Abordagem
O diagnóstico exige a obtenção de uma história completa do paciente e, se possível, dos familiares e amigos. O tratamento é mais bem-sucedido se a anorexia nervosa for detectada precocemente, o que geralmente é difícil.[66][67] A detecção dos transtornos alimentares nos estágios iniciais, quando os sintomas psicológicos e físicos são sutis, pode ser desafiadora para os médicos de atenção primária.
De acordo com as orientações dos EUA, a avaliação inicial de uma pessoa com um possível transtorno alimentar deve incluir a avaliação de vários fatores, inclusive, entre outros:[68]
O histórico de altura e peso da pessoa
A história de comportamentos relacionados à alimentação; por exemplo, alimentação restritiva, evitação de alimentos, padrões e mudanças no repertório alimentar
Sua história de comportamentos compensatórios; por exemplo, exercícios físicos, comportamentos de purga (inclusive uso de laxantes, vômitos autoinduzidos)
Porcentagem de tempo preocupado com alimentação, peso e forma corporal
Qualquer tratamento e resposta ao tratamento prévios para um transtorno alimentar
Qualquer história familiar de transtornos alimentares, outras doenças psiquiátricas e quadros clínicos
Em qualquer grupo, os casos podem permanecer indetectados se os médicos omitirem perguntas específicas sobre alimentação, história de peso e cognições associadas. Além disso, os pacientes podem não revelar os sintomas da doença. Se os médicos suspeitarem de anorexia nervosa, é essencial fazer uma avaliação de risco para analisar um risco iminente à vida; lembre-se de que as pessoas podem parecer enganosamente bem, mesmo na presença de uma anorexia nervosa grave. Resultados normais em exames de sangue e níveis de energia relativamente preservados não devem ser vistos como motivos de tranquilização.[69]
História clínica
As pessoas com anorexia nervosa podem ter muita vergonha do transtorno alimentar que apresentam.[69] Muitas vezes elas minimizam ou simplesmente negam a presença de uma dieta extrema e de outros comportamentos relacionados à doença. É pouco provável que os pacientes procurem tratamento para a anorexia nervosa em si, mas podem queixar-se de sintomas relacionados, tais como amenorreia, fadiga e tontura.[69] Portanto, é essencial obter a história colateral de familiares, amigos e registros de atenção primária. É possível que familiares já tenham identificado e estejam preocupado com a perda de peso do paciente e outras sintomas associados. Em qualquer situação, na entrevista, uma resistência ao ganho de peso e a distorção da imagem corporal podem ser aparentes. O paciente pode se fixar em áreas específicas de sobrepeso no corpo, mas reconhecer uma magreza geral ou negar por completo que seu peso esteja abaixo do normal.
A avaliação psiquiátrica inicial deve ter como objetivo quantificar os comportamentos alimentares e de controle do peso (por exemplo, frequência, intensidade ou tempo gasto em restrição alimentar, compulsão alimentar, purga, exercícios físicos e outros comportamentos compensatórios). Isso é útil como parte da avaliação inicial para determinar a gravidade dos comportamentos de transtorno alimentar e dos sintomas associados, e pode incluir o uso de escalas de classificação formais.[68] Os hábitos alimentares devem ser avaliados em mais detalhes. Alguns indivíduos com anorexia nervosa seguem dietas vegetarianas ou veganas mais restritivas. É útil determinar se o início da anorexia nervosa coincide com uma dieta vegetariana ou vegana. Em caso afirmativo, essa escolha pode ser responsável por parte do transtorno, podendo ser aconselhável desencorajar o paciente de adotar essa opção alimentar. Se a dieta vegetariana ou vegana tiver sido adotada claramente antes do início da anorexia nervosa, talvez seja possível ajudar o paciente a seguir essa dieta, mas com atenção especial à necessidade de assegurar um consumo adequado de calorias.
Na anamnese, deve-se identificar o subtipo diagnóstico, se é restritivo ou do tipo compulsão periódica e/ou purgativo. Os indivíduos com o subtipo restritivo seguem a dieta rigorosamente e podem também concentrar-se na queima de calorias através de exercícios. Os indivíduos com o subtipo de compulsão periódica/purgativo restringem as calorias, mas também se envolvem em comportamentos periódicos de compulsão alimentar e/ou purgativos. Os indivíduos com o subtipo de compulsão periódica/purgativo também têm maior probabilidade de fazerem uso indevido de laxantes, diuréticos e enemas.
