Abordagem

Ambas as doenças podem se manifestar pela primeira vez em cenários de atendimento de emergências, bem como de atenção primária. É importante estabelecer uma relação de afinidade com os pacientes demonstrando interesse e preocupação genuínos; também é vital um exame físico e neurológico completo. Avalie as condições psiquiátricas comórbidas associadas, pois o tratamento dessas comorbidades beneficia o funcionamento global e a recuperação. Considere o diagnóstico diferencial completo, incluindo explicações biológicas, psicológicas e sociais. Inclua os transtornos neurológico funcional ou de sintomas somáticos no diagnóstico diferencial antes de se proceder com a investigação, e não após exames médicos para descartar outros problemas clínicos.[64]

Utilize os exames médicos de maneira criteriosa mas, à apresentação inicial, os pacientes devem receber testes laboratoriais para se descartar um diagnóstico diferencial razoavelmente amplo. Explique que os resultados normais dos exames não significam que nada está errado, mas que outras doenças preocupantes específicas foram descartadas ao diagnóstico diferencial ou que, às vezes, podem ser encontradas anormalidades que são clinicamente insignificantes. A avaliação neuropsicológica geralmente inclui testes cognitivos e de personalidade, mas ela não é necessária para todos os pacientes.

História

Prestar atenção a como os pacientes relatam suas histórias ajudará a orientar o diagnóstico e apontará para fatores de risco comuns de alexitimia (dificuldade de identificar e descrever sentimentos) e neuroticismo (tendências de vivenciar afeto negativo e sofrimento ao longo da vida).[60][61][62] Problemas de processamento emocional são típicos de ambos os transtornos, seja por conta de uma incapacidade de reconhecer as emoções ou de uma tendência a suprimir e evitar emoções, ou devido a altos neuroticismo e reatividade emocional.

  • O médico deve considerar se os pacientes descrevem sintomas específicos em detalhes ou se eles se concentram em como os sintomas têm afetado sua qualidade de vida.

  • A apresentação dos pacientes com somatização pode parecer vaga, dramática ou estranha.[63]

Transtorno neurológico funcional

Os fatores de risco para transtorno neurológico funcional são heterogêneos e inespecíficos, e a causa subjacente ainda não é totalmente compreendida. Embora estressores psicológicos recentes e remotos possam ser importantes fatores de risco e possam perpetuar os sintomas, os pacientes podem se apresentar sem estressores identificáveis.[30] Em alguns pacientes, os sintomas são desencadeados por lesão física, cirurgia ou outra alteração neurológica, como a enxaqueca.[31]

Use o modelo biopsicossocial como uma estrutura para identificar vulnerabilidades predisponentes, precipitantes agudos e fatores perpetuantes; preste atenção especial aos fatores com implicações prognósticas e para o tratamento, como:[3]

  • Dor e fadiga comórbidas

  • Comorbidades psiquiátricas

  • Estressores psicossociais ativos

  • Respostas comportamentais impróprias

  • Crenças inúteis acerca de doenças.

Eventos de vida extremamente estressantes que podem preceder o início incluem problemas familiares/de relacionamento e problemas de saúde.[32][65]​ Os eventos de vida adversos mais remotos (frequentemente na infância) incluem abusos físicos e sexuais, bem como negligência emocional.[30] Embora perguntar sobre eventos adversos da vida possa ajudar no planejamento do tratamento, seja sensível ao fato de que isso pode causar sofrimento e pode ser percebido como intrusivo e inapropriado, especialmente se houver uma história de interações prévias com profissionais da saúde que tiverem explorado isso e que tiverem sido vistas de forma negativa pelo paciente. Siga as pistas dadas pelo paciente e proceda com sensibilidade; considere se pode ser melhor para esta discussão esperar até uma consulta posterior.[66]

Transtorno de sintomas somáticos

O transtorno de sintomas somáticos pode começar sem nenhum precipitante isolado, e os pacientes demonstram vários comportamentos típicos da doença. Isto inclui comportamento em resposta à indisposição que visa a aliviar sintomas de doenças e isso resulta em concentração da atenção em doenças (por exemplo, consultar médicos ou ir a prontos-socorros, evitar fatores ambientais percebidos como desencadeantes e ajustar o estilo de vida para se prevenir contra doenças. Há excesso de tempo e energia dedicados a sintomas somáticos ou a problemas de saúde. Embora qualquer dado sintoma somático possa não estar presente continuamente, o estado sintomático é persistente (geralmente >6 meses). Um subconjunto de pacientes com transtorno de sintomas somáticos apresenta sintomas predominantemente dolorosos (previamente chamados de transtorno de dor).

