Abordagem

Os dois principais objetivos no manejo de indivíduos com HTG são:

  • Prevenção dos desfechos adversos da doença cardiovascular aterosclerótica (DCVA), como infarto do miocárdio, AVC e procedimentos de revascularização

  • Profilaxia de episódios de pancreatite aguda.

Para ambos os objetivos, não há níveis específicos de tratamento recomendados por diretrizes baseadas em evidências para os triglicerídeos.

Metas para os triglicerídeos

As diretrizes de 2018 da American Heart Association e do American College of Cardiology (AHA/ACC) sugerem uma estrutura que consiste em duas categorias de HTG: HTG moderada (triglicerídeos em jejum ou sem jejum 2.0 a 5.6 mmol/L [175-499 mg/dL]) e HTG grave (triglicerídeos em jejum ≥5.6 mmol/L [≥500 mg/dL]).[2] Para a HTG moderada, o consenso de especialistas do ACC de 2021 usa uma definição de triglicerídeos em jejum ≥1.7 mmol/L (≥150 mg/dL) ou triglicerídeos sem jejum ≥2.0 mmol/L (≥175 mg/dL) e triglicerídeos <5.6 mmol/ L (<500 mg/dL).[9] As diretrizes da AHA/ACC afirmam que existem muitas causas de lipoproteína de muito baixa densidade (VLDL) elevada e recomendam que é razoável reduzir os níveis de VLDL para reduzir o risco de DCVA.[2] Em pacientes com HTG grave, a VLDL e as partículas remanescentes elevadas aumentam o risco de DCVA, e os quilomícrons em jejum aumentam o risco de pancreatite aguda; portanto, as diretrizes da AHA/ACC sugerem que as terapias devem abordar os excessos em todas as classes de lipoproteínas ricas em triglicerídeos.[2]

As diretrizes de 2019 da European Society of Cardiology e da European Atherosclerosis Society (ESC/EAS) recomendam que os níveis de triglicerídeos <1.7 mmol/L (<150 mg/dL) estão associados a um menor risco de DCVA.[11] Afirmam ainda que, se os níveis de triglicerídeos forem maiores que isso, devem ser empreendidos esforços na modificação do risco cardiovascular global, com foco em outros fatores de risco, como colesterol LDL e pressão arterial. As diretrizes de 2017 da American Association of Clinical Endocrinologists e do American College of Endocrinology (AACE/ACE) afirmam explicitamente que triglicerídeos <1.7 mmol/L (<150 mg/dL) é uma meta para os pacientes com risco de DCVA.[58] Em pacientes com HTG grave e triglicerídeos ≥5.6 mmol/L (≥500 mg/dL), a redução dos níveis de triglicerídeos é recomendada para reduzir o risco de pancreatite aguda.[2][9]

Abordagens não farmacológicas

Estudos epidemiológicos mostram que os pacientes com HTG leve a moderada geralmente apresentam um risco aumentado de DCVA.[53] Em pacientes com HTG leve a moderada, portanto, é razoável reduzir tanto a VLDL aterogênica quanto os fatores de risco associados por meios não farmacológicos, sempre que possível. Isso pode ser melhor alcançado pela identificação e tratamento das múltiplas causas subjacentes de triglicerídeos elevados. As causas secundárias de HTG incluem condições clínicas, fatores de estilo de vida e medicamentos:[4][5][9]

  • Condições clínicas: diabetes mellitus, síndrome metabólica, resistência insulínica, obesidade, doença renal crônica, síndrome nefrótica, hipotireoidismo, gravidez (particularmente no terceiro trimestre, quando a elevação dos triglicerídeos associada à gravidez atinge a intensidade máxima), mieloma, lúpus eritematoso sistêmico, doença hepática, infecção por HIV, síndrome de Cushing, sarcoidose

  • Fatores de estilo de vida: consumo excessivo de álcool; dieta rica em gordura saturada, açúcar ou alimentos com alto índice glicêmico; estilo de vida sedentário

  • Medicamentos: glicocorticoides, esteroides anabolizantes, estrogênios orais, diuréticos tiazídicos e de alça, betabloqueadores não cardiosseletivos, isotretinoína, bexaroteno, propofol, sequestrantes de ácidos biliares, ciclofosfamida, asparaginase, capecitabina, interferona, tacrolimo, sirolimo, ciclosporina, inibidores da protease, agentes antipsicóticos de segunda geração (por exemplo, clozapina, olanzapina).

