Abordagem

As doenças do armazenamento lisossomal (DALs) são um grupo altamente diversificado de doenças. O tratamento inicial é geral e de suporte. Uma abordagem multidisciplinar é essencial, pois essas doenças são distúrbios multissistêmicos; muitos especialistas diferentes podem ser envolvidos no cuidado dos pacientes individuais. É recomendável o envolvimento precoce de centros especializados, e os cuidados devem ser coordenados pelo centro. O tratamento específico não está disponível para muitos pacientes (por exemplo, doença de Gaucher neonatal do tipo 2), e a paliação pode ser o melhor caminho.

A terapia de reposição enzimática (TRE) foi estabelecida para várias DALs.[3] Na Europa, a TRE pode ser administrada na própria casa do paciente para distúrbios de Gaucher, Fabry, Pompe, mucopolissacaridose (MPS) I e MPS II.

Fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, especialistas em cuidados clínicos, psicólogos, professores e assistentes sociais são todos membros apropriados da equipe multidisciplinar ampliada.

Doenças de Gaucher

Doença de Gaucher do tipo 1

  • O atraso no diagnóstico continua sendo uma preocupação, e há uma necessidade de aumentar a conscientização entre médicos generalistas, pediatras e hematologistas.[98]

  • Pessoas levemente afetadas, por exemplo, com hemoglobina normal, plaquetas >100 x 10⁹/L, aumento mínimo do fígado e baço, sem lesões ósseas na ressonância nuclear magnética (RNM), justificam observação, mas podem não precisar de tratamento específico. Pacientes assintomáticos não exigem tratamento.[99]

  • A esplenectomia deve ser evitada; ela melhora as contagens sanguíneas, mas predispõe à doença óssea mais grave em longo prazo e à hipertensão pulmonar.[100]

  • Pode haver doença esquelética que causa dor óssea ou fratura; pode ser necessária cirurgia ortopédica para tratar as articulações afetadas.

  • O aumento da incidência de neoplasias hematológicas em adultos deve ser monitorado quanto a: especialmente mieloma, mas também outras doenças, como linfoma não Hodgkin.[100]

  • Doença de Parkinson e cirrose hepática são outras complicações em longo prazo que requerem monitoramento e tratamento.

  • Anormalidades endócrinas e metabólicas coexistentes, incluindo resistência à insulina, deficiência de hormônio do crescimento e insuficiência de vitamina D, devem ser investigadas e tratadas.[101]

  • TRE com imiglucerase, velaglucerase alfa e taliglucerase alfa está disponível.[102][103][104][105]

  • A TRE deve ser considerada em todas as crianças sintomáticas com doença de Gaucher, e nos adultos com reduções significativas no hemograma (por exemplo, nível de hemoglobina <100 g/L [10 g/dL], plaquetas <100 x 10⁹/L), aumento significativo de órgãos (por exemplo, tamanho do baço >10x o normal), presença de doença esquelética demonstrada na RNM e/ou qualquer outro dano a órgãos (por exemplo, evidência de lesão no pulmão).[99][100]

  • A TRE tem benefício comprovado na melhora de anormalidades hematológicas e dores ósseas, e na redução do tamanho do fígado e baço. Densidade óssea, função pulmonar e qualidade de vida também melhoram.[106][107][108]

  • Foi demonstrado que a terapia de redução de substrato (TRS) melhora a anemia, a trombocitopenia, o aumento do fígado/baço e a osteoporose.[109] A TRS (por exemplo, miglustate, eleglustate) é uma terapia oral usada em pacientes que não toleram a TRE, ou que têm acesso venoso difícil.[109][110][111][112][113]​ Os objetivos da terapia foram reconhecidos para a doença de Gaucher do tipo 1 e os tratamentos atualmente disponíveis permitem que a maioria deles seja alcançada.[114]

  • Transplantes de células-tronco foram realizados no passado, mas a TRE é mais segura.[115]

Doença de Gaucher do tipo 2

  • A doença de Gaucher neuronopática aguda do tipo 2 deve ser tratada com medidas de suporte somente, pois a morte prematura é comum.

  • Complicações da doença incluem convulsões, atraso no neurodesenvolvimento e distúrbios da motilidade ocular, as quais precisam ser consideradas como parte do manejo da doença.

  • A doença de Gaucher do tipo 2 é essencialmente intratável.

  • A terapia de reposição enzimática não é efetiva.

Doença de Gaucher do tipo 3

  • Distúrbios da motilidade ocular, atraso no neurodesenvolvimento e doença esquelética são complicações dessa doença.

  • Tipicamente, acomete crianças e adultos jovens; os aspectos viscerais e esqueléticos da doença respondem bem à TRE, mas não há melhora das manifestações neurológicas, pois a TRE não consegue atravessar a barreira hematoencefálica.[116]

Doença de Fabry

Há um grande número de aspectos gerais de suporte no manejo dessa doença multissistêmica.

