Abordagem

Os objetivos do tratamento da anorexia nervosa incluem ajudar o indivíduo a retornar a uma faixa de peso saudável, normalizar hábitos e comportamentos alimentares e estabelecer uma relação saudável com os alimentos e com o peso, a forma e o tamanho corporais.[72]

O tratamento inclui ajudar a pessoa com anorexia nervosa a identificar estratégias para prevenir recidivas após a recuperação do peso. Os cenários de tratamento podem variar em decorrência da gravidade da apresentação da doença e de questões tais como disponibilidade de serviços clínicos especializados para o paciente. Além disso, o tratamento pode variar com base na vontade da pessoa de participar do tratamento recomendado e no suporrte social disponível para ela.

Os tratamentos efetivos para a anorexia nervosa, nos vários cenários disponíveis, incluem tratamento comportamental e refeições supervisionadas. Terapias baseadas em evidências, como a terapia cognitivo-comportamental (TCC), a psicoterapia psicodinâmica focal ou, para adolescentes, a terapia familiar, podem ser incluídas nos planos de tratamento.[67][68][85]​ O tratamento da anorexia nervosa pode incluir a prestação de serviços de telessaúde, se apropriados. Várias abordagens psicoterapêuticas têm sido adaptadas para administração remota.

Vale ressaltar que o início da reabilitação nutricional pode estar associado a sensações de sofrimento intenso pelos pacientes; o apoio psicossocial ao indivíduo que recebe o tratamento, com transmissão de empatia e compaixão, é essencial para que o tratamento seja efetivo.[69]

Considerações de urgência e quadros agudos

Qualquer paciente com transtorno alimentar grave pode deteriorar com rapidez e deve ser encaminhado imediatamente para a atenção secundária.[69] Muitos pacientes precisarão de estabilização clínica aguda em ambiente hospitalar e manejo das complicações clínicas associadas à doença manifesta.

Use os critérios clínicos, mas observe que, no geral, recomenda-se hospitalização para os pacientes com:[68][69][86]

  • Perda de peso com risco à vida (por exemplo, IMC <15 em adultos ou <75% do IMC mediano para a idade e o sexo em crianças e adolescentes)

  • Perda repentina de peso (por exemplo, perda recente >1 kg por duas semanas consecutivas)

  • Evidências de complicações clínicas da doença, inclusive bradicardia significativa (por exemplo, pulso <50 bpm), hipotensão ou queda postural (por exemplo, >20 mmHg) com tontura, hipotermia (por exemplo, temperatura central <36°C [<96.8°F] resultados de ECG anormais (por exemplo, QTc prolongado >450 ou outras anormalidades significativas no ECG) ou com evidências de insuficiência cardíaca

  • Anormalidades laboratoriais (por exemplo, baixo teor de sódio, potássio, fosfato, magnésio ou glicose)

  • Evidências de síndrome de realimentação ou de alto risco de síndrome de realimentação

  • Uma indicação para tratamento obrigatório de acordo com a legislação de saúde mental em decorrência e recusa a tratamento com risco à vida

  • Instabilidade psiquiátrica, inclusive probabilidade de suicídio ou psicose

Existem diretrizes que fornecem uma lista abrangente de parâmetros que corroboram uma necessidade de hospitalização clínica ou psiquiátrica, de acordo com o fato de a pessoa com anorexia ser criança ou adulta. Os médicos devem estar familiarizados com as orientações locais aplicáveis com base na localidade de atuação.[68][69]

Os cuidados hospitalares podem ocorrer em unidades clínicas ou psiquiátricas, dependendo do grau e da gravidade dos sintomas físicos e da experiência da unidade no manejo da desnutrição.[87]

Ambiente de cuidados

O tratamento da anorexia nervosa pode ser realizado em várias intensidades (ou seja, níveis de cuidados).[88] Os pacientes podem receber cuidados em diversos ambientes de tratamento, intensificando-os de contextos menos restritivos (por exemplo, ambulatorial) para mais estruturados, se necessário, ou passando do tratamento hospitalar ou domiciliar para contextos menos intensivos.