As outras pistas para o diagnóstico de transtorno de sintomas somáticos na anamnese incluem:[2]

  • A história da doença pode ser vaga e/ou inconsistente

  • As preocupações não são aliviadas apesar de uma alta utilização de assistência médica/resultados de investigação tranquilizadores

  • O paciente descreve verificar frequentemente seu próprio corpo

  • O paciente atribui sensações normais a uma doença clínica.

Muitos pacientes com transtorno neurológico de sintomas somáticos ou funcionais também têm queixas cognitivas: por exemplo, esquecimento de conversas inteiras, uso não intencional de palavras erradas, esquecimento de como fazer atividades ou tarefas básicas que deveriam saber, perda da capacidade de realização de múltiplas tarefas ao mesmo tempo e problemas de memória de curto prazo. Os pacientes com transtorno cognitivo funcional podem ser erroneamente diagnosticados como tendo os estágios iniciais de um distúrbio neurodegenerativo.[67][68][69]

A avaliação de eventuais comorbidades (em conjunto com critérios diagnósticos relevantes) também é necessária.[2] Os diagnósticos comórbidos típicos incluem transtornos de humor, transtorno de pânico, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno do estresse pós-traumático, transtornos dissociativos, fobias sociais ou específicas, transtornos obsessivo-compulsivos e transtornos de personalidade.[4][5][6]​ Os transtornos afetivos e de ansiedade podem se apresentar com sintomas somáticos. Parentes próximos com doença psiquiátrica ou somática grave também são comuns.[4]

Ao longo da história, é importante que os médicos reconheçam a realidade dos sintomas do paciente e, se for o caso, expliquem que a presença de um transtorno psiquiátrico ou neuropsiquiátrico não negaria a realidade de seu sofrimento físico e emocional.[70]

Exame

Em primeiro lugar, realize um exame neurológico completo para os pacientes com suspeita de transtorno neurológico funcional, e um exame clínico/neurológico/psiquiátrico completo para os pacientes com suspeita de transtorno de sintomas somáticos. O consenso dos especialistas é que a avaliação diagnóstica formal para o transtorno neurológico funcional deve incluir um neurologista/neuropsiquiatra e/ou outro médico com experiência em exame neurológico; portanto, o encaminhamento a um especialista geralmente é necessário após uma avaliação inicial na atenção primária.[3][71]

Transtorno neurológico funcional

O transtorno neurológico funcional é diagnosticado com base em características clínicas positivas que demonstrem comprometimento de movimentos voluntários ou sensações na presença de movimentos ou sensações automáticos intactos. Em alguns casos, há incongruência com uma doença fisiopatológica.[66] Em geral, os distúrbios do movimento funcionais revelam variabilidade na amplitude e na frequência dos movimentos, movimentos inconsistentes, direção e padrão variáveis dos movimentos, sugestionabilidade, distraibilidade, supressão e resistência ativa a movimentos passivos.[72]

Com frequência, o diagnóstico de transtorno neurológico funcional é baseado em uma ou mais (geralmente uma combinação) de características clínicas físicas positivas, como:[66]

Fraqueza funcional nos membros

  • Sinal de Hoover; a fraqueza da extensão do quadril retorna temporariamente ao normal durante a flexão do quadril contralateral contra uma resistência.

  • Sinal do abdutor do quadril; a fraqueza da abdução unilateral do quadril volta ao normal com a tentativa de abdução bilateral do quadril.

[Figure caption and citation for the preceding image starts]: a) Sinal de Hoover; a extensão do quadril é fraca no teste direto (esquerda), mas a força torna-se normal quando há flexão do quadril contralateral contra resistência; b) Sinal do abdutor do quadril; a abdução do quadril é fraca no teste direto (à esquerda), mas a força torna-se normal quando há abdução do quadril contralateral contra resistência (à direita)Stone et al. BMJ. 2020 Oct 21;371:m3745; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@420b1d8a

Tremor funcional

  • Procure evidências de distração e/ou arrastamento com o "teste do arrastamento". Peça ao paciente para copiar movimentos rítmicos de velocidade variável feitos pelo examinador entre o polegar e o indicador usando uma mão e, em seguida, observe a resposta na outra mão. Suspeite de um tremor funcional se o tremor na outra mão parar durante o teste, ou se o tremor "acompanhar" o mesmo padrão rítmico, ou se o paciente for incapaz de copiar o movimento.