A mesma abordagem inicial se aplica a pacientes com HTG grave. A maioria dos pacientes com HTG grave também apresenta múltiplos fatores de risco de DCVA e está sob risco de desenvolver DCVA. Esse risco é transmitido por VLDL aterogênica e partículas remanescentes, além de outros fatores, como obesidade, síndrome metabólica e hiperglicemia. Embora os próprios quilomícrons não sejam aterogênicos, em pacientes adultos a quilomicronemia está associada a outros fatores aterogênicos. Assim como em indivíduos com HTG leve a moderada, naqueles com HTG grave é razoável reduzir os triglicerídeos por meios não farmacológicos sempre que possível. Isso é alcançado pela identificação e tratamento das múltiplas causas subjacentes de triglicerídeos elevados, conforme indicado acima.

Portanto, o manejo não farmacológico em todos os pacientes com HTG inclui: limitação ou abstinência de álcool; evitação de carboidratos simples; dieta hipogordurosa (<30% da ingestão calórica diária total) e quando o nível de triglicerídeos for >11.3 mmol/L (>1000 mg/dL), uma dieta muito hipogordurosa (<15% da ingestão calórica diária total); perda de peso; controle glicêmico rigoroso em pacientes com diabetes ou metabolismo da glicose comprometido; tratamento do hipotireoidismo; controle de outras causas secundárias; e evitação de medicamentos que aumentem os triglicerídeos, se possível, ou substituição por uma alternativa metabolicamente neutra disponível.[9][14]​ O encaminhamento para um nutricionista deve ser considerado a depender do nível de triglicerídeos.

Os indivíduos com síndrome da quilomicronemia familiar são um caso especial devido à deficiência genética grave da capacidade lipolítica. Esses indivíduos devem seguir uma dieta hipogordurosa rigorosa (<15% da ingestão calórica diária de gordura), o que representa um desafio ao longo da vida.[5][14][21] Os ácidos graxos de cadeia média podem fornecer uma fonte alternativa de gordura alimentar devido à sua absorção direta na circulação portal sem depender da formação de quilomícrons.[21] Dado este esquema alimentar rigoroso, a suplementação com ácidos graxos essenciais e vitaminas lipossolúveis pode ser considerada.[21] O encaminhamento para um especialista em lipídios deve ser considerado.

Manejo farmacológico de HTG leve a moderada para reduzir o risco de DCVA

O ACC define a HTG persistente como triglicerídeos em jejum ≥1.7 mmol/L (≥150 mg/dL) após um mínimo de 4-12 semanas de intervenção no estilo de vida, uma dose estável de terapia com estatina máxima tolerada quando indicada, e avaliação e tratamento de causas secundárias.[9] Existem poucos estudos randomizados contemporâneos que recrutaram primariamente pacientes com HTG e os trataram com medicamentos redutores de triglicerídeos. Portanto, as diretrizes da AHA/ACC de 2018 não abordam especificamente a HTG leve a moderada diretamente.[2] Em vez disso, os pacientes são tratados com base em seu risco de DCVA e níveis de colesterol LDL, primariamente com o uso de estatinas. Em pacientes com HTG leve a moderada, a terapia com estatina reduz a VLDL em um grau semelhante ao dos fibratos; os ensaios clínicos com estatina incluíram pacientes com HTG. Portanto, as diretrizes da AHA/ACC de 2018 sugerem que, se um paciente adulto com HTG moderada apresentar fatores de risco mal controlados para DCVA e um risco de DCVA em 10 anos ≥7.5%, é razoável iniciar ou intensificar a terapia com estatinas.[2] Para aqueles com risco de DCVA em 10 anos de 5% a <7.5% e HTG persistente, a discussão entre paciente e médico em relação ao início da terapia com estatinas de intensidade moderada é recomendada.[2][9]