Os médicos devem determinar se o tratamento ambulatorial, diário, domiciliar ou hospitalar é adequado para as necessidades clínicas de um paciente com anorexia nervosa. Ao determinar o nível inicial de cuidados do paciente, ou se é aconselhável mudar para um nível diferente de assistência, considere vários fatores, tais como:[68]

  • Condição física geral

  • Comportamentos e cognições

  • Estado afetivo

  • Circunstâncias sociais

Quando são feitas mudanças no contexto ou no local dos cuidados, a continuidade da assistência é essencial.[68] É importante consultar um psiquiatra e/ou especialista em transtornos alimentares para obter orientação clínica geral e estabelecer a liderança da equipe e a responsabilidade clínica primária para os cuidados do paciente.

Indivíduos com anorexia nervosa podem precisar de ambientes de tratamento estruturados para ajudá-los a melhorar o peso e os hábitos alimentares. Os cuidados hospitalares são os mais intensivos, sejam eles oferecidos em uma unidade psiquiátrica para tratamento da saúde comportamental ou em uma unidade de saúde para estabilização clínica. Idealmente, os pacientes tratados em instalações de saúde devem receber suporte contínuo de um psiquiatra com experiência e treinamento no manejo de transtornos alimentares graves, para trabalhar em parceria com o médico responsável pelos cuidados médicos do paciente. Embora seja sempre preferível a internação voluntária, o tratamento involuntário pode ser necessário em pacientes que se recusam ao tratamento e que se apresentem clínica ou psiquiatricamente instáveis.[67][86]

Se disponíveis, programas de tratamento domiciliar (por exemplo, unidades especializadas em transtornos alimentares) podem servir como alternativa à hospitalização. Como nos hospitais, os programas domiciliares oferecem cuidados ininterruptos, mas com um monitoramento médico menos intensivo. Alguns tratamentos médicos (por exemplo, infusões intravenosas) podem não estar disponíveis nos programas domiciliares. Geralmente o tratamento domiciliar é recomendável para os pacientes com baixo peso sem instabilidade clínica acentuada.

Vale ressaltar que, para os adolescentes, a hospitalização e o tratamento domiciliar podem representar desafios ao desenvolvimento da autonomia; os profissionais de saúde que trabalham nestes cenários devem estar cientes da possível necessidade de ajudar o jovem a lidar com a perda da independência, adaptando as estruturas e serviços hospitalares existentes para melhor atender às necessidades de desenvolvimento dos adolescentes, por exemplo garantindo confidencialidade, oferecendo espaços privados e proporcionando ao jovem apoio psicológico e tranquilização adequados ao seu nível de desenvolvimento.[89]

Quando o paciente não necessita de cuidados hospitalares e quando há um bom relacionamento entre o paciente e o médico, com apoio da família, o paciente pode ser monitorado como paciente ambulatorial.[86] Programas ambulatoriais estruturados podem incluir tratamento durante todo o dia, ou parte do dia, em vários dias da semana, ou na maioria deles. Os programas ambulatoriais estruturados são adequados para pacientes ambulatoriais que requerem supervisão das refeições e outros tipos de assistência, cujo peso e estado de saúde não sejam graves o suficiente para precisar de cuidados hospitalares ou domiciliares.

Restauração do peso e nutrição

A reabilitação nutricional para os indivíduos com anorexia nervosa requer um plano alimentar nutricionalmente balanceado com calorias adequadas para restaurar o peso, com o objetivo de restaurar o peso, normalizar os hábitos alimentares e atingir uma percepção normal da fome e da saciedade. Além disso, nas pessoas gravemente abaixo do peso, desnutridas ou clinicamente instáveis, os objetivos do tratamento nutricional são restaurar a estabilidade clínica (por exemplo, normalizar os sinais vitais, os eletrólitos e o equilíbrio hídrico) e corrigir as sequelas biológicas e psicológicas da desnutrição. Uma vez restaurado o peso, é fundamental manter uma faixa de peso saudável.[68]

A alimentação oral é a preferida, mas alguns pacientes podem não ganhar peso quando alimentados por via oral ou podem expressar preferência por alimentação nasogástrica.[69] O uso de alimentação nasogástrica pode estar associado a complicações como irritação nasal, epistaxe, distúrbios eletrolíticos, desconforto do paciente e remoção da sonda nasogástrica pelo próprio paciente. Consequentemente, recomenda-se que a alimentação por sonda nasogástrica seja vista como uma intervenção de curto prazo com o objetivo de transição para a ingestão oral.[68]