  • O alívio da dor com gabapentina ou pregabalina é indicado para dor neuropática. Carbamazepina também é amplamente usada.[67][117] Anti-inflamatórios não esteroidais devem ser usados com moderação, pois esses pacientes muitas vezes apresentam nefropatia.

  • As lesões cutâneas podem necessitar de cirurgia estética ou laserterapia.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Lesões cutâneas na doença de Fabry: (A) flanco, (B) genitais, (C) umbigo, (D) coluna lombar, (E) pododáctilosOrteu CH, Jansen T, Lidove O, et al. Fabry disease and the skin: data from FOS, the Fabry Outcome Survey. Br J Dermatol. 2007 Aug;157(2):331-7; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@ceae6b8[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Lesões cutâneas na doença de Fabry: (A) palmas das mãos, (B) lábios, (C) mucosa labialOrteu CH, Jansen T, Lidove O, et al. Fabry disease and the skin: data from FOS, the Fabry Outcome Survey. Br J Dermatol. 2007 Aug;157(2):331-7; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@d424cac

  • A pressão arterial e a proteinúria devem ser monitoradas regularmente com intervenção precoce de inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA) ou antagonistas do receptor de angiotensina II.[118]

  • A avaliação cardíaca é essencial; o reconhecimento precoce de arritmia é importante. Cirurgia, incluindo inserção de marca-passos, ressecção do septo, substituição da valva, e até mesmo o transplante cardíaco, deve ser considerada.[119]

  • O AVC e o ataque isquêmico transitório requerem cuidadosas medidas preventivas primárias e secundárias.

  • Avaliação gastrointestinal, terapia sintomática e endoscopia podem ser necessárias para descartar as condições associadas.[120]

  • A depressão é comum na doença de Fabry; a família deve ser observada em conjunto, sempre que possível. Aconselhamento pode ser necessário.

  • Surdez é altamente provável.[121]

Tratamento específico com TRE ou terapia com chaperonas

  • Diretrizes para diagnóstico e tratamento estão disponíveis e são atualizadas regularmente.[67][117][122][123][124]​ De modo geral, concorda-se que a TRE pode retardar a evolução da lesão orgânica nos rins e no coração, mas esses órgãos podem não retornar à função normal. Os homens devem ser tratados assim que forem diagnosticados; as mulheres devem ser tratadas se apresentarem sintomas de envolvimento de órgãos importantes.[67] O início da TRE deve ser considerado em pacientes assintomáticas do sexo feminino com evidências laboratoriais, histológicas ou de imagem de envolvimento renal, cardíaco ou do sistema nervoso central.[67]

  • A alfa-agalsidase e a beta-agalsidase beta demonstraram eficácia e segurança em ensaios clínicos randomizados e controlados.[125][126]​ Os dados dos ensaios e registros demonstraram redução do risco de AVC, melhora nos desfechos cardíacos e renais, melhora da dor e da qualidade de vida e melhora da sintomatologia gastrointestinal.[127][128][129][130][131][132][133]​ Esses agentes são seguros para uso em crianças e têm o mesmo benefício em homens e mulheres. A produção de anticorpos é provocada pela TRE nos homens, mas o impacto disso sobre a eficácia do tratamento é desconhecido. As mulheres não desenvolvem anticorpos, talvez porque sejam heterozigotas e tenham enzimas circulantes. A alfa-agalsidase e a beta-agalsidase são efetivas na prevenção das complicações renais e cardiovasculares, em comparação com a ausência de tratamento. A beta-agalsidase está associada a um menor risco de complicações cerebrovasculares, em comparação com a beta-agalsidase ou a ausência de tratamento.[134] A TRE é eficaz na redução dos escores de dor e das concentrações de globotriaosilceramida no plasma, rim e coração.[122]

  • A pegunigalsidase alfa é outra opção para tratar a doença de Fabry em adultos, e tem a vantagem de uma meia-vida plasmática mais longa.[135]

  • A terapia com chaperonas consiste em moléculas pequenas que aumentam a atividade da enzima deficiente em pacientes com atividade enzimática residual.[136] Esses compostos auxiliam o tráfego intracelular da enzima para melhorar a disponibilidade para o lisossomo a partir do retículo endoplasmático. Ela pode funcionar em combinação com a terapia de reposição enzimática e não é afetada por anticorpos.

  • O migalastat é uma chaperona oral que aumenta a atividade da enzima endógena alfagalactosidase A em pacientes com uma mutação favorável. Ensaios demonstraram a segurança e a utilidade desta terapia em pacientes com mutações favoráveis, e o tratamento é atualmente licenciado e está disponível nos EUA, Europa, Canadá, Japão e vários outros países.[137][138][139][140]​ Os médicos precisam confirmar que a mutação do paciente é favorável. O fabricante aconselha evitá-la se a taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) for inferior a 30 mL/minute/1.73 m². O migalastate é adequado tanto para pacientes virgens de tratamento quanto para pacientes que estão mudando de TRE.[141]

Distúrbios de MPS

Manejo geral e de suporte

  • Uma abordagem multidisciplinar é essencial, pois MPS é um distúrbio multissistêmico. A participação de um especialista deve ser obtida precocemente.