O entrevistador deve também avaliar as doenças psiquiátricas comumente concomitantes, o que é importante para o planejamento do tratamento, uma vez que as comorbidades psiquiátricas requerem tratamento e estão associadas a piores desfechos e a maior mortalidade.[68] O transtorno obsessivo compulsivo é frequente entre os indivíduos com anorexia nervosa, e o risco ao longo da vida de transtornos por uso de substâncias pode chegar a 50%.[70] A depressão e a distimia também são transtornos psiquiátricos comórbidos comuns. É importante fazer uma avaliação cuidadosa do risco de suicídio.[68] A ideação suicida é comum; 20% das mortes entre adultos com anorexia nervosa é atribuída ao suicídio.[71] Nas crianças e adolescentes, recomenda-se uma avaliação da probabilidade de suicídio como parte de uma avaliação psicossocial mais completa; uma avaliação do lar, da educação, atividades, medicamentos/dieta, sexualidade, probabilidade de suicídio/depressão é recomendada de acordo com as orientações dos EUA.[72]
A avaliação de comorbidades clínicas é importante, inclusive quadros clínicos que possam aumentar a mortalidade e afetar o tratamento (por exemplo, diabetes mellitus) e aqueles que possam aumentar o risco de transtornos alimentares e/ou sugerir a presença de um diagnóstico alternativo (por exemplo, doença celíaca ou doença inflamatória intestinal).[68]
Em pacientes pré-púberes com início súbito de AN surgindo logo depois de uma infecção por estreptococos aparente, devem ser considerados PANDAS (paediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcal infection [transtornos neuropsiquiátricos autoimunes pediátricos associados à infecção por estreptococos]).[73]
Deve-se avaliar a função menstrual, pois é comum haver amenorreia em meninas e mulheres com anorexia nervosa.[68] Observe se a paciente está tomando anticoncepcionais orais, pois o sangramento uterino regular devido aos efeitos induzidos por anticoncepcionais pode mascarar o hipogonadismo e levar a paciente a acreditar que seu sistema reprodutor está funcionando normalmente.
Exame físico
Nos estágios iniciais da doença, o exame físico e os exames laboratoriais costumam apresentar resultados normais; mais tarde, no entanto, sinais físicos e resultados de exames laboratoriais podem ser úteis para determinar a gravidade e um risco de vida iminente.[74] Deve-se registrar o peso e medir a altura.[68] Se o paciente tiver um peso significativamente abaixo do normal para a idade e altura ou se houver grande suspeita de doença, deverão ser programadas consultas semanais para o registro dos sintomas e pesos. Além disso, um índice de massa corporal (IMC) <17.5 kg/m² em um adulto ou abaixo do 5º percentil na calculadora de IMC por idade para crianças e adolescentes dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA merece atenção especial.[75] Deve-se notar que, ao usar a calculadora de índice de massa corporal (IMC) por idade dos CDCs, o médico deve determinar se o paciente ainda permanece na respectiva curva de crescimento.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Altura e peso de uma garota entre as idades de 10 a 14.5 anos, traçados em contraste com os percentis de idade. Ela se sentiu mal aos 12 anos de idade e começou a perder peso. Ela só foi diagnosticada 2 anos mais tarde, aos 14 anos de idade. O médico teve dificuldade em reconhecer a perda de peso uma vez que a paciente não aumentou a altura nesse período de 2 anos.Do acervo pessoal de Pauline S. Powers [Citation ends].
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Percentis do índice de massa corporal (IMC) para meninos (2 a 20 anos)
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Percentis do índice de massa corporal (IMC) para meninas (2 a 20 anos)
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Um IMC <13 kg/m² em adulto e um IMC inferior a 70% do IMC predito para a idade em uma criança indicam risco de vida iminente. Observe que a taxa de perda de peso também é importante; perda de >1 kg por semana por 2 semanas consecutivas indica causa particular de preocupação.[69]
O exame físico deve prestar atenção especial aos sinais vitais, uma vez que anormalidades podem indicar uma instabilidade clínica que justifique um maior nível de cuidado.[68]
O seguinte conjunto de observações é recomendado de acordo com a orientação dos EUA:[68]
Temperatura
Frequência cardíaca em repouso
Pressão arterial
Pulso ortostático
Pressão arterial ortostática
Os sinais vitais podem ser perceptíveis para baixa temperatura, menor frequência cardíaca e pressão arterial. Temperatura central de <35.5 ℃ e frequência cardíaca abaixo de 40 são marcadores de alto risco de vida iminente.[69] Hipotensão ortostática pode ser observada, especialmente entre adolescentes afetados; a hipotensão postural com síncope recorrente é outra causa particular de preocupação e, normalmente, é observada em conjunto com anormalidades na ecocardiografia enquanto a desnutrição persistir.[69]
Observe o paciente em busca de sinais de desnutrição e procure evidências de comportamentos de purgação.[68] A distribuição de massa de gordura pode ser nitidamente baixa, com estruturas ósseas protuberantes, como a escápula. Alguns pacientes desenvolvem uma penugem corporal, denominada lanugo, no tronco, nos membros ou na face. No exame oral, os pacientes que provocam vômitos frequentes podem apresentar erosão do esmalte dentário e glândulas salivares edemaciadas.