Normalmente, a prescrição calórica pode começar com níveis significativamente maiores que os que o paciente vinha ingerindo antes do tratamento.[90] As diretrizes sobre o início da prescrição calórica variam consideravelmente, bem como as práticas internacionais; observe que os pacientes com fatores de risco para síndrome de realimentação podem requerer um ritmo mais lento de aumento calórico (veja abaixo). Muitas clínicas agora usam prescrições calóricas iniciais mais altas do que as usadas historicamente (por exemplo, 1500-2000 kcal/dia) e taxas de renutrição mais rápidas porque a literatura não tem mostrado nenhuma associação entre maior ingestão calórica durante a reabilitação nutricional e o desenvolvimento da síndrome de realimentação quando os pacientes estão sob monitoramento médico rigoroso com correção eletrolítica (por exemplo, para hipofosfatemia) conforme necessária.[68]

As prescrições calóricas poderão aumentar em 400 kcal/dia a cada 48-72 horas se os pacientes tolerarem o nível calórico anterior. As necessidades calóricas máximas em programas de tratamento que visam ajudar os pacientes a alcançar a restauração total do peso normalmente atingem entre 3000 e 4000 kcal/dia. Os planos de refeições podem incluir suplementos líquidos como lanches, adicionalmente aos alimentos sólidos.[91][92]

Os pacientes com fatores de risco para a síndrome da realimentação (por exemplo, aqueles com peso muito baixo <70% do peso corporal médio, anormalidades eletrolíticas ou renais preexistentes, infecção ou outras complicações de saúde) talvez necessitem ingerir menos calorias inicialmente, com aumentos calóricos por um período mais longo, juntamente com monitoramento rigoroso dos eletrólitos e do quadro clínico, a fim de reduzir esse risco.[69][90]

Para identificar deficiências específicas e criar o plano ideal, é importante que haja avaliação e orientação alimentares por um nutricionista com experiência específica em anorexia nervosa.[68]

Vitaminas e minerais (por exemplo, multivitamínico, fósforo, magnésio e cálcio) devem ser administrados até que a dieta do paciente contenha elementos suficientes para atender aos valores de referência alimentares indicados.[67] Nenhum regime nutricional específico é considerado ideal, pois a quantidade de calorias ingeridas por dia é a meta mais importante.[93] Deve ser especificamente considerada a suplementação de tiamina. Além disso, os pacientes devem normalizar a ingestão de líquidos em vista da tendência, na anorexia nervosa, de ingerirem líquidos em excesso para amenizar a fome ou aumentar a pesagem. Podem ser necessários monitoramento e restrição. Deve-se também considerar a limitação da ingestão de cafeína, já que esta pode ser usada pelas pessoas com anorexia nervosa para suprimir o apetite.[94]

Estabelecimento de metas de peso

Como parte do plano de tratamento inicial, recomenda-se estabelecer uma meta individualizada para o peso.[68] Os fatores que servem de orientação para essa meta incluem as diretrizes para o índice de massa corporal (IMC) (por exemplo, IMC >20 kg/m²), tabelas de peso/altura comumente disponíveis (por exemplo, Metropolitan Life Actuarial Tables), o peso do indivíduo antes da doença ou, para os pacientes mais jovens, as respectivas tabelas de crescimento.[82]​ Nos adolescentes, o peso-alvo precisará ser ajustado para cima para corresponder aos aumentos na altura do paciente, podendo ser útil discutir isso com eles desde o início do tratamento. Durante um período de crescimento, recomenda-se que o peso-alvo seja reavaliado a cada 3-6 meses.[68]

Normalmente o peso-alvo será discutido explicitamente com o paciente, mas isso pode exigir considerável sensibilidade; talvez convenha adiar essa discussão em algumas circunstâncias, até que a pessoa com anorexia nervosa tenha menos medo do seu peso final.[68]

