Abordagem
A IHA pode ser confundida com cirrose agudamente descompensada ou insuficiência hepática crônica agudizada. Uma etapa crítica no estabelecimento do diagnóstico de IHA é distinguir essa condição da insuficiência hepática crônica (cirrose) e da insuficiência hepática crônica agudizada.[4] A cirrose é uma condição altamente prevalente e a cirrose descompensada pode apresentar complicações como ascite, hemorragia por varizes e encefalopatia hepática. A insuficiência hepática crônica agudizada manifesta-se com cirrose agudamente descompensada, tem uma mortalidade em curto prazo muito elevada (28 dias) e é observada principalmente em pacientes com cirrose no contexto de lesão hepática sobreposta, causando inflamação sistêmica profunda. A IHA pode ser distinguida da cirrose descompensada ou da insuficiência hepática crônica agudizada com base em exames laboratoriais e de imagem. Esta distinção é crítica, pois o manejo de cada condição é significativamente diferente.[4]
O diagnóstico de IHA é estabelecido por meio de realização de uma anamnese minuciosa, incluindo: cronologia dos eventos anteriores à manifestação dos sintomas; exame físico; exames laboratoriais. Também deve ser realizado um exame de imagem do fígado se houver suspeita de lesão hepática induzida por medicamento.[30] O reconhecimento, diagnóstico e prognóstico precoces são fundamentais para estabelecer uma estratégia ideal de tratamento em pacientes com IHA. Uma vez estabelecido o diagnóstico, deve-se realizar um contato inicial com um centro de transplante de fígado, visto que todos os pacientes com IHA devem ser considerados possíveis candidatos ao transplante do fígado.[48] O transplante de fígado cadavérico urgente é o padrão de cuidados para pacientes com IHA.
Anamnese e achados físicos
A IHA é definida pelo aparecimento de icterícia, coagulopatia (razão normalizada internacional [INR] >1.5) e encefalopatia hepática em pacientes sem história de doença hepática.[1][2][3][4] A avaliação de potenciais riscos de exposição, como ingestão de medicamentos e suplementos alimentares ou fitoterápicos nos últimos 180 dias e uso indevido de bebidas alcoólicas ou de substâncias, é essencial, assim como o estabelecimento do curso temporal da doença.[4][30] A exposição a hepatotoxinas específicas, como ocorre pela ingestão de cogumelos Amanita phalloides, talvez requeira estratégias de manejo e tratamento específicos.
Idade >40 anos, sexo feminino, desnutrição ou jejum, gravidez, hepatite B crônica e o uso de várias preparações para dor crônica contendo paracetamol também devem ser considerados importantes fatores de risco.
A avaliação do curso temporal da doença de acordo com o intervalo entre o aparecimento da icterícia e o desenvolvimento da encefalopatia permite classificar a IHA em categorias com base nas apresentações hiperaguda (quando ocorre em até 7 dias), aguda (entre 8 e 21 dias) ou subaguda (entre 22 dias e 26 semanas).[4] Pacientes com um curso temporal hiperagudo da doença têm maior probabilidade de apresentar resolução espontânea, mas também correm maior risco de evoluir para edema cerebral e hipertensão intracraniana.[4]
A etiologia da IHA é estabelecida não apenas pela anamnese e por ensaios sorológicos mas também pela exclusão de causas alternativas, incluindo apresentações agudas de doenças hepáticas crônicas. Doenças hepáticas crônicas como hepatite autoimune e hepatite B crônica podem se manifestar como exacerbações agudas apresentando as características clínicas de IHA. Dor abdominal, náuseas, vômitos e mal-estar são sintomas comuns, enquanto sensibilidade no quadrante superior direito pode ser menos frequente.
A hepatomegalia pode estar presente no cenário de hepatite viral aguda, insuficiência cardíaca congestiva com congestão hepática, síndrome de Budd-Chiari e neoplasias malignas infiltrantes. Achados do exame físico podem fornecer indicações que sugerem a presença de uma doença hepática crônica subjacente, como esplenomegalia, aranhas vasculares, eritema palmar e ascite.
Deve-se enfatizar a necessidade de determinar a etiologia da IHA, visto que ela é um importante indicador prognóstico e orientará o manejo futuro em relação a terapias específicas para cada etiologia.[4]
Avaliação clínica da encefalopatia hepática
Encefalopatia hepática é uma das características que definem a IHA. A encefalopatia hepática abrange um espectro de alterações neurológicas e psiquiátricas, e os sintomas iniciais podem ser sutis. As diretrizes da American Association for the Study of Liver Diseases e da European Association for the Study of the Liver recomendam o uso dos Critérios West Haven para classificar a encefalopatia hepática.[49]
Grau 1: atenção normal sutilmente prejudicada, alterações do sono, tempo de atenção encurtado, comprometimento da adição ou subtração, humor ou ansiedade elevados, orientados no tempo e no espaço.
Grau 2: letargia ou apatia, desorientação em relação ao tempo, alteração de personalidade óbvia, comportamento inadequado, dispraxia, asterixis (flapping).