[Figure caption and citation for the preceding image starts]: "Teste de arrastamento": observe a outra mão (esquerda do paciente) enquanto o paciente copia os movimentos rítmicos de pinça do examinador com a mão direita; o tremor funcional na mão esquerda cessa durante a tarefaStone et al. BMJ. 2020 Oct 21;371:m3745; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@39ae4424

Distonia funcional

  • Geralmente, se apresenta como uma posição fixa, geralmente um punho fechado ou tornozelo invertido (em contraste com outros tipos de distonia, que geralmente são móveis).

  • A distonia funcional facial geralmente se apresenta com contração episódica do platisma ou orbicular.

[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Distonia funcional; o sombreamento laranja mostra áreas típicas de contração muscular fixa na distonia funcionalStone et al. BMJ. 2020 Oct 21;371:m3745; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@787dda5

Perda funcional da visão

  • As características sugestivas incluem visão tubular (em oposição à cônica); isso significa que o campo visual a 150 cm de distância tem a mesma largura que a 50 cm (enquanto seria esperado que aumentasse de forma cônica com a distância).

  • Os pacientes também podem apresentar "campo espiral" no perímetro de Goldmann, o que significa que quanto mais longo o teste, mais restrito o campo visual se torna.

[Figure caption and citation for the preceding image starts]: a) Um defeito do campo visual tubular a 150 cm que tem a mesma largura que a 50 cm; b) "Campo em espiral" no perímetro de GoldmannStone et al. BMJ. 2020 Oct 21;371:m3745; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@70ac11

Convulsões funcionais[73][74][75][76]

As características sugestivas incluem:

  • Tipicamente as crises têm duração prolongada (>5 minutos)

  • Os olhos podem estar firmemente fechados

  • Choro

  • Hiperventilação durante uma convulsão

  • Agitação lateral da cabeça

  • Pode ser assíncrona com uma qualidade começa/para

  • Pode envolver arqueamento das costas, movimentos pélvicos, gagueira, movimentos motores agitados e fala sussurrada ou com voz de bebê

  • Pode haver um fator desencadeante emocional ou doloroso.

Um vídeo de smartphone feito por um amigo ou familiar pode ajudar no diagnóstico. O monitoramento contínuo por vídeo-eletroencefalograma (EEG) pode ser útil para estabelecer um diagnóstico de convulsões funcionais quando crises típicas são capturadas.

As outras pistas gerais para uma etiologia funcional neurológica em uma variedade de sintomas diferentes incluem:[2][66]

  • Distribuição dos deficits motores ou sensoriais que não estão em conformidade com nenhuma distribuição nervosa, de raiz, troncular ou central (por exemplo, demarcação acentuada no ombro ou na virilha, "separando a linha média")

  • Sensação de fraqueza (ao testar a força motora, ocorre colapso súbito após vários segundos de resistência total)

  • Achados de exame inconsistentes (por exemplo, fraqueza intensa nas pernas em testes de força em pacientes que são capazes de deambular ou pacientes que descrevem sintomas de perda visual, mas que conseguem evitar obstáculos ao caminhar)

  • Achados sensoriais paradoxais (divisão sensorial na linha média e lateralização do diapasão)

  • Pseudoclônus

  • Espasmo de convergência

  • Sintomas de distração

  • Movimentos motores do tipo convulsão generalizada sem perda de consciência

  • Astasia-abasia (capacidade paradoxal de usar as pernas normalmente, exceto na posição ortostática ou ao caminhar)

  • Queixas cognitivas desproporcionais em relação à possível explicação neurológica ou clínica dos sintomas

  • Sintomas dissociativos, como despersonalização, desrealização e amnésia dissociativa, especialmente no início dos sintomas ou durante os ataques.

Frequentemente, coexistem transtornos neurológicos e o transtorno neurológico funcional; os exemplos incluem a doença de Parkinson, a esclerose múltipla e a epilepsia.[8][9][10] Os pacientes diagnosticados com transtorno neurológico funcional podem também desenvolver transtornos neurológicos posteriormente. Portanto, se surgirem novos sintomas, será necessária a repetição de exames neurológicos. Do mesmo modo, no transtorno de sintomas somáticos, consultas regulares e breves com o mesmo clínico geral são preferíveis a investigações e intervenções desnecessárias.

Transtorno de sintomas somáticos

Os objetivos do exame físico são avaliar qualquer afecção clínica geral e monitorar quaisquer alterações ao longo do tempo. Ele também pode fornecer ao paciente a tranquilização de que suas preocupações estão sendo levadas a sério.

Exames laboratoriais

Quando os pacientes apresentam inicialmente novos sintomas físicos, exames laboratoriais podem ser indicados para descartar possíveis doenças clínicas ou neurológicas. Se os exames laboratoriais já tiverem sido realizados e não houver nenhuma alteração nos sintomas, geralmente não será necessário repeti-los.