Para reduzir ainda mais o colesterol LDL, pode ser necessário adicionar tratamentos adjuvantes, como ezetimiba, inibidores da pró-proteína convertase subtilisina/kexin tipo 9 (PCSK9) ou ácido bempedoico; no entanto, estes têm apenas um impacto mínimo sobre os triglicerídeos e não são recomendados para o tratamento de HTG.[60]

Para obter informações sobre o cálculo de risco de DCV aterosclerótica em 10 anos, consulte Hipercolesterolemia.

As diretrizes da ESC/EAS concordam com as diretrizes da AHA/ACC e recomendam as estatinas como o medicamento de primeira escolha para reduzir o risco de DCVA em indivíduos de alto risco com níveis de triglicerídeos >2.3 mmol/L (>200 mg/dL).[11]

O estudo REDUCE-IT revelou que, entre os pacientes com níveis elevados de triglicerídeos, apesar do uso de estatinas, a adição de altas doses de etil icosapente levou a uma redução significativa nos riscos de eventos de DCVA e de mortalidade cardiovascular.[61] O estudo REDUCE-IT também relatou que os pacientes em tratamento ativo tiveram um aumento ligeiro, mas estatisticamente significativo, do risco de hospitalização por fibrilação atrial (FA; 5.3% vs. 3.9% com placebo) e nos eventos hemorrágicos leves (2.7% vs. 2.1% com placebo).[61]​ Embora algumas jurisdições tenham emitido alertas sobre esses riscos, observa-se que os benefícios cardiovasculares gerais significativos compensaram amplamente essas preocupações.[61]​ As diretrizes dos EUA aconselham que a adição de etil icosapente pode ser considerada nos pacientes com triglicerídeos persistentemente ≥1.7 mmol/L (≥150 mg/dL) apesar da terapia máxima tolerada com estatina e da consideração dos fatores de estilo de vida. Os pacientes com HTG moderada considerados para etil icosapente nas diretrizes dos EUA incluem aqueles com DCVA e colesterol LDL <1.8 mmol/L (<70 mg/dL) ou colesterol LDL de 1.8 a 2.6 mmol/L (70-99 mg/dL), ou aqueles com idade >50 anos sem DCVA, mas com diabetes e um ou mais fatores de alto risco para DCVA.[9][62]​ A ESC/EAS recomenda que nos pacientes de alto risco com níveis de triglicerídeos entre 1.5 a 5.6 mmol/L (135-499 mg/dL) apesar de tratamento com estatina, o etil icosapente deve ser considerado em combinação com uma estatina.[11][61]​ Em contraste com a AHA/ACC, a ESC/EAS também recomenda que nos pacientes que estiverem na meta de colesterol LDL e ainda apresentarem níveis de triglicerídeos >2.3 mmol/L (>200 mg/dL), o fenofibrato pode ser considerado em combinação com uma estatina.[11]

Tratamento farmacológico da HTG grave

Na HTG grave, a questão mais premente é a redução do risco de pancreatite aguda.[5][52]​​ As estatinas isoladas não são capazes de reduzir os níveis de triglicerídeos nos indivíduos com HTG grave, especialmente diante de causas secundárias não tratadas. As estatinas isoladamente não conseguem prevenir a pancreatite aguda nos indivíduos com HTG grave. Os fibratos e possivelmente os ácidos graxos ômega-3 são os tratamentos medicamentosos atuais mais efetivos para se alcançar isso.[63][64]​​​ Uma vez que os triglicerídeos tenham sido reduzidos para a faixa de HTG leve a moderada, a redução do risco de DCVA (veja acima) pode ser subsequentemente considerada.[2][11][58]​​ Nos pacientes com diabetes mal controlado, a otimização do controle glicêmico (por exemplo, com perda de peso, metformina, inibidores da proteína cotransportadora de sódio e glicose 2 [SGLT2], agonistas do receptor do peptídeo semelhante ao glucagon-1 [GLP-1] ou insulina) pode ser associada a melhoras drásticas nos níveis de triglicerídeos, embora o(s) mecanismo(s) subjacente(s) à melhora não esteja(m) diretamente na via do metabolismo das lipoproteínas.[65]​ Consulte Diabetes do tipo 2 em adultos.