O consenso clínico sugere que as metas realistas são de 2-4 lb/semana para os pacientes em programas domiciliares ou sob hospitalização, pelo menos 1-3 lb/semana para os pacientes em programas hospitalares parciais e, pelo menos, 1-2 lb/semana para os indivíduos em programas ambulatoriais.[68] Os pacientes ambulatoriais devem ser pesados semanalmente, e os hospitalizados várias vezes por semana. Os pacientes devem ser pesados com base em procedimentos consistentes. Por exemplo, os pacientes devem ser pesados em horários regulares do dia (por exemplo, de manhã cedo após a micção, antes do café da manhã), de forma a minimizar a manipulação dos dados de pesagem (por exemplo, vestir uma camisola hospitalar ou roupas leves). As pessoas com anorexia nervosa podem necessitar de apoio e sensibilidade durante os procedimentos de pesagem, já que estes costumam estar associados a ansiedade e sofrimento. Observe que os pacientes diferem na medida em que desejam ser informados sobre seu peso, sendo que alguns desejam saber os valores específicos e outros apenas se atingiram suas metas semanais de peso.[68]

Dificuldades com a adesão

Se uma pessoa com anorexia nervosa resistir fortemente à realimentação, as etapas iniciais recomendadas incluem oferecer opções relativas ao tipo de alimentos/suplementos. O suporte adicional, por exemplo, de um nutricionista, com ou sem um enfermeiro especialista em manejo de transtornos alimentares, pode ser benéfico e ajudar a explicar a necessidade da realimentação e a aliviar as preocupações relativas ao medo da restauração do peso.[69] Recomenda-se que a equipe de saúde vise transmitir ao indivíduo a intenção de cuidar dele e não deixá-lo morrer mesmo quando a doença impedir a pessoa com anorexia nervosa de cuidar de si mesma.[68]

Se o paciente com anorexia nervosa recusar o tratamento quando a saúde física dele estiver seriamente comprometida pela doença, poderá ser necessário recorrer a um tratamento involuntário.[67][86]​ Isso é justificado ética e clinicamente somente quando a capacidade de decisão do paciente em relação ao tratamento adequado para o transtorno alimentar estiver comprometida, o risco de morte ou morbidade grave for alto e a probabilidade de benefício do tratamento involuntário superar o risco de danos.[68]

Nesse cenário, os médicos devem utilizar as estruturas legais para tratamento obrigatório do país onde atuam. Se uma criança ou jovem com anorexia nervosa recusar o tratamento no contexto de um comprometimento grave da saúde, os pais ou cuidadores normalmente servirão como guardiães dos menores de idade, dando consentimento em nome dos filhos e, se necessário, usando uma estrutura legal adequada para o tratamento compulsório. A alimentação de pessoas sem o consentimento delas só deve ser realizada dentro dos limites legais adequados e por equipes multidisciplinares competentes para tal, com treinamento em controle seguro e técnicas de contenção.[67][69]

A alimentação involuntária normalmente se baseia no uso de uma sonda nasogástrica, geralmente como medida de curto prazo. Alguns pacientes podem apresentar menos sintomas gastrointestinais com a alimentação por sonda até o intestino delgado e com o uso de uma sonda de Dobbhoff. Em raras situações, por exemplo, quando uma alimentação parenteral de longo prazo é necessária e o paciente tenta remover a sonda, pode-se considerar o uso de sondas colocadas cirurgicamente, como uma sonda de gastrostomia ou jejunostomia, embora o uso dessa abordagem não seja o preferencial.[68] A nutrição parenteral total é recomendada somente como último recurso de tratamento quando todas as outras opções de suplementação nutricional tiverem sido tentadas; ela requer monitoramento clínico intensivo e está associada a um aumento do risco de efeitos adversos graves, inclusive lesão hepática, sepse, coagulação intravascular disseminada e síndrome de realimentação.[68] O grau de voluntariedade em relação ao tratamento, a competência para a tomada de decisões clínicas e base legal para o tratamento involuntário são considerações comuns para indivíduos que necessitam de alimentação por sondas colocadas cirurgicamente.

Considerações sobre saúde física durante a realimentação

O risco de efeitos adversos da reabilitação nutricional nas pessoas desnutridas com anorexia nervosa é maior durante a primeira semana de renutrição. A síndrome de realimentação é a complicação mais grave.[68]

Recomenda-se que, durante o processo de realimentação, os valores laboratoriais (inclusive o fosfato e a glicose) e os sinais vitais (inclusive o peso e outras evidências de acúmulo excessivo de fluidos) sejam atentamente monitorados; é normalmente necessária uma consulta de clínica médica.