Exames laboratoriais
Os exames laboratoriais recomendados incluem:[68][72]
Hemograma completo
Perfil bioquímico sérico (eletrólitos)
testes da função tireoidiana
Testes de função hepática
Glicose sanguínea
Urinálise
Resultados de laboratório não são necessários para a avaliação diagnóstica, mas são úteis para avaliar a gravidade da doença e recomendar o ambiente de tratamento adequado (por exemplo, hospitalar ou outro programa de tratamento estruturado versus tratamento ambulatorial).
O hemograma completo pode mostrar leucopenia e, possivelmente, outras celularidades baixas; a bioquímica sérica pode mostrar hipocalemia, hipocloremia, níveis séricos anormais de bicarbonato ou níveis elevados de ureia, principalmente nos pacientes que praticam consistentemente a purgação por vômito ou uso indevido de laxantes. Como parte dos sintomas da doença, pode ocorrer hiponatremia em indivíduos que bebem grandes volumes de água.
Quando presente, a hipofosfatemia é particularmente preocupante e pode indicar presença de (ou vulnerabilidade à) "síndrome da realimentação", um perigoso estado de deficiência nutricional, alteração da função cognitiva e insuficiência cardíaca congestiva. Níveis elevados de ureia podem indicar desidratação ou ser um indício de anormalidades renais. Pode haver elevação da amilase sérica em indivíduos que praticam a purgação por vômitos.
A urinálise pode ser útil para avaliar o estado de hidratação; além disso, pode haver presença aguda de cetonúria, indicativa de semi-inanição.
A hipoglicemia (glicose <3 mmol/L) também indica inanição, normalmente em conjunto com cetonas elevadas, e representa uma causa significativa de preocupação; se presente, verifique se há diagnósticos adicionais (por exemplo, sepse) ou diagnósticos alternativos (por exemplo, doença de Addison, uso indevido de insulina).[69]
A maioria das anormalidades laboratoriais melhora mediante realimentação supervisionada para recuperação do peso. Anormalidades mais significativas, como a hipofosfatemia ou a hipocalemia grave, possivelmente acarretam risco à vida e podem exigir suplementação nutricional específica.[69]
As avaliações laboratoriais devem ser repetidas nos pacientes hospitalizados para monitorar a evolução e a gravidade da doença. Os pacientes ambulatoriais também podem precisar de avaliação laboratorial periódica. Nas pessoas com irregularidade ou interrupção menstrual, considere medir os níveis de hormônios (por exemplo, estrogênio, hormônio folículo-estimulante, hormônio luteinizante, prolactina e hormônio estimulante da tireoide, bem como um teste de gravidez urinário ou sérico) para descartar outras causas de amenorreia.[68] Nos homens, considere medir os níveis de testosterona. A orientação do Reino Unido recomenda considerar uma densitometria óssea após 1 ano de baixo peso nas crianças e jovens (ou antes, se apresentarem dor ou fraturas ósseas recorrentes) e após 2 anos de baixo peso nos adultos (ou antes, se apresentarem dor ou fraturas ósseas recorrentes).[67] De acordo com a orientação dos EUA, os médicos devem considerar a densitometria óssea para as crianças e as adolescentes com amenorreia por mais de 6-12 meses.[68][72]
Os exames subsequentes a serem considerados incluem um ECG, que é recomendado em todos os pacientes com transtorno alimentar restritivo, pacientes com comportamento de purgação intenso e pacientes que estiverem tomando medicamentos conhecidos por prolongarem os intervalos QTc.[67][68]
O ECG pode ser solicitado inicialmente, se o paciente estiver gravemente enfermo, necessitando de hospitalização (por exemplo, suspeita de distúrbio eletrolítico, desnutrição grave, desidratação intensa ou sinais de falência incipiente de órgãos).[67] As características de alto risco no ECG incluem QTc prolongado (<18 anos: homens >450 ms, mulheres >460 ms; ≥18 anos: homens >430 ms, mulheres >450 ms), frequência cardíaca <40 bpm, e arritmia associada com desnutrição e/ou distúrbios eletrolíticos.[69]
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