Para prevenir a pancreatite aguda, as diretrizes da AHA/ACC sugerem que é razoável reduzir os níveis de triglicerídeos nos pacientes com triglicerídeos >5.6 mmol/L (>500 mg/dL).[2] Essa redução pode ser parcialmente alcançada pelas abordagens não farmacológicas acima, implementando-se uma dieta muito hipogordurosa e, em seguida, adicionando-se um fibrato e/ou ácidos graxos ômega-3 para os pacientes com HTG persistentemente grave. Estas são as terapias farmacológicas mais confiáveis para reduzir os triglicerídeos a um nível mais seguro. Se um fibrato for necessário para um paciente em tratamento com estatina, o fenofibrato é mais seguro que a genfibrozila, com menor risco das complicações musculares associadas à estatina, particularmente miosite grave e rabdomiólise.[2]

A AHA/ACC recomenda que, nos adultos com HTG grave e risco de DCVA >7.5%, é razoável reavaliar o risco de DCVA após os fatores de estilo de vida e secundários serem abordados e considerar um nível de triglicerídeos persistentemente elevado como um fator que favorece o início ou intensificação da terapia com estatinas.[2] Para aqueles com risco de DCVA em 10 anos de 5% a <7.5% e HTG persistente, a discussão entre paciente e médico em relação ao início da terapia com estatinas de intensidade moderada é recomendada.[2][9]

A AHA/ACC recomenda ainda que em adultos com triglicerídeos ≥5.6 mmol/L (≥500 mg/dL), e especialmente triglicerídeos em jejum ≥11.3 mmol/L (≥1000 mg/dL), é razoável reduzir ainda mais os triglicerídeos implementando uma dieta muito hipogordurosa, evitando carboidratos refinados e álcool, tomando ácidos graxos ômega-3 prescritos e, se necessário, terapia com fibratos.[2][9]​ Nos indivíduos com triglicerídeos ≥5.6 mmol/L (≥500 mg/dL), é possível uma redução ≥30% nos triglicerídeos com ácidos graxos ômega-3 prescritos.[62]​ Uma revisão regulatória europeia descobriu que os ésteres etílicos de ômega-3 usados no tratamento da hipertrigliceridemia estão associados a um aumento do risco de FA dose-dependente.[66]

A HTG grave ou com risco de vida durante a gravidez é melhor controlada em consulta com um especialista em lipídios.[2][48]

Pacientes com pancreatite aguda devido à quilomicronemia devem ser internados no hospital. Eles devem receber hidratação intravenosa e ser colocados em jejum durante a fase aguda da doença (primeiras 48-72 horas). A plasmaférese geralmente não é necessária porque os níveis de triglicerídeos cairão com uma meia-vida de 24-30 horas com a interrupção da ingestão oral e cuidados de suporte isolados. Os pacientes devem então ser transferidos para líquidos claros, seguidos por uma dieta hipogordurosa com aconselhamento para modificação do estilo de vida de longa duração. A infusão intravenosa de insulina em pacientes com diabetes mal controlado pode ajudar a reduzir os níveis de triglicerídeos. Consulte Complicações.

Uma vez que os níveis de triglicerídeos são <5 mmol/L (<440 mg/dL), os medicamentos para baixar o colesterol LDL, como as estatinas, podem ser iniciados para atingir as metas almejadas de colesterol não lipoproteína de alta densidade (não HDL), conforme recomendado de acordo com a situação do fator de risco cardíaco. A meta ideal é de triglicerídeos <1.7 mmol/L (<150 mg/dL), mas normalmente não é realista. A terapia com fibratos é recomendada como profilaxia contra futuros episódios de pancreatite.[2][9]

O uso deste conteúdo está sujeito ao nosso aviso legal