Abordagem

Reconhecimento e diagnóstico precoces são fatores-chave no estabelecimento de um plano para o manejo ideal da insuficiência hepática aguda (IHA). Uma anamnese minuciosa e uma análise clínica detalhada são fundamentais para se descobrir a potencial etiologia da IHA. Terapias específicas para cada etiologia devem ser iniciadas o quanto antes, e o monitoramento com cuidados intensivos é obrigatório na presença de encefalopatia hepática.

Todos os pacientes com IHA devem ser considerados possíveis candidatos ao transplante do fígado, e medidas para transportar o paciente para um centro de transplantes hepáticos devem ser estudadas logo no início da evolução hospitalar.[48][51]

Manejo com cuidados intensivos

Pacientes com IHA com encefalopatia hepática de grau 2 ou superior devem ser internados em unidade de terapia intensiva (UTI).[4]​ A história natural da IHA pode ser caracterizada por uma rápida deterioração no estado neurológico e há um alto risco de complicações, incluindo sepse e edema cerebral, instabilidade hemodinâmica e insuficiência renal. O monitoramento em UTI é essencial para fornecer o cuidado ideal ao paciente e prevenir e tratar complicações conhecidas da IHA.

O estado neurológico deve ser monitorado rigorosa e regularmente para avaliar o desenvolvimento de encefalopatia hepática grau 3 a 4, que está associada a um maior risco de edema cerebral e hipertensão intracraniana.

  • Grau 1: atenção normal sutilmente prejudicada, alterações do sono, tempo de atenção encurtado, comprometimento da adição ou subtração, humor ou ansiedade elevados, orientados no tempo e no espaço.

  • Grau 2: letargia ou apatia, desorientação em relação ao tempo, alteração de personalidade óbvia, comportamento inadequado, dispraxia, asterixis (flapping).

  • Grau 3: sonolência a semiestupor, com resposta clínica a estímulos vocais, confusão acentuada, desorientação aguda (desorientado no tempo e no espaço), comportamento bizarro. Os achados físicos podem incluir hiper-reflexia, nistagmo, clônus e rigidez.

  • Grau 4: coma.

Devem ser realizados esforços para minimizar a ocorrência de aumentos na pressão intracraniana em pacientes com encefalopatia. A cabeceira do leito do paciente deve ser elevada para aproximadamente 30 graus, e estímulos do meio ao seu redor devem ser reduzidos ao mínimo.[51] Quando a encefalopatia em grau avançado se desenvolver (graus 3 ou 4), deve-se realizar intubação traqueal para proteção das vias aéreas.[4]

Propofol e fentanila são os agentes de escolha para analgesia e sedação, por causa de suas meias-vidas curtas. A fluidoterapia intravenosa deve ser administrada com cuidado para prevenir a depleção ou sobrecarga de volume; além disso, o monitoramento da pressão venosa central e da artéria pulmonar, bem como a implementação de terapia renal substitutiva, devem ser considerados no início para garantir o manejo hídrico ideal, sobretudo se há evidência de disfunção renal ou circulatória.[8][100]


Intubação traqueal - Vídeo de demonstração
Intubação traqueal - Vídeo de demonstração

Como inserir um tubo traqueal em um adulto usando um laringoscópio.



Ventilação com ressuscitador manual ("bolsa-válvula-máscara") - Vídeo de demonstração
Ventilação com ressuscitador manual ("bolsa-válvula-máscara") - Vídeo de demonstração

Como usar um aparato reanimador manual autoinflável para fornecer suporte ventilatório a adultos. Vídeo de demonstração da técnica em duas pessoas.


A nutrição enteral geralmente é uma preocupação no contexto da encefalopatia, no qual o paciente é incapaz de obter nutrição adequada em decorrência de seu estado mental alterado. Portanto, deve-se fornecer suporte nutricional enteral com nutrição rica em calorias logo no início da evolução hospitalar.

Os níveis glicêmicos devem ser monitorados a cada 1 a 2 horas com tiras para dedos a fim de se verificar a presença de hipoglicemia. A hipoglicemia deve ser corrigida com infusão intravenosa de glicose, com uma meta glicêmica de 140 mg/dL.[51] Os níveis de eletrólitos séricos, incluindo sódio, fosfato, potássio e magnésio, devem ser monitorados pelo menos duas vezes ao dia e corrigidos agressivamente.

