Abordagem

O abuso infantil geralmente é um processo continuado. Se o diagnóstico não for feito com agilidade, as crianças podem continuar sofrendo abusos mais graves, os quais podem ser fatais. Embora não haja um protocolo de rastreamento uniformemente aplicável para o abuso infantil, o rastreamento tem se mostrado útil para apoiar a identificação das crianças em alto risco de abuso.[57][58]​ Uma história detalhada, seguida por um exame físico meticuloso, é crucial para se realizar o diagnóstico de abuso infantil físico. O espectro de lesões causadas por abuso físico pode incluir hematomas, fraturas, lesões orais, mordidas, lesões cranianas ou na medula espinhal, lesões abdominais e queimaduras. O desafio para o médico é distinguir lesões intencionais daquelas que tiverem ocorrido acidentalmente. Encontrar uma ou mais das lesões acima em uma criança deve suscitar uma avaliação adicional completa em busca de outras lesões típicas de abuso.[10]

Muitas crianças que sofreram alguma forma de abuso são atendidas no pronto-socorro ou clínica; contudo, nenhum dos marcadores de rastreamento usados atualmente para identificar crianças que devem ser avaliadas em mais profundidade quanto a possível abuso ou negligência (por exemplo, atendimentos recorrentes, idade, tipo de lesão) foi considerado suficientemente preciso. Portanto, os médicos devem manter um alto nível de suspeita de abuso em crianças feridas que são atendidas no pronto-socorro ou em clínicas com ou sem essas características específicas de abuso.[59]

Regras clínicas de predição estão sendo desenvolvidas para ajudar os profissionais a reduzir a variabilidade associada à forma como a implementação prática destas investigações de abuso afeta as crianças. Uma regra de predição clínica, a regra TEN-4, é altamente específica e sensível para a identificação de hematoma de alto risco que requer uma investigação de abuso em uma população pediátrica em terapia intensiva.[60] Um hematoma no tronco, nas orelhas, no pescoço de uma criança ou em qualquer parte do corpo de um lactente <4 meses de idade (TEN-4) deve ser um indicador para a avaliação de abuso. Duas regras de predição clínica para trauma cranioencefálico violento foram validadas com especificidade e/ou sensibilidade impressionantes para detecção de trauma cranioencefálico violento.[61][62]

História sugestiva de lesão não acidental (LNA)

Determinar se as lesões foram causadas acidentalmente ou se representam abuso pode ser desafiador. Uma história detalhada deve incluir explicações para a lesão presente. As considerações a seguir podem ser úteis para realizar o diagnóstico de LNA:

  • Uma história de trauma inconsistente com as lesões, uma história mutável ou inconsistente, outras lesões coexistentes inexplicadas ou história pregressa de lesões.[2]

  • Lesões que não se enquadram na idade de desenvolvimento da criança (por exemplo, se as crianças ainda não têm independência de mobilidade, elas provavelmente não cairão sobre determinados objetos).[63]​ Os detalhes do mecanismo proposto para a lesão podem ajudar a determinar se a explicação é compatível com o tipo de lesão e o nível de desenvolvimento da criança.

  • Crianças conhecidas dos serviços sociais, principalmente se há presença de fatores de risco relacionados aos pais/cuidador.

  • Deficit no crescimento ou retardo do crescimento pôndero-estatural.[2][41]

  • Pouca ligação entre pais e filhos.

  • Tentativa dos pais de se isentar ou justificar a lesão inadequadamente ou culpar um irmão mais jovem ou animal de estimação.

Para excluir causas não violentas, o médico deve fazer perguntas sobre a história perinatal (incluindo trauma relacionado ao nascimento), qualquer história de prematuridade, fisioterapia e outras causas iatrogênicas possíveis e medicamentos. História médica pregressa de fraturas ou de doença hemorrágica é importante. Perguntas sobre a história familiar de fraturas, esclera azul e surdez podem ajudar a excluir osteogênese imperfeita.[64] Outra história familiar, como distúrbios de coagulação ou doença metabólica, também é importante.

É crucial apurar todas as informações relevantes sobre os familiares e/ou cuidadores da criança, incluindo presença prévia em atenção primária ou secundária, algum registro prévio nos serviços sociais e informações relevantes sobre outros adultos e crianças na residência. Qualquer história de dependência de drogas ou condenações prévias deve ser observada.