Nos transtornos de sintomas somáticos ou neurológico funcional estabelecidos, não é necessário repetir e esgotar todas as avaliações clínicas quando houver evidências claras de sintomas neurológicos funcionais ou somáticos funcionais (e nenhuma outra indicação de doenças neurológicas) ao exame neurológico. No entanto, como transtornos neurológicos podem coexistir ou se desenvolver posteriormente, quando surgirem sintomas novos pode ser necessário repetir as avaliações laboratoriais.[74] No transtorno de sintomas somáticos, investigações e intervenções desnecessárias também devem ser evitadas.

Instrumentos de rastreamento

O Questionário sobre a Saúde do(a) paciente (PHQ-9), a Avaliação sobre Transtorno de Ansiedade Generalizada (GAD-7) e o PHQ-15 são medidas breves e bem validadas para detectar e monitorar depressão, ansiedade e somatização.[77]

Também existem vários inventários focados nos sintomas e desenvolvidos para capturar objetivamente construtos ou sintomas psicológicos específicos. Esses incluem o Inventário de Depressão de Beck 2 (BDI-II), o Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) e a Escala de Alexitimia de Toronto (TAS).[78][79][80] Esses são questionários breves de autoavaliação criados para capturar detalhes de experiências de construtos psicológicos isolados, como depressão, ansiedade ou alexitimia. A Escala de Níveis de Consciência Emocional (Levels of Emotional Awareness Scale, LEAS) foi desenvolvida para medir a habilidade e a capacidade de consciência emocional de uma pessoa.[81]

Testes psicológicos e de personalidade

Se os médicos estiverem interessados em obter perfis de personalidade de seus pacientes ou se a necessidade de encaminhamento para avaliação psiquiátrica for incerta, podem ser solicitados testes psicológicos. Eles podem revelar traços psicológicos ou de psicopatologia que talvez contribuam para os sintomas ou possam ser úteis de abordar no tratamento. Eles podem dar suporte ao diagnóstico de um transtorno de sintomas somáticos ou transtornos relacionados, embora o diagnóstico não possa ser feito puramente com base nos testes psicológicos. É necessária uma consulta com um psicólogo ou neuropsicólogo para se realizarem testes psicológicos e de personalidade. Embora esses testes não possam confirmar o diagnóstico, eles podem ser úteis para formular hipóteses positivas sobre os possíveis fatores contribuintes psicológicos ou de personalidade para o desenvolvimento do transtorno neurológico de sintomas somáticos ou do transtorno neurológico funcional. Testes psicológicos padronizados fornecem informações descritivas sobre características de personalidade específicas que podem ser úteis no tratamento, sobre a presença ou ausência de psicopatologia (por exemplo, depressão, ansiedade) e sobre os níveis atuais do funcionalidade cognitiva.

A avaliação neuropsicológica abrangente é útil quando os pacientes apresentam queixas cognitivas e há incerteza sobre se os fatores psicológicos estão contribuindo para os sintomas (por exemplo, quando há suspeita de transtorno cognitivo funcional).[67][68][69] Ela também é útil se existe preocupação com um diagnóstico diferencial (por exemplo, epilepsia) que pode apresentar achados cognitivos. A avaliação neuropsicológica abrangente fornece análise detalhada sobre as habilidades cognitivas atuais, comparação das habilidades em referência a grupos-controle normais ajustados por idade e informações sobre pontos cognitivos fortes e fracos. Os achados típicos são função cognitiva normal ou padrões de anormalidades cognitivas inespecíficas que diferenciam de doença neurológica.[82] Esses achados cognitivos podem estar relacionados a vários fatores, entre eles alguma história neurológica relevante (por exemplo, história de traumatismo cranioencefálico, dificuldade de aprendizagem ou transtorno de deficit da atenção), psicopatologia ou sofrimento psíquico, efeitos do medicamento e até o nível de envolvimento em tarefas durante a avaliação em si.[82][83][84]

Ferramentas de avaliação de personalidade usadas com frequência por psicólogos incluem o Inventário Multifásico de Personalidade de Minnesota 2 (MMPI-2), o Inventário de Avaliação de Personalidade (PAI) e o Inventário Multiaxial Clínico de Millon III (MCMI-III).[85][86][87] Estes são questionários de autoavaliação preenchidos pelos pacientes e interpretados por psicólogos com treinamento em avaliações padronizadas. Essas avaliações devem ser vistas como complementos a uma entrevista psiquiátrica clínica abrangente e a outras informações clínicas e da história, já que nenhum indicador é 100% sensível ou 100% específico para o transtorno neurológico funcional ou para o transtorno de sintomas somáticos.[88]

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