Abordagem
O diagnóstico de mielite transversa (MT) é feito subsequentemente à história, ao exame físico, à ressonância nuclear magnética (RNM) cranioencefálica e da medula espinhal e à análise do líquido cefalorraquidiano (LCR). Outras causas possíveis dos sintomas, como compressão da medula espinhal e isquemia, precisam ser excluídas. Os exames adicionais são baseados nos resultados da RNM e do exame do LCR e têm o objetivo de identificar se a síndrome de medula espinhal é decorrente de um distúrbio inflamatório, infecção ou etiologia paraneoplásica, além de identificar sua causa.[37] Eles incluem testes de anticorpos contra a aquaporina-4 (AQP4) e glicoproteína mielina-oligodendrócito (MOG), colorações especiais em LCR, culturas e testes para infecções, radiografia torácica, tomografia computadorizada (TC) do tórax, sorologias virais, autoanticorpos para exames de lúpus eritematoso sistêmico (LES) ou síndrome de Sjögren, potencial evocado visual e/ou tomografia de coerência óptica e biópsias.
Quadro clínico
O quadro clínico típico que conduz à consideração de MT inclui o seguinte:[1][23][24][37][38]
Paraparesia ou quadriparesia progressiva
Perda sensorial e/ou parestesias
Disfunção autonômica (intestinal e vesical)
Uma evolução de sinais ao longo de vários dias.
A síndrome clínica geralmente possui características bilaterais, embora estas possam ser assimétricas.[1][6][37] Pode ocorrer dor radicular ou segmentar no nível da lesão espinhal. Podem ocorrer dorsalgia, sinal de L'Hermitte (parestesias nos membros, suscitadas por flexão do pescoço) e espasmos tônicos paroxísticos (espasmos motores estereotípicos repetitivos de ≥1 membros e/ou tronco, cada um deles com duração de 30-45 segundos).[37]
Ocorrem perda sensorial vibratória e proprioceptiva e modalidades de dor em vários graus no nível abaixo da lesão e o exame físico geralmente revela um nível sensorial na lesão ou em alguns segmentos vertebrais caudais à mesma.[2] Pode ocorrer incontinência ou retenção urinária e intestinal. Em casos graves e de evolução rápida, pode ocorrer paralisia associada à arreflexia ("choque medular"), mas isso geralmente evolui para um padrão típico de paraparesia/quadriparesia espástica com hiper-reflexia e sinais de Babinski. Casos graves de mielite ascendente comprometendo a medula espinhal cervical podem causar insuficiência respiratória neurogênica.[4] A MT longitudinalmente extensa pode produzir soluços, decorrentes do comprometimento da medula, e náuseas e vômitos persistentes, decorrentes do comprometimento da área postrema.
Interpretação da síndrome clínica da medula espinhal
As síndromes características da medula espinhal (síndrome medular completa, síndrome de Brown-Sequard, síndrome do cone medular) estão associadas a patologias distintas e podem ajudar no diagnóstico diferencial.
Uma síndrome medular completa, identificada pela perda de todas as modalidades motoras e sensoriais abaixo do nível da lesão, está associada a mielite "necrosante" aguda e grave.
A síndrome de Brown-Sequard (parcial ou completa) sugere esclerose múltipla (EM). Ela é identificada pela detecção de uma disfunção dos tratos corticoespinhais (fraqueza espástica, hiper-reflexia e um reflexo cutâneo-plantar em extensão) e das colunas dorsais (perda da vibração e da propriocepção) ipsilaterais à lesão e disfunção do trato espinotalâmico (perda de sensibilidade à dor e à temperatura) contralateral à lesão.