Grau 3: sonolência a semiestupor, com resposta clínica a estímulos vocais, confusão acentuada, desorientação aguda (desorientado no tempo e no espaço), comportamento bizarro. Os achados físicos podem incluir hiper-reflexia, nistagmo, clônus e rigidez.
Grau 4: coma.
O grau de encefalopatia no momento da apresentação é um fator importante relacionado ao prognóstico. Além disso, alterações subsequentes na gravidade da encefalopatia hepática têm um papel importante nas decisões de manejo durante a hospitalização por IHA, visto que graus avançados (3 a 4) estão associados a complicações graves como edema cerebral e hipertensão intracraniana.
Um exame físico minucioso é um componente importante na avaliação inicial. Tal exame deve incluir um exame neurológico para caracterizar o grau de encefalopatia hepática, sobretudo nos casos de gravidade elevada, para avaliar evidências de hipertensão intracraniana. O exame deve incluir uma avaliação da orientação do paciente em relação ao tempo e ao espaço. Os pacientes com encefalopatia hepática de grau 2 são desorientados em relação ao tempo, e os pacientes com encefalopatia hepática de grau 3 são desorientados em relação ao tempo e ao espaço.[49] Os pacientes podem demonstrar asterixis (flapping), um movimento de agitação das mãos que é provocado pela extensão dos braços, flexão dorsal do punho e afastamento dos dedos. É uma forma de mioclonia negativa, onde uma breve perda de tônus nos músculos agonistas é seguida por um empurrão compensatório nos músculos antagonistas.[50] Os pacientes podem desenvolver sinais motores, como hipertonia, hiper-reflexia e um sinal de Babinski positivo. Sinais extrapiramidais como bradicinesia, fala lenta e monótona e discinesia são comuns.[49] Achados do exame físico associados a edema cerebral e hipertensão intracraniana incluem reflexos pupilares anormais, rigidez muscular e postura descerebrada em estágios avançados. Sinais iniciais de hipertensão intracraniana (por exemplo, cefaleia, distúrbio visual) não são observados, pois o edema cerebral ocorre apenas após o desenvolvimento da encefalopatia hepática de grau 3/4 (coma).[51]
Pode-se realizar uma avaliação diagnóstica mais especializada, com base na suspeita de causas específicas para a IHA, como no caso de um exame oftalmológico com lâmpada de fenda para avaliar a presença de anéis de Kayser-Fleischer em casos agudos da doença de Wilson. A hemólise intravascular não imune grave é uma característica importante da apresentação clássica da IHA devido à doença de Wilson.[43]
Exames diagnósticos
A etiologia da IHA é estabelecida primariamente por anamnese, ensaios sorológicos, exames laboratoriais e de imagem. Exames laboratoriais iniciais não apenas fornecem informações prognósticas valiosas como também identificam precocemente o desenvolvimento de complicações associadas à IHA.
Os testes diagnósticos iniciais devem incluir:
Exames de sangue: tempo de protrombina e razão normalizada internacional (INR) e testes da função hepática, sorologias virais, marcadores autoimunes, rastreamento toxicológico e parâmetros para avaliar o estado clínico geral, como hematologia, equilíbrio ácido-básico e disfunção renal.[4] Os níveis de lipase e amilase sérica devem ser avaliados para descartar pancreatite, que pode se desenvolver como uma complicação da IHA; no entanto, também pode haver o desenvolvimento de hiperamilasemia como resultado de disfunção renal e insuficiência de múltiplos órgãos.[51][52][53][54][55] Embora a hiperamilasemia esteja associada com o aumento do risco de mortalidade, ela não é um preditor de mortalidade independente na IHA.[55]
Todos os pacientes de risco do sexo feminino em idade fértil devem realizar um teste de gravidez.[4]
Os níveis séricos de paracetamol devem ser medidos em todos os pacientes.[4] Os níveis de paracetamol podem ser úteis quando elevados; no entanto, baixos níveis de paracetamol não descartam uma possível hepatotoxicidade do paracetamol, e casos suspeitos devem ser tratados adequadamente. Mais de 50% dos pacientes com lesão hepática aguda ou IHA atribuída ao paracetamol podem ter níveis indetectáveis de níveis plasmáticos de paracetamol.[56]
Testes iniciais de imagem devem incluir radiografia torácica, para confirmar uma possível pneumonia por aspiração ou para descartar outras anormalidades pulmonares, e Doppler abdominal para avaliar a ocorrência de trombose dos vasos hepáticos associada à síndrome de Budd-Chiari.[4] O exame de imagem do fígado também é adequado se houver suspeita de lesão hepática induzida por medicamentos, para avaliar se há etiologia concorrente. A ultrassonografia abdominal é usada como primeira linha para avaliar se há cirrose, obstrução biliar ou presença de outras alterações hepáticas focais. A colangiografia por TC e RM também pode ser útil para avaliar se há presença de anormalidades vasculares ou doença pancreatobiliar.[30]
Testes diagnósticos adicionais podem incluir:
Os estudos de reação em cadeia da polimerase para DNA do vírus da hepatite B, hepatite C e vírus do herpes simples podem estabelecer o diagnóstico antes que os estudos sorológicos se tornem positivos.