Outros exames laboratoriais de rotina, como atividade da coagulação, contagem de células sanguíneas e enzimas hepáticas, devem ser monitorados rigorosamente em intervalos regulares. Culturas de sangue, urina e escarro devem ser obtidas periodicamente para vigilância, dado o risco elevado de infecção bacteriana ou fúngica. Não foram encontradas evidências de que o uso de antimicrobianos profiláticos afetasse o desfecho clínico.[4][8][104]

Inibidores da bomba de prótons ou antagonistas H2 são administrados como profilaxia para hemorragia digestiva.[8]

A lactulose e a rifaximina não são usadas no tratamento da encefalopatia hepática na IHA.[51]

Superdosagem de paracetamol ou encefalopatia leve a moderada (grau 1 ou 2)

A superdosagem de paracetamol é a causa mais comum de IHA nos EUA e na Europa Ocidental.[7] Determinar se o paracetamol é o responsável pela IHA em um caso individual é o fator mais importante a ser abordado no momento da apresentação.[105] A superdosagem de paracetamol está associada a depleção das reservas hepáticas de glutationa e acúmulo de um intermediário tóxico chamado N-acetil-p-benzoquinonaimina, que causa lesão direta nos hepatócitos. A restauração da síntese de glutationa dentro dos hepatócitos depende da cisteína, que pode ser administrada na forma de acetilcisteína.[23]

Em pacientes com superdosagem de paracetamol nos quais se sabe que a ingestão ocorreu dentro de 4 horas, pode ser administrada uma dose única de carvão ativado.[4]​ A terapia com acetilcisteína deve ser administrada em todos os casos de superdosagem de paracetamol, independentemente da dosagem ou do horário de ingestão do paracetamol.[30] A terapia com acetilcisteína deve ser mantida até se chegar a desfechos como melhora da função hepática nos parâmetros clínicos e laboratoriais.[23][100]​ Consulte superdosagem de paracetamol (Abordagem de tratamento).

Um ensaio clínico prospectivo randomizado e controlado por placebo em pacientes com IHA não causada por paracetamol relatou um benefício significativo de sobrevida em pacientes com encefalopatia hepática grau 1 ou 2 que receberam acetilcisteína em comparação aos que receberam placebo.[106] Consequentemente, a terapia com acetilcisteína é recomendada para pacientes com IHA que apresentem encefalopatia hepática leve a moderada, mesmo que não tenham ingerido paracetamol.[105] A acetilcisteína pode melhorar os desfechos em IHA não causada por paracetamol por meio de mecanismos envolvendo a redução na expressão de citocinas pró-inflamatórias, como a interleucina (IL)-17, e necrose de hepatócitos diminuída.[107][108]​ Com base nas evidências disponíveis, o American College of Gastroenterology recomenda o uso de acetilcisteína intravenosa em pacientes com IHA sem paracetamol.[4]

Outras terapias específicas da doença

Devem ser consideradas após ter sido estabelecida a etiologia da IHA.[8][100] Algumas possíveis etiologias da IHA contam com terapias específicas que podem ter um impacto nos desfechos clínicos, incluindo aciclovir intravenoso para hepatite por herpes simples e parto oportuno do feto em casos de esteatose hepática aguda da gravidez ou síndrome HELLP (hemólise, enzimas hepáticas elevadas e plaquetopenia).

Em caso de suspeita de intoxicação pelo cogumelo Amanita phalloides, deve ser realizada lavagem gástrica e devem ser administrados carvão ativado, ressuscitação fluídica intravenosa, penicilina G intravenosa e acetilcisteína.[4]​ Entre em contato com o centro de controle de intoxicações para obter orientação. A terapia com silimarina (cardo-mariano) foi descrita em casos de intoxicação por Amanita phalloides, mas não existem evidências conclusivas que embasem seu uso.

A terapia antiviral para hepatite B aguda também pode ser benéfica e deve ser considerada em casos de IHA, embora os estudos sobre essa terapia sejam limitados.[109] [ Cochrane Clinical Answers logo ] Entecavir ou tenofovir são os agentes de escolha. Atualmente, não há nenhuma terapia específica recomendada para hepatite A aguda.