  • Problemas precoces podem surgir com doença cardíaca e respiratória; especial atenção deve ser dada às vias aéreas em todos os momentos.[142]

  • Complicações otorrinolaringológicas incluem infecção otológicas frequentes.[143]

  • Complicações musculoesqueléticas são comuns e a participação de outros especialistas, como cirurgiões ortopedistas e neurocirurgiões, é essencial.[144][145] Uma complicação com potencial risco de vida, particularmente durante a anestesia, é a compressão da medula espinhal decorrente de estenose na região craniocervical.[145] A síndrome do túnel do carpo é frequente, assim como deformidades da giba.[146]

  • Uma avaliação cardíaca pré-operatória cuidadosa deve ser realizada em todos os pacientes, dado o número de anomalias valvares cardíacas que ocorrem nesse grupo de doenças.

Tratamento específico

  • O transplante de células-tronco deve ser considerado para os pacientes gravemente afetados e tem valor estabelecido, por exemplo, na MPS I e na MPS VI graves.[147]

  • A TRE tem benefício estabelecido na MPS I, II, IVA (síndrome de Morquio A), VI e tipo VII (síndrome de Sly).[148][149][150][151][152]​ Várias enzimas estão aprovadas para essas indicações. No Reino Unido, o National Institute for Health and Care Excellence recomenda a elosulfase alfa como uma opção para o tratamento da MPS IVA para pessoas de todas as idades, e está disponível apenas sob um acordo comercial.[153] Estão em andamento ensaios clínicos de Fase 3 com a vestronidase alfa.[154][155][156]

Doença de Pompe

Os cuidados gerais e de suporte para neonatos são multidisciplinares, envolvendo neurologistas, anestesistas e cardiologistas. A TRE é licenciada para crianças e adultos.[157]

As revisões sistemáticas não identificaram nenhum ensaio comparando a eficácia e a segurança da terapia de reposição enzimática para a doença de Pompe de início na infância com outra intervenção, nenhuma intervenção ou placebo.[158][159]​ Um estudo com 18 participantes comparou duas doses da alglucosidase alfa. O ensaio forneceu evidências de baixa qualidade de que o tratamento em longo prazo com alglucosidase alfa prolongou acentuadamente a sobrevida, bem como a sobrevida sem ventilação, e melhorou a cardiomiopatia (evidências de baixa qualidade); mas a função cardíaca, o desenvolvimento motor e a proporção de crianças sem ventilação invasiva foram semelhantes para ambas as doses com uma duração mediana do tratamento de 2.3 anos. Não houve diferença significativa entre os grupos de doses.[160] São necessários ensaios randomizados, devidamente elaborados, para determinar o regime de dose ideal.

A TRE para a doença de Pompe de início tardio está associada a uma melhora significativa na distância percorrida, mas não na força muscular ou na capacidade vital forçada.[161] Mais estudos prospectivos são necessários. A avalglucosidase é uma opção para a doença de Pompe de início tardio em crianças com 1 ano de idade ou mais.[162][163][164]​ A cipaglucosidase alfa é outra opção aprovada para o tratamento da doença de Pompe de início tardio em adultos que não estiverem melhorando com a TRE em uso. A cipaglucosidase alfa só está aprovada para uso em combinação com o miglustate (um estabilizador enzimático).[165]

As diretrizes do consenso europeu recomendam um período inicial de 2 anos de TRE para adultos sintomáticos com doença de Pompe. A TRE pode ser mantida durante a gravidez e a lactação. Os músculos esqueléticos e a função respiratória devem ser avaliados durante o tratamento.[166]

doença de Tay-Sachs

Somente cuidados paliativos são necessários para a forma infantil.

As formas de início na fase juvenil ou adulta requerem cuidados de suporte, educação quanto a necessidades especiais e avaliação neurológica. Demência e ataxia são complicações em longo prazo que precisam ser consideradas no manejo.

A TRE não está disponível para a doença de Tay-Sachs.

Doenças de Niemann-Pick

Cuidados paliativos são necessários apenas para a forma infantil grave de Niemann-Pick do tipo A. Os cuidados de suporte são indicados para as formas menos graves.

Niemann-Pick do tipo B se apresenta tipicamente em adultos com doença pulmonar e/ou hepatoesplenomegalia. Essa doença é essencialmente intratável. Terapias de suporte devem ser orientadas por avaliações feitas por um pneumologista, gastroenterologista e hematologista.[167]

Niemann-Pick do tipo C é extremamente variável, mas a avaliação neurológica geralmente é importante. A terapia de redução de substrato (TRS) está disponível para Niemann-Pick do tipo C.[54] A TRS com miglustate demonstrou estabilizar os sintomas neurodegenerativos, incluindo disfagia.[168] A avaliação neurológica antes da TRS é importante.

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