Traumatismos cranioencefálicos

A lesão cerebral é uma das consequências mais graves do abuso físico. O trauma cranioencefálico violento (TCV) é a causa mais comum de abuso físico fatal, com a mortalidade variando de 11% a 38%.[24][65][66]​​ Até dois terços daqueles que sobrevivem às lesões ficam com incapacidade em longo prazo, mas esse desfecho foi relatado como ocorrendo em até 82%.[65][67][68][69][70]​​​​ Algumas crianças morrem antes de chegarem ao hospital, e a primeira apresentação é ao patologista.

O TCV e lesões relacionadas podem resultar de várias forças biomecânicas, incluindo apenas agitação, agitação com impacto ou impacto somente.​[15][21]​​​​[65]​ As características de apresentação variam de comprometimento neurológico grave (coma) a sintomas como convulsões, letargia, irritabilidade, vômitos, baixa aceitação alimentar e aumento do perímetro cefálico. Identificar a criança que sofreu abuso que se apresenta com sintomas inespecíficos é particularmente desafiador, resultando em casos ignorados.[71]

Distinguir o TCV do trauma cranioencefálico acidental envolve uma interpretação cuidadosa da história em associação com os sinais e sintomas presentes.[72] Foram desenvolvidas regras de predição clínica para diminuir os casos não diagnosticados de trauma cranioencefálico violento (TCV). Baseadas nessas ferramentas validadas, as características que devem justificar uma preocupação grave para TCV incluem:

  • Hemorragias subdurais em crianças <1 ano de idade[20]

  • Hemorragia subdural bilateral ou inter-hemisférica[61]

  • Traumatismo cranioencefálico significativo sem nenhuma explicação de trauma ou com uma explicação envolvendo uma queda de local baixo (<150 cm) ou lesão trivial

  • Apneia coexistente ou alguma outra forma de comprometimento respiratório agudo[61][62][73]

  • Hematoma coexistente na cabeça ou pescoço[61][62][73]

  • Hematoma coexistente no tronco[61]

  • Hemorragias retinianas[62][73]

  • Fraturas em osso longo ou de costela[62][73]

  • Fraturas de crânio que não uma fratura de crânio parietal linear simples[61]

  • Convulsão sem história prévia de transtorno convulsivo ou febre.[62]

As fraturas de crânio são prevalentes nas lesões acidentais e no abuso. O tipo mais comum de fratura nas duas situações é a fratura parietal linear.

Hemorragias retinianas em várias camadas da retina e que se estendem para a periferia são altamente específicas para o TCV, sendo observadas em até 85% dos casos.[22][23]​​​​​[24][74]​ Poucas hemorragias retinianas confinadas ao polo posterior são consideradas inespecíficas.[22][23][24][75] Existem outras causas médicas de hemorragias retinianas (por exemplo, nascimento, distúrbios de coagulação, envenenamento por monóxido de carbono) que devem ser consideradas e podem ser confirmadas por testes diagnósticos.[76]​ Hemorragias retinianas também foram registradas após traumas acidentais de alto impacto, o qual deve ficar evidente na história. Os lactentes <6 semanas de idade podem ter hemorragias retinianas menores após o nascimento, principalmente após um parto com uso de ventosa ou outro instrumento.[77] No entanto, hemorragias retinianas associadas a essas causas médicas têm características nitidamente diferentes daquelas observadas em trauma intencional e significativo.[78]

Hemorragias subdurais são as lesões intracranianas mais comumente observadas em TCV, e podem ocorrer em combinação com outras hemorragias extra-axiais ou lesões do próprio cérebro. O abuso físico é a causa mais comum de hemorragia subdural em crianças <1 ano de idade.[20] Elas ocorrem comumente na convexidade e na fissura intra-hemisférica.[26] Elas podem ter densidades diferentes ou mistas na tomografia computadorizada (TC) ou na ressonância nuclear magnética (RNM).[79]

Outras hemorragias intracranianas, como hemorragia subaracnoide, podem ser observadas em associação com a hemorragia subdural em TCV.[25][26] Hemorragias epidurais, contudo, são mais comumente observadas com trauma cranioencefálico acidental.[80]

A lesão do próprio cérebro, como a lesão hipóxico-isquêmica (também chamada de edema citotóxico), é mais comumente observada no TCV do que no trauma cranioencefálico acidental.[27][81]

Lesões na medula espinhal

Embora lesões na medula espinhal sejam incomuns em crianças com abuso físico, as consequências podem ser devastadoras.[82][83]​​ Elas devem ser consideradas em qualquer criança pequena com lesões violentas graves (por exemplo, TCV). É difícil avaliar a prevalência real das lesões na medula espinhal com o TCV, pois os sintomas espinhais geralmente são mascarados pela perda da consciência. Fraturas instáveis na coluna vertebral, como a fratura do enforcado, podem ocorrer como consequência de abuso, e constituem uma emergência neurocirúrgica.[84]