Para pacientes hospitalizados, normalmente, os valores laboratoriais inicialmente devem ser monitorados diariamente, no início (duas vezes ao dia, na presença de fatores de risco para a síndrome da realimentação).[69] Pacientes alimentados por métodos nasogástricos ou intravenosos apresentam risco elevado de síndrome de realimentação e precisam ser cuidadosamente monitorados.

A síndrome da realimentação é incomum, mas potencialmente perigosa. Ela se caracteriza pela rápida redução de fosfato, potássio e magnésio, desregulação de água e alteração do metabolismo da glicose, podendo causar complicações cardíacas fatais. Outros fatores de risco para a síndrome da realimentação estão peso muito baixo (<70% do peso corporal médio), anormalidades eletrolíticas ou renais preexistentes, infecção ou outras complicações de saúde.[69][90]​ Para os pacientes com fatores de risco para a síndrome da realimentação, talvez seja necessário aumentar a ingestão calórica mais lentamente. Além disso, é aconselhável restringir a ingestão de calorias provenientes de carboidratos e aumentar o fosfato na alimentação.[69][87][90]

A suplementação oral de fosfato e magnésio é recomendada quando os níveis de eletrólitos séricos destes minerais estiverem baixos e, também, na presença de outros fatores de risco para a síndrome da realimentação, juntamente com a avaliação regular da função cardíaca (ausculta dos pulmões, exame de sangue para peptídeo natriurético do tipo B).

Os sinais da síndrome da realimentação incluem hipofosfatemia (que é o biomarcador de referência), insuficiência cardíaca congestiva e alteração do estado mental.[95] Os pacientes podem também desenvolver edema; embora edemas leves e transitórios possam desenvolver-se durante a realimentação sem que haja síndrome da realimentação, edemas significativos indicam necessidade de monitoramento rigoroso quanto à presença de sinais e sintomas da síndrome da realimentação. É necessária atenção imediata se houver alterações no estado mental, taquicardia, insuficiência cardíaca congestiva, dor abdominal, intervalo QT prolongado, níveis de potássio sérico <3 mmol/L (<3 mEq/L) e níveis de fosfato sérico <0.8 mmol/L (<2.5 mg/dL).[95] Caso a síndrome da realimentação se desenvolva, será necessário atendimento clínico de emergência com monitoramento cardíaco contínuo. Um paciente com síndrome de realimentação normalmente precisará ser tratado por um médico experiente no tratamento dessa complicação que traz risco de vida e pode precisar ser tratado em uma unidade de terapia intensiva.

É importante monitorar os eletrólitos, com atenção específica ao potássio em pacientes que induzem o vômito ou fazem uso indevido de medicamentos laxantes. Geralmente, a reposição para indivíduos com níveis de potássio >3.2 mmol/L (>3.2 mEq/L) pode geralmente ser alcançada apenas com alimentos, caso os comportamentos de purgação sejam interrompidos. Se o hábito da purgação for interrompido à medida que se estabelece uma nutrição adequada, o nível de potássio geralmente se corrige em alguns dias. Para níveis mais baixos ou para pacientes que ainda estão purgando, a suplementação oral geralmente é útil e pode ser necessária por vários dias. Pode-se administrar cloreto de potássio intravenoso em associação com fluídos para hipocalemia significativa (por exemplo, <2.8 mmol/L [<2.8 mEq/L]) quando os pacientes procuram o ambiente de cuidados médicos intensivos. A reposição simples pode fornecer a correção adequada, mas, se o paciente for refratário, pode ser em virtude de hipomagnesemia ou hipocalcemia concomitante. Esses deficits devem ser corrigidos primeiro, e a consulta com a clínica médica é recomendada.[94][96]

A constipação é uma queixa frequente, e os pacientes precisarão de bastante encorajamento e, muitas vezes, de algum medicamento laxante não estimulante (como agentes que contenham fibras e sejam osmoticamente ativos) durante o processo de realimentação.[68]

Correção da ingestão de líquidos

Monitore a ingestão de líquidos durante o processo de renutrição. Inicialmente, o paciente pode não ingerir a quantidade adequada de líquidos, sobretudo se os sintomas incluírem perda de líquidos por hábitos de purgação. Durante o tratamento, os pacientes podem consumir grandes quantidades de água para elevar de maneira falsa o peso monitorado, como parte de um plano comportamental. Pode ser necessário realizar uma supervisão adicional e/ou urinálise para determinar a gravidade específica e obter sucesso na realimentação, com os níveis adequados de consumo de líquidos.