Teste de HIV.
Ceruloplasmina sérica, níveis séricos e hepáticos de cobre, excreção urinária de cobre de 24 horas e avaliação oftalmológica com lâmpada de fenda para a presença de anéis de Kayser-Fleischer, se houver suspeita da doença de Wilson.[8]
Teste de Coombs: na presença de hemólise, um teste de Coombs negativo pode estabelecer a diferenciação entre doença de Wilson e hemólise autoimune, que é geralmente Coombs positiva.
Os níveis arteriais de amônia são caracteristicamente elevados se houver encefalopatia hepática, embora seja um teste inespecífico. Níveis altos podem predizer um risco aumentado de desenvolver hipertensão intracraniana.
Uma tomografia computadorizada do crânio é útil para uma avaliação mais aprofundada do edema cerebral ou de outra patologia subjacente em casos de encefalopatia avançada.[4]
Um Doppler transcraniano, com estimativa de pressão de perfusão cerebral e pressão intracraniana, pode ser considerado em pacientes com encefalopatia hepática de grau 3 a 4 que apresentam risco de hipertensão intracraniana ou para aqueles nos quais o desenvolvimento de edema cerebral é esperado.[57]
Culturas de vigilância: devem ser obtidas culturas de sangue, urina e escarro em intervalos regulares se a encefalopatia progredir para um grau avançado.
Devem ser realizados exames de urinálise e sódio na urina, se houver disfunção renal.
Biópsia hepática: embora uma biópsia hepática possa fornecer informações adicionais que sugiram potencias etiologias da IHA em casos indeterminados, esse não é um exame necessário para confirmar o diagnóstico, e normalmente não tem impacto no manejo clínico, no desfecho ou na avaliação do prognóstico. Por esses motivos, geralmente não são realizadas biópsias hepáticas no contexto da IHA.[58] Uma exceção a esse fato pode incluir circunstâncias em que houver suspeita de malignidade infiltrante, como linfoma ou doença hepática metastática.[4][59] Uma biópsia hepática também pode ser útil no diagnóstico de condições como suspeita de hepatite autoimune ou hepatite aguda por vírus do herpes simples.[4][60][61] Se houver suspeita de lesão hepática induzida por medicamentos, a biópsia hepática pode ajudar a identificar a substância hepatotóxica, com base no(s) padrão(ões) histológico(s), ou determinar o mecanismo da lesão, e também pode fornecer informações prognósticas úteis.[30] Se uma biópsia hepática for considerada, uma abordagem transjugular é preferível, dado o aumento do risco de sangramento associado a coagulopatia durante a IHA.[4] Devem ser realizadas a tipagem e a triagem de unidades sanguíneas para o caso de ser necessária uma transfusão.
Avaliação prognóstica
Com base nos achados clínicos na apresentação, em exames laboratoriais iniciais, e na etiologia da IHA, pode-se realizar uma avaliação quanto à gravidade e ao prognóstico associados à evolução da IHA.
A etiologia é um fator essencial na avaliação do prognóstico.[4] Hepatotoxicidade do paracetamol é mais comumente associada à apresentação hiperaguda e a uma maior taxa de recuperação espontânea, ao contrário de reações idiossincráticas ao medicamento, que podem ter uma evolução subaguda e apresentar um prognóstico menos favorável.[6][13] A hepatite A aguda e a hepatite isquêmica também têm um prognóstico relativamente favorável. Hepatite B aguda, hepatite autoimune, doença de Wilson, síndrome de Budd-Chiari e causas indeterminadas indicam um prognóstico mais desfavorável.[8]
A encefalopatia hepática de grau 3 ou 4 na internação hospitalar indica um prognóstico mais desfavorável.
Exames laboratoriais, inclusive INR, bilirrubina, creatinina e logaritmo negativo da atividade de íons hidrogênio são componentes de ferramentas prognósticas como os critérios do King's College. Um nível baixo de fator V na presença de encefalopatia hepática pode ser preditivo de mortalidade, sobretudo em pacientes com IHA secundária a hepatite viral.[62] Em um estudo de coorte prospectivo realizado com pacientes com IHA, observou-se que os limiares ideais de fator V preditivos de sobrevida foram >10.5% do normal na IHA associada a paracetamol e de >22% do normal na IHA não associada a paracetamol.[63]
Vários critérios prognósticos já foram propostos e validados no contexto da IHA. Esses critérios podem ser fundamentais na identificação de pacientes com risco elevado de mortalidade. A ferramenta prognóstica mais amplamente aceita são os critérios do King's College.[64] Em geral, esses critérios são fundamentais na seleção de pacientes com alto risco de mortalidade por IHA. No entanto, tais critérios apresentam limitações; portanto, a American Association for the Study of Liver Diseases não recomenda que os profissionais da saúde confiem em escores prognósticos para determinar se um paciente é candidato a transplante do fígado.[8]
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