em cerca de 20% a 50% das pessoas com transtorno bipolar.[13][14][15]​​​ Por causa da alta prevalência de transtornos psiquiátricos e por uso de substâncias comórbidos nas pessoas com transtorno bipolar, muitos especialistas defendem o rastreamento de rotina para quadros de saúde mental concomitantes e problemas com o uso de substâncias neste grupo de pacientes.[84]

Em mulheres que deram à luz recentemente (geralmente, 3-10 dias após o parto, mas pode também ocorrer depois de 4 semanas pós-parto), a primeira apresentação do transtorno bipolar pode ser uma psicose pós-parto.[1][6]​​​ Esta emergência psiquiátrica se apresenta como um episódio grave de mania, depressão, ou um episódio misto acompanhado de sintomas psicóticos ou psicose que ocorre sem um episódio de humor.[85]

Embora os transtornos bipolares tenham sido associados a criatividade, bem como à carreira, à educação e a outras realizações, a maioria das pessoas que vivem com transtorno bipolar tem comprometimentos relacionados à doença substanciais e uma redução do funcionamento psicossocial.[86][87]​​ O reconhecimento e o tratamento precoces são importantes. Um conjunto crescente de evidências sugere que a intervenção precoce está associada a desfechos melhores.[88][89]​​

História

Obtenha uma história completa atual e pregressa e corrobore as informações com os registros clínicos e entrevistas com familiares.[90] A história colateral é importante, pois os sintomas hipomaníacos e maníacos podem ser mais aparentes para quem é familiarizado com o comportamento habitual e com os níveis de funcionamento psicossocial da pessoa. Pergunte sobre sintomas vigentes e prévios de mania/hipomania segundo os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5-TR), e considere o impacto dos sintomas sobre a vida do paciente e o padrão dos episódios de humor ao longo da vida, para reduzir o risco de não se estabelecer o diagnóstico.[91]

Os sintomas depressivos são o complexo de sintomas iniciais mais comuns relatados pela maioria dos pacientes. Pode ser difícil diferenciar o transtorno bipolar do transtorno depressivo maior. Ao avaliar um paciente com episódio depressivo maior, por exemplo, na atenção primária, determine se existe alguma história anterior ou atual de mania, hipomania ou psicose, ou se há uma história familiar de mania ou psicose. Os outros indícios de que o diagnóstico pode ser bipolar em vez de transtorno depressivo maior incluem uma idade precoce de início (p. ex., menos de 20 anos), alta frequência de episódios de humor (p. ex., 3 ou mais episódios anteriores) e presença de comorbidades (p. ex., transtornos por uso de substâncias, transtornos de ansiedade, sintomas de deficit de atenção e hiperatividade). A ausência de resposta a antidepressivos ou o agravamento da ansiedade e/ou da instabilidade do humor após o tratamento com antidepressivos podem também sugerir um transtorno bipolar subjacente.[84]​ Como as pessoas com transtorno bipolar podem apresentar inicialmente sintomas depressivos, os médicos devem ficar atentos ao desenvolvimento posterior de sintomas maníacos ou hipomaníacos, o que exigiria a mudança do diagnóstico para transtorno bipolar.[17][18]

Aplique os critérios do DSM-5-TR para transtorno bipolar a todos os pacientes com diagnóstico de depressão, história familiar de transtorno bipolar ou história indicativa de episódios passados de aumento da energia e diminuição do sono. Pergunte sobre alguma história de humor elevado, expansivo ou irritável; aumento da energia; diminuição da necessidade de sono; aumento dos níveis de atividade; impulsividade; aumento da autoestima ou grandiosidade; discurso pressionado; e aumento da agitação psicomotora.[1] Esses sintomas podem ter sido observados pelo próprio paciente ou por outras pessoas que puderem ter observado uma mudança no estado de espírito ou no comportamento habitual do paciente. Vale ressaltar que, muitas vezes, as pessoas que apresentam um episódio maníaco não percebem que estão doentes ou que precisam de tratamento.[1]

Questionários de depressão

As opções incluem a avaliação de transtornos mentais na atenção primária (Primary Care Evaluation of Mental Disorders, PRIME-MD) e o questionário sobre a saúde do(a) paciente (Patient Health Questionnaire, PHQ-9) para adultos.[92][93] Rastreie todos os pacientes com depressão quanto ao transtorno bipolar antes de prescrever uma terapêutica antidepressiva.