Distúrbios eletrolíticos durante a realimentação

Níveis anormais de glicose e eletrólitos séricos podem decorrer de ingestão deficiente de nutrientes, perda de nutrientes secundária ao hábito de purgação ou aumento das necessidades catabólicas à medida que se dá início à realimentação. A iniciação da reabilitação nutricional deve ajudar a normalizar os níveis de eletrólitos em poucos dias ou semanas, desde que se descontinue o hábito da purgação e que a síndrome da realimentação franca não se desenvolva.[94][96] Anormalidades no hemograma completo, entre elas leucopenia e baixo nível de eritrócitos e plaquetas, podem ser detectadas na apresentação e devem melhorar ao longo de várias semanas durante a realimentação. Se houver transaminite hepática, esta também deve se resolver ao longo de várias semanas de realimentação. Recomenda-se avaliação laboratorial frequente para detectar anormalidades eletrolíticas e quaisquer outras anormalidades de laboratório durante a primeira ou segunda semana de realimentação. Em ambientes altamente estruturados (por exemplo, hospital), as avaliações são normalmente feitas diariamente no início do tratamento (duas vezes ao dia na presença de fatores de risco para a síndrome da realimentação).[69] Daí em diante, deve-se reduzir a frequência de avaliação a uma vez por semana ou com menor frequência.

Tratamentos psicológicos para adultos com anorexia nervosa

Recomenda-se que todos os adultos com anorexia nervosa sejam tratados com psicoterapia focada no transtorno alimentar. O cronograma deve ser individualizado com base no nível de estabilidade clínica e na disposição do indivíduo de fazer um tratamento psicológico; por exemplo, para as pessoas gravemente desnutridas, as tentativas de realizar uma psicoterapia formal podem ser inefetivas.[68]

Embora várias abordagens psicológicas já tenham sido avaliadas em pacientes adultos, nenhuma abordagem específica demonstrou superioridade nítida.[97] O tratamento comportamental costuma ser recomendado, pois é eficaz no caso de tratamentos estruturados.[98] As estratégias ambulatoriais que têm uma base de evidências modesta de melhorarem o desfecho (associadas a aumentos moderados do peso, embora não até faixas de peso totalmente normalizadas) incluem a TCC e o tratamento clínico com suporte especializado (MCSE), e são comumente oferecidas como parte de abordagens de tratamento estruturadas para a anorexia nervosa, ou como tratamentos ambulatoriais, com ou sem intervenções adicionais oferecidas por uma equipe multidisciplinar de tratamento.[99][100][101]​ O tratamento de Maudsley para a anorexia em adultos (MANTRA) foi desenvolvido para tratar os fatores psicológicos (por exemplo, traços de personalidade e estilos de pensamento) da anorexia, com uma abordagem colaborativa com o paciente. Em um ensaio clínico randomizado e controlado voltado para o tratamento ambulatorial, ficou comprovado que esse método é efetivo de maneira igual ao MCSE e mais bem aceito pelos pacientes após 12 meses.[102]

Com base nas evidências disponíveis, as orientações do National Institute for Health and Care Excellence (NICE) recomendam as seguintes opções de tratamento psicológico de primeira linha:[67]

  • Terapia cognitivo-comportamental voltada para transtornos alimentares individuais (TCC-TA)

  • MANTRA

  • MCSE

A American Psychiatric Association recomenda a psicoterapia como intervenção inicial em todas as faixas etárias.[68] Normalmente, as características de psicoterapias específicas são similares, mas aquelas eficazes no tratamento da anorexia nervosa incluem:

  • TCC (com foco na alimentação e com foco amplo)

  • Psicoterapia psicodinâmica focal (PPF)

  • Psicoterapia interpessoal (PTI)