Algumas síndromes mielíticas virais ou pós-virais estão associadas a uma síndrome do cone medular, que apresenta fraqueza e hiper-reflexia dos membros inferiores relativamente simétrica, reflexos patelares preservados e reflexos aquileus afetados, anestesia perianal ou em sela relativamente simétrica e disfunção sexual e vesical precoces. O envolvimento do cone medular também é frequente na MT associada com IgG anti-MOG.[39]
Exclusão de mielopatia compressiva
A primeira etapa na avaliação de um paciente com síndrome da medula espinhal aguda ou subaguda é descartar uma lesão compressiva, como uma neoplasia.[1][23] A melhor forma de fazê-lo é por meio de uma RNM de toda a medula espinhal, por ser um exame rápido, altamente sensível e específico para a detecção de lesões compressivas e por poder identificar múltiplos locais de compressão e evitar armadilhas, como a falsa localização de sinais neurológicos.[37]
Interpretação da RNM da medula espinhal
Estando descartadas lesões compressivas extrínsecas, a RNM da medula espinhal deve ser avaliada quanto à presença de uma ou mais lesões intrínsecas. A presença dessas lesões confirma a suspeita clínica de mielopatia e fornece pistas para sua etiologia.[1][23] Se a RNM não revelar uma anormalidade de sinal hiperintenso no interior da medula, deverá imediatamente ser realizada uma reavaliação do diagnóstico de mielopatia.[23] Se uma ou mais lesões forem detectadas, o número de lesões, seu tamanho e distribuição poderão ajudar no diagnóstico diferencial.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Ressonância nuclear magnética (RNM) ponderada em T2 sagital da medula espinhal cervical mostrando lesão de mieliteDo acervo pessoal de Dean M. Wingerchuk, MD, MSc, FRCP(C); usado com permissão [Citation ends].[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Ressonância nuclear magnética (RNM) ponderada em T2 axial da medula espinhal cervical mostrando lesão de mieliteDo acervo pessoal de Dean M. Wingerchuk, MD, MSc, FRCP(C); usado com permissão [Citation ends].
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Ressonância nuclear magnética (RNM) ponderada em T2 sagital mostrando lesão de mielite relacionada à esclerose múltiplaDo acervo pessoal de Dean M. Wingerchuk, MD, MSc, FRCP(C); usado com permissão [Citation ends].
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Ressonância nuclear magnética (RNM) ponderada em T2 sagital mostrando lesão de mielite transversa longitudinalmente extensaDo acervo pessoal de Dean M. Wingerchuk, MD, MSc, FRCP(C); usado com permissão [Citation ends].
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Ressonância nuclear magnética (RNM) ponderada em T1 sagital mostrando realce de lesão relacionada à neuromielite ópticaDo acervo pessoal de Dean M. Wingerchuk, MD, MSc, FRCP(C); usado com permissão [Citation ends].
Lesões longitudinalmente extensas sugerem NMOSD, enquanto lesões de segmento curto são típicas de EM. No entanto, em até 14% dos pacientes com NMOSD, a mielite inicial pode estar associada a uma lesão de segmento curto.[40][41]
A localização das lesões na RNM axial também pode ser útil na determinação da etiologia da MT. Em pacientes com NMOSD associado a IgG anti-AQP4, as lesões estão localizadas centralmente, ou centralmente e perifericamente, e envolvem mais de 50% da área da medula espinhal. As lesões da EM envolvem tipicamente <50% da área transversal da medula espinhal, geralmente localizada nas porções dorsal e lateral.[8] A mielite associada à IgG anti-MOG pode ter um "sinal em H" distinto, com hiperintensidade em T2 restrita à substância cinzenta. O envolvimento do cone também é comum.[39] As mielopatias paraneoplásicas frequentemente apresentam alterações específicas do trato (tratopatia), com hiperintensidade em T2 das colunas dorsais ou do trato corticoespinhal.[42] A sarcoidose da medula espinhal pode apresentar realce subpial dorsal e realce do canal central, que nas imagens axiais tem a aparência de um tridente.[43]
Definição da presença ou ausência de inflamação do sistema nervoso central (SNC)
Deve ser obtido exame do LCR. As anormalidades no LCR que sugerem mielite inflamatória (por exemplo, mielite desmielinizante, paraneoplásica ou outra inflamatória) incluem pleocitose leve, proteína elevada, índice de IgG elevado e presença de bandas oligoclonais. A presença de células anormais pode indicar uma neoplasia.[1][23][8]
Determinação da extensão do comprometimento do SNC
A RNM cranioencefálica com administração intravenosa de gadolínio pode determinar se a doença está restrita à medula espinhal ou se compromete outras regiões do SNC. Ela pode revelar lesões na substância branca em presença de doenças desmielinizantes como esclerose múltipla (EM) ou NMOSD ou outros padrões de lesão que podem enfaticamente sugerir um diagnóstico específico (por exemplo, sarcoidose). Os potenciais evocados visuais e/ou a tomografia de coerência óptica podem detectar envolvimento subclínico dos nervos ópticos.[44][1][45] MT completa ou parcial com RNM cranioencefálica e estudos do LCR normais sugere uma síndrome mielítica isolada.[1][46]
Exames adicionais baseados nos resultados da RNM e do LCR
Após a análise positiva da RNM e do LCR, é importante determinar a causa da mielite. Com base na história clínica e no exame físico, os pacientes devem ser examinados quanto à ocorrência de infecção, doenças inflamatórias e autoimunes sistêmicas e também neoplasia maligna, se houver suspeita de mielopatia paraneoplásica.[37]
Autoanticorpos associados à MT longitudinalmente extensa: anticorpo IgG anti-AQP4 e IgG anti-MOG no soro.