Pacientes que apresentam síndrome de Budd-Chiari aguda devem ser considerados para início imediato da terapia de anticoagulação. Angioplastia da veia hepática com colocação de endoprótese ou anastomose portossistêmica intra-hepática transjugular devem ser consideradas em pacientes que não respondem à anticoagulação.[4]​ No entanto, alguns pacientes acabarão necessitando de transplante de fígado. Uma série de casos multicêntricos envolvendo pacientes com IHA causada pela síndrome de Budd-Chiari observou que a maioria estava associada a um estado hipercoagulável e que o início precoce da terapia anticoagulante pode estar associado à melhora da sobrevida.[110]

Por outro lado, algumas causas de IHA estão associadas a desfechos relativamente desfavoráveis apesar da administração de terapias específicas. A doença de Wilson aguda com IHA está associada a altas taxas de mortalidade mesmo quando adotadas medidas para reduzir os níveis de cobre sérico, incluindo plasmaférese, hemofiltração venovenosa contínua, diálise de albumina ou plasmaférese. A terapia de quelação para doença de Wilson no contexto da IHA é geralmente ineficaz e pode estar associada a hipersensibilidade, não sendo portanto recomendada.

Nas apresentações agudas da hepatite autoimune que resultam em IHA, corticosteroides podem trazer algum benefício, uma vez que há dados sugerindo que pacientes tratados com corticosteroides podem apresentar uma maior taxa de recuperação espontânea.[7] Entretanto, os dados também não apresentaram benefício significativo de sobrevida associado ao uso de corticosteroide e sugerem que seu uso em pacientes com IHA e escores do Modelo para doença hepática terminal (Model End-Stage Liver Disease, MELD) podem ocasionar uma potencialização do aumento do risco de mortalidade.[111] Sem dados prospectivos claros, o benefício em potencial de corticosteroides no contexto da IHA são incertos.

Transplante de fígado

O transplante de fígado deve ser considerado em todos os pacientes com IHA.[64] Os escores prognósticos são úteis para identificar pacientes com alto risco de mortalidade, mas têm limitações e não devem ser utilizados para selecionar pacientes para transplante.[8] Portanto, devem-se adotar, logo no início da evolução hospitalar, medidas para preparar a transferência do paciente com IHA para um centro de transplantes hepáticos próximo. O transplante de fígado causa um grande impacto na sobrevida do paciente com IHA. De acordo com alguns relatos, pacientes com IHA submetidos a transplante do fígado apresentam uma taxa global de sobrevida de 5 anos de 93%.[112]

Deve-se suspeitar de doença de Wilson em qualquer paciente que apresentar IHA com anemia hemolítica não imune, incluindo hemólise intravascular aguda. Esses pacientes devem ser avaliados para transplante de fígado com urgência.[43]

Os pacientes com IHA que preenchem os critérios da lista de transplante, de acordo com a United Network for Organ Sharing (UNOS), podem ser incluídos na categoria 1A e ter prioridade na lista de alocação de fígados para transplante. Os critérios para ser classificado como 1A pela UNOS incluem:

  • Idade >18 anos de idade, expectativa de vida sem um transplante do fígado <7 dias, aparecimento da encefalopatia em até 8 semanas após os primeiros sintomas da doença hepática, ausência de doença hepática preexistente, internação em unidade de terapia intensiva e 1 dos seguintes critérios:

  • Dependência de ventilação mecânica, necessidade de terapia renal substitutiva ou razão normalizada internacional (INR) >2.0.

Pacientes com doença de Wilson aguda fulminante também podem ser classificados como 1A.

As contraindicações ao transplante de fígado para a IHA incluem doença cardíaca ou pulmonar grave, AIDS, neoplasia maligna extra-hepática, carcinoma hepatocelular metastático, colangiocarcinoma intra-hepático, sepse não controlada, complicações neurológicas irreversíveis (por exemplo, morte cerebral, hemorragia intracerebral, pressão intracraniana elevada intratável), abuso de álcool ou de substâncias ilícitas em curso e falta de um sistema de apoio social adequado.[48]


Inserção de cateter venoso central – Vídeo de demonstração
Inserção de cateter venoso central – Vídeo de demonstração

Inserção guiada por ultrassom de um cateter venoso central (CVC) não tunelizado na veia jugular interna direita, usando a técnica de inserção de Seldinger.


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