  • MANTRA

  • MCSE

Tratamentos psicológicos para crianças e adolescentes com anorexia nervosa

Para as crianças e adolescentes, o tratamento baseado na família costuma ser uma intervenção efetiva e é recomendado como uma opção de primeira linha para todas as pessoas com anorexia nervosa que tenham um cuidador envolvido.[67][68][72]​ Diversos estudos demonstraram que uma abordagem ambulatorial de base familiar para a realimentação de adolescentes com anorexia nervosa está associada a taxas altas de remissão completa dos sintomas ao final do tratamento e a 1 ano após a apresentação, além de ser um pouco melhor que a psicoterapia ambulatorial individual voltada para questões gerais da adolescência.[103][104][105][106]​ A principal característica do tratamento de base familiar é a capacidade dos pais de realimentarem seu filho em estado de inanição. Além disso, a abordagem inclui não culpar os pais pelo desenvolvimento da doença e posicioná-los exclusivamente para criar um plano de realimentação adequado às necessidades particulares do filho. O tratamento oferece informações sobre as intensas mortalidade e morbidade associadas à anorexia, o que gera uma consciência sobre a urgência e a necessidade do tratamento. Quando os pais têm sucesso com a realimentação inicial, o tratamento de base familiar inicia a transição para que o adolescente retome a responsabilidade por sua realimentação, autocuidado e atenção. A disseminação e o treinamento do tratamento de base familiar estão ocorrendo a uma taxa relativamente rápida, e também há interesse das comunidades de pacientes.[107][108] Maudsley Parents: a site for parents of eating disordered children Opens in new window

As orientações do NICE, com sede no Reino Unido, recomendam a terapia familiar (TF-AN) para crianças e jovens com anorexia na forma de terapia familiar única ou de terapia familiar múltipla (com crianças e jovens, com a opção de fazer algumas sessões separadas da família ou do cuidador).[67]

Caso a terapia familiar voltada para a anorexia não seja aceitável, seja contraindicada ou ineficaz, as recomendações de segunda linha são TCC-TA ou psicoterapia para adolescentes com anorexia (PA-AN).[67]

Prevenção da recidiva

O tratamento para anorexia nervosa aguda deve ser seguido por um longo período, com o objetivo de prevenir a recidiva. Após a restauração do peso, o tratamento para prevenção da recidiva deve incluir encontros ambulatoriais regulares com um ou mais médicos por, pelo menos, um ano. O tratamento deve incluir o monitoramento do peso e o monitoramento geral do plano nutricional. A discussão pode focar nas estratégias de manutenção da alimentação e peso saudáveis e em como evitar situações que renovem a vulnerabilidade para a perda de peso.

O tratamento contínuo com foco no comportamento que vise manter o peso normal e os comportamentos alimentares é geralmente considerado útil durante o ano após a normalização aguda do peso.[109][110]​ Há poucas evidências que sugerem que a TCC pode ser útil para a prevenção de recidivas.[100] Geralmente, o tratamento bem-sucedido inclui a transição da discussão sobre alimentos, alimentação e peso para outras questões da vida que se tornam possíveis e relevantes para o paciente quando o transtorno alimentar estabiliza. Para alguns pacientes, esse tratamento ambulatorial se estende por vários anos.

Farmacoterapia

Atualmente, nenhum medicamento está aprovado para o tratamento da anorexia nervosa. Nos últimos anos, vários estudos controlados têm constatado que a farmacoterapia complementar com olanzapina em baixas doses pode ajudar os pacientes agudamente doentes a aumentarem o peso modestamente.[111][112][113][114][115]​​ No entanto, o tratamento com olanzapina não afeta significativamente a ansiedade ou a obsessão com a forma e o peso. É importante diminuir e interromper cuidadosamente o tratamento quando o paciente estiver próximo do peso corporal ideal. Os medicamentos antipsicóticos atípicos podem estar associados a um intervalo QTc prolongado.[116] Assim sendo, antes do uso de olanzapina, deve ser realizado e repetido periodicamente um ECG durante o tratamento. Os pacientes geralmente precisam de apoio e tranquilização significativos antes de aceitarem o tratamento com olanzapina por medo de ganho excessivo de peso.[113]

Embora os indivíduos com anorexia nervosa geralmente apresentem sintomas de ansiedade e depressão, não há evidências de que os antidepressivos melhorem os sintomas. Vários antidepressivos foram analisados em comparação a placebos e nenhum melhorou a alimentação, o peso, o humor ou os sintomas de ansiedade.[115][117][118]​​[119]​ Apesar desses dados, com frequência os médicos prescrevem inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) aos pacientes com anorexia nervosa, provavelmente por falta de conhecimento da base de evidências, frustração com as opções de tratamento limitadas para essa população clínica e pelo perfil de risco relativamente baixo desses medicamentos.[120]

Outros tipos de medicamentos, inclusive aqueles que estimulam o apetite em outras populações clínicas, foram analisados em pequenos ensaios de anorexia, mas não apresentaram nenhum benefício significativo.