Infecção: os testes devem incluir culturas do LCR, colorações especiais do LCR, culturas séricas e radiografia torácica. O teste para HIV é recomendado em pacientes de alto risco.[23]
Doença autoimune ou inflamatória sistêmica: os testes devem incluir autoanticorpos séricos e marcadores para doenças inflamatórias sistêmicas, urinálise (para LES) e radiografia torácica. A enzima conversora de angiotensina sérica e do LCR pode estar elevada em pacientes com sarcoidose, mas esses são testes insensíveis.
Neoplasia maligna: deve ser obtido um painel de anticorpos paraneoplásicos no soro e no LCR, se houver suspeita de mielopatia paraneoplásica.[42] Anticorpos específicos podem orientar a investigação de neoplasia maligna, mas os testes geralmente incluem radiografia torácica, TC de tórax ou corpo e/ou tomografia por emissão de pósitrons. A citologia do LCR e a citometria de fluxo no LCR podem ser úteis para diagnosticar tumores intramedulares. Pacientes com carcinomatose leptomeníngea podem precisar de até 3 exames seriados do LCR para descartar resultados falso-negativos.
Consideração de uma tentativa terapêutica com corticosteroides
Pode ser obtido um diagnóstico específico após a conclusão das etapas anteriores; nesse caso, o tratamento pode ser instituído. Em um estudo retrospectivo, o diagnóstico final foi MT idiopática em 15.6% dos pacientes que apresentaram MT aguda.[24] Em alguns casos, o diagnóstico permanece obscuro, mas existem dados que dão suporte a uma provável mielopatia inflamatória. O tratamento empírico com corticosteroides pode ser razoável nesse momento.[23] É importante descartar mielite piogênica, abscesso epidural e abscesso/compressão/meningomielite da medula espinhal decorrente de TB no diagnóstico diferencial antes de tentar corticoterapia. A melhora clínica sugere que a fisiopatologia subjacente seja, na realidade, inflamatória/desmielinizante; no etanto, deve ser considerado linfoma do SNC.
Consideração de biópsia da medula espinhal
Em casos de mielite/mielopatia progressiva associada a uma lesão crescente ou sem resposta clínica ao tratamento, deve ser considerada a realização de uma biópsia diagnóstica para detecção de infecção, doença granulomatosa ou neoplasia.[23]
Avaliação do risco de recorrência
Se o diagnóstico for uma MT inflamatória, a RNM cerebral e os testes sorológicos (anticorpos IgG anti-AQP4 e igG anti-MOG) são úteis para determinar o risco de recorrência. Para pacientes com uma lesão da medula espinhal curta (1 ou 2 segmentos), a presença de lesões típicas da substância branca na RNM cranioencefálica sugere um alto risco de inflamação recorrente do SNC e EM confirmada.[3][47][48][49]
A mielite longitudinalmente extensa, definida por uma lesão que se estende ao longo de três ou mais segmentos vertebrais contíguos, apresenta maior risco de recorrência na presença de autoanticorpos séricos anti-AQP4.[5][8] Portanto, os testes para detectar a presença de autoanticorpos anti-AQP4 são essenciais para determinar se a terapia preventiva é necessária.
Em crianças, os fatores de risco para recidiva e deficiência após mielite transversa (MT) idiopática incluem sexo feminino, deficiência mais grave no início, realce com gadolínio da lesão da medula espinhal na RNM, ausência de pleocitose do LCR e ausência de lesão cervical ou cervicotorácica na RNM da coluna cervical.[50]
O uso deste conteúdo está sujeito ao nosso aviso legal