  • PRIME-MD

    • Uma ferramenta útil para identificar os transtornos mentais em unidades básicas de saúde e de pesquisa.

  • PHQ-9

    • Questionário composto por 9 itens, administrado pelo próprio indivíduo, que reflete os critérios do DSM-IV-TR.

    • Esse questionário ainda é usado na prática clínica, embora o DSM-5-TR esteja disponível.

    • Ele classifica os sintomas vigentes em uma escala de 0 (nenhum sintoma) a 4 (sintomas diários) com base na duração.

  • PHQ-2

    • Uma versão mais resumida e validada do PHQ-9, com apenas 2 perguntas de rastreamento:[94]

      • "Nas 2 últimas semanas, você se sentiu desanimado, deprimido, sem esperança?"

      • "Nas últimas 2 semanas, você sentiu pouco interesse ou prazer em fazer as coisas?"

    • Uma resposta positiva a qualquer uma dessas perguntas justifica uma revisão aprofundada dos critérios do DSM, ou o uso de uma ferramenta diagnóstica equivalente.

Questionários de mania/hipomania

Rastreador Rápido do Humor [Rapid Mood Screener (RMS)]

  • O RMS é uma ferramenta rápida (composta por 6 perguntas) desenvolvida para rastrear sintomas maníacos/características de transtorno bipolar I em pacientes que apresentam episódio depressivo, por exemplo, na atenção primária.[95]

  • Se o paciente responder "sim" a, pelo menos, 4 perguntas, este será considerado um resultado positivo do rastreamento, sendo necessária uma avaliação adicional para determinar um possível diagnóstico de transtorno bipolar.

  • Um resultado positivo ao rastreamento está associado a uma sensibilidade de 88% e a uma especificidade de 80%.[95]

Questionário de Transtorno do Humor (Mood Disorder Questionnaire, MDQ) Mood Disorder Questionnaire (MDQ) Opens in new window

  • O MDQ é um instrumento de rastreamento do transtorno bipolar que foi validado em diversos tipos de populações. Este instrumento de autoavaliação inclui 13 perguntas sobre os sintomas da mania/hipomania com base nos critérios do DSM-IV-TR. Uma pontuação de pelo menos 7 respostas positivas para as 13 perguntas, assim como a confirmação do agrupamento de sintomas em um episódio que tenha causado sofrimento moderado ou consequências negativas, é um MDQ de rastreio positivo e tem sido correlacionado com o diagnóstico de transtorno bipolar.[96]

  • Esse questionário ainda é usado na prática clínica, embora o DSM-5 esteja disponível.

Índice de Bipolaridade (Bipolarity Index) Bipolarity Index Opens in new window

  • Este sistema recentemente descrito de avaliação do risco para transtorno bipolar considera 5 dimensões da bipolaridade: características do episódio (mania ou hipomania); idade de início; evolução da doença; resposta a medicamentos; história familiar. Cada dimensão é pontuada até um máximo de 20 pontos, para um escore total máximo de 100. Uma pontuação de corte de ≥50 no Índice de Bipolaridade corresponde a uma sensibilidade de 0.91 e uma especificidade de 0.90 para distinguir o transtorno bipolar dos transtornos não bipolares.[97]

Escala de Avaliação da Mania de Young (Young Mania Rating Scale, YMRS) Young Mania Rating Scale Opens in new window

  • Escala validada de intensidade dos sintomas, com as variações na pontuação geralmente associadas ao grau de intensidade. Contém 11 itens pontuados com base em relatos subjetivos de sintomas nas 48 horas anteriores e observações clínicas durante o andamento da entrevista.