Acredita-se que a desnutrição presente em indivíduos com anorexia contribua para a baixa resposta a medicamentos que aliviam os sintomas em outros grupos clínicos. Além de os medicamentos psiquiátricos serem ineficazes, os medicamentos com hormônio exógeno administrados por via oral não são eficazes para aprimorar a saúde óssea em indivíduos abaixo do peso com anorexia.[121]

Comorbidades

A ideação suicida é comum na anorexia nervosa; 20% das mortes entre adultos com anorexia nervosa são atribuídas a suicídio.[71] A probabilidade de suicídio ou evidências de autolesão indicam necessidade de avaliação psicossocial urgente.[69] Transtornos de ansiedade ou de humor e transtorno obsessivo compulsivo são as comorbidades mais comuns em pacientes com anorexia.[69] Essas condições podem ser difíceis de diagnosticar por causa da sobreposição entre seus sintomas e os da anorexia. Em consequência disso, em casos de anorexia, é preferível ajudar os indivíduos a normalizarem o peso antes de confirmar os diagnósticos de transtornos de humor e/ou ansiedade. Embora os ISRSs e outros antidepressivos sejam efetivos para tratar os transtornos de humor e ansiedade nos indivíduos com peso saudável, esses medicamentos não são tão efetivos nos casos de baixo peso.[122] Sempre que possível, o uso de medicamentos para tratar doenças comórbidas deve ser evitado em pacientes com anorexia nervosa até que eles estejam nutridos novamente, pois o ganho de peso costuma estar associado a melhora significativa dos sintomas de comorbidades, incluindo depressão e obsessividade. Se os sintomas comórbidos significativos persistirem após a restauração total do peso e sugerirem a existência de uma condição comórbida, o tratamento psicológico e farmacológico deve ser baseado em intervenções baseadas em evidências para a doença.

Como os pacientes com anorexia nervosa normalmente exibem anormalidades cardiovasculares quando têm baixo peso, como hipotensão ortostática, bradicardia e intervalo QT prolongado, os medicamentos com efeitos cardíacos adversos conhecidos devem ser evitados até que as anormalidades cardiovasculares sejam resolvidas. Os medicamentos com efeitos potencialmente adversos incluem os ISRSs (por exemplo, citalopram, escitalopram), os antipsicóticos atípicos (por exemplo, olanzapina) e os antidepressivos tricíclicos (por exemplo, clomipramina).[123][124]

Os transtornos relacionados ao uso de substâncias também podem ser comórbidos com a anorexia. O uso de substâncias é mais comum entre indivíduos com o subtipo ingestão/purgação que entre aqueles com o subtipo restritivo.

Atividade física

É comum uma prática mais intensa de atividade física pelos indivíduos com anorexia, mas ela pode alcançar níveis excessivos. A atividade pode incluir exercícios formais, como corrida, agachamento ou outras atividades calistênicas, ou passar tempo em uma academia de ginástica. Entre os indivíduos com anorexia, a atividade também pode incluir caminhadas em longas distâncias em vez de usar outros meios de transporte, ou subir escadas em vez de usar o elevador. Pode ser que os pacientes não informem os médicos sobre essas atividades quando perguntarem sobre "exercícios", e pode ser necessário perguntar especificamente sobre os diferentes tipos de atividade física. Além disso, os pacientes podem sacudir as pernas ou mover os músculos enquanto estiverem sentados, comendo ou conversando. Recomenda-se limitar a atividade física durante o tratamento para restauração do peso, e a reintrodução da atividade deve ser analisada com cuidado. Para as pessoas com anorexia nervosa gravemente abaixo do peso, os exercícios devem sempre ser cuidadosamente supervisionados e monitorados. Mesmo com o peso restaurado, é recomendável redefinir a meta para que ela represente um condicionamento físico, e não apenas a perda do peso.[68]

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