  • É comumente usada para medir alterações nos sintomas maníacos em resposta ao tratamento.[98]

Exame

O exame do estado mental pode revelar os seguintes sintomas, que podem estar presentes em grau significativo durante um episódio maníaco ou hipomaníaco no transtorno bipolar:[1]

  • Autoestima inflada ou grandiosidade

  • Diminuição da necessidade de sono

  • Falando mais que o habitual ou sentindo pressão para continuar falando

  • Fuga-de-ideias ou experiência subjetiva de que os pensamentos estejam ocorrendo muito rapidamente

  • Distraibilidade

  • Aumento da atividade direcionada a um objetivo ou agitação psicomotora (atividade sem propósito, não direcionada a um objetivo)

  • O envolvimento excessivo em atividades prazerosas que tenham alto potencial de consequências danosas (por exemplo, envolvimento em compras descontroladas, indiscrições sexuais ou investimentos financeiros imprudentes).

Também de acordo com o DSM-5-TR, os sintomas de humor devem resultar em comprometimento funcional em, por exemplo, funções sociais ou profissionais. Faz-se uma distinção fundamental entre os episódios maníacos e hipomaníacos:[1]

  • Com os episódios maníacos, prejuízo acentuado ou sintomas que exijam hospitalização

  • Com episódios hipomaníacos, os critérios do DSM não requerem a ocorrência de prejuízo acentuado, porém, requerem que a perturbação do humor e alteração da capacidade funcional sejam perceptíveis a outras pessoas.

Os sintomas do humor não devem ser relacionados a um uso indevido de substâncias ou a um quadro clínico geral (por exemplo, hipertireoidismo).[1] Os pacientes com episódios do tipo maníaco ou do tipo hipomaníaco claramente causados pelo tratamento antidepressivo (por exemplo, medicamentos, terapia eletroconvulsiva, terapia com luz) ou outro medicamento prescrito que cause uma mania secundária (por exemplo, levodopa, corticosteroide, estimulante prescrito) ou uso de substâncias ilícitas ou não prescritas (por exemplo, estimulantes, cocaína) devem ser rigorosamente monitorados. Se os sintomas persistirem além do período fisiológico de efeito de uma substância, pode-se estabelecer o diagnóstico de transtorno bipolar.

Embora não haja achados físicos definitivos associados ao transtorno bipolar, o exame físico é recomendado para descartar condições que possam causar ou agravar transtornos do humor (por exemplo, hipotireoidismo ou hipertireoidismo, patologia do sistema nervoso central, como esclerose múltipla) e para avaliar eventuais doenças comórbidas comuns (por exemplo, obesidade, síndrome metabólica).[99]​ Considerando o aumento da carga cardiovascular em pessoas com transtorno bipolar, com respectiva redução da expectativa de vida de aproximadamente 10 a 20 anos, a integração precoce entre os serviços de saúde mental e física provavelmente será benéfica.[84]

Investigações

Realize exames laboratoriais simples para descartar outras causas dos sintomas de humor. Os exames iniciais incluem testes de função tireoidiana, hemograma completo, vitamina D e, possivelmente, uma análise toxicológica para avaliar evidências de uso indevido de substâncias, com base no quadro clínico individual. Solicite um perfil sérico de glicose e lipídios, especialmente por causa da ocorrência concomitante comum de disfunção metabólica nas pessoas com transtorno bipolar, e das complicações decorrentes de medicamentos estabilizadores do humor.[99]

Para a ocorrência de um novo episódio de mania ou apresentações atípicas, recomenda-se uma ressonância nuclear magnética do cérebro quando houver suspeita clínica de patologia do sistema nervoso central, como tumor cerebral ou esclerose múltipla; embora algumas evidências apontem para alterações inespecíficas no cérebro inteiro e no volume regional do cérebro em pacientes com transtorno bipolar, esses achados não são diagnósticos e, portanto, não devem alterar o manejo clínico.[53]

Os distúrbios do sono são uma característica comum dos transtornos bipolares. Se houver suspeita de apneia obstrutiva do sono, que é frequentemente comórbida com obesidade, pode-se recomendar um estudo do sono. Uma revisão sistemática e metanálise de 13 estudos que usaram actigrafia para detectar alterações na atividade e nos padrões de sono em pessoas com transtorno bipolar, em comparação com controles saudáveis, mostrou redução na atividade média e um padrão de sono alterado no grupo de pacientes bipolares. Outras análises sugeriram que esses resultados podem significar a possibilidade de identificação de um transtorno bipolar subjacente a episódios de mania e depressão, e fases de eutimia.[100]

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