As lesões podem ser exclusivamente musculoesqueléticas, lesões da medula espinhal isoladas ou uma combinação das duas.[84][85] Lesões da medula espinhal podem ocorrer na coluna cervical, comumente em associação a traumatismo cranioencefálico violento em lactentes (idade média de 5 meses) ou na coluna toracolombar em crianças maiores (idade média de 14 meses).[86]

Crianças podem se apresentar com sensibilidade óssea no local da fratura vertebral ou com sinais neurológicos específicos referentes ao trato espinhal, como paraplegia, quadriplegia, incontinência ou ausência de sensação abaixo do nível da lesão medular. Cifose inexplicada em crianças maiores também pode levantar a suspeita de abuso prévio.[87]

Lesões abdominais

Embora lesões abdominais pareçam ser raras, elas carregam uma alta taxa de mortalidade e morbidade.[88] Elas são predominantemente observadas em crianças <5 anos de idade. Crianças com trauma abdominal violento geralmente não apresentam nenhuma história específica de trauma no abdome e podem apresentar sintomas inespecíficos como náuseas, vômitos, perda da consciência e/ou um abdome agudo. A demora para procurar atendimento é algo frequente. As lesões abdominais podem ocasionalmente ser mascaradas pelos sintomas e sinais de um traumatismo cranioencefálico. As lesões contusas mais específicas ao abdome como consequência de abuso são lesões de vísceras ocas, as quais geralmente estão associadas a outras lesões abdominais (por exemplo, lesão hepática e do intestino delgado) ou com hematomas, fraturas, frênulo rompido, traumatismo cranioencefálico, mordidas e queimaduras. As lesões de órgãos sólidos são comuns tanto no trauma abdominal intencional quanto no acidental.[28] Hematomas no abdome são observados somente em uma minoria dos casos.

Lesões abdominais acidentais geralmente acompanham acidentes com veículo automotor ou quedas significativas, e muitas vezes estão associadas a lesões de órgãos sólidos.[89]

Fraturas

Até um terço das crianças <2 anos de idade que sofreram abuso infantil físico sofrem fraturas.[90][91][92] Frequentemente elas são ocultas e não são suspeitadas clinicamente. As fraturas abusivas ocorrem predominantemente nos bebês e crianças pequenas; fraturas sofridas após acidentes, por outro lado, são mais frequentes nas crianças em idade escolar.[93] Qualquer fratura de osso longo em uma criança que ainda não se movimente sozinha deve ter uma explicação acidental clara e, se não tiver, o abuso deve ser ativamente excluído.

Fraturas abusivas foram registradas em todos os ossos ou grupos de ossos do corpo.

  • Fraturas nas costelas são os preditores mais fortes de abuso infantil em lactentes na ausência de trauma maior ou causas patológicas, e são decorrentes de compressão do tórax ou de um golpe direto.[29]​ Elas são caracteristicamente múltiplas e podem ocorrer em qualquer ponto das costelas.[29][92][94][95][96]

  • Fraturas de ossos longos em crianças que ainda não se movimentam sozinhas são muito preocupantes por indicarem abuso, mas ocasionalmente podem ser observadas em lesões acidentais. A história contada pelos cuidadores deve ser compatível com um mecanismo de fratura no cenário de lesão acidental.[30][31]​ As fraturas de ossos longos com uma história adequada da lesão em crianças que deambulam são mais comumente acidentais.

  • Lesões metafisárias clássicas (também chamadas de fraturas metafisárias, fraturas de canto ou fraturas em alça de balde) são altamente específicas para abuso em lactentes com menos de 1 ano de idade.[97] Essas fraturas ocorrem pela torção por cisalhamento na metáfise devido a um movimento descontrolado vigoroso, puxão ou torção de um membro.[98]

  • Fraturas supracondilianas do úmero são muito mais comuns em quedas acidentais.[99]

  • As fraturas cranianas lineares simples são igualmente prevalentes nas lesões abusivas e acidentais. No entanto, as fraturas cranianas diastáticas, complexas ou associadas a outras lesões são mais prevalentes nas lesões intencionais.[91][100][101]

O diagnóstico diferencial de fraturas violentas inclui trauma acidental, osteogênese imperfeita, osteopenia da prematuridade, condições metabólicas raras que resultam em fragilidade óssea e lesão no nascimento.[102]

Um cirurgião ortopédico e um pediatra especialista em abuso infantil devem estar envolvidos nos casos de suspeita de abuso infantil físico quando houver presença de fraturas em ossos longos, especialmente nos pacientes com fraturas com menos de 3 anos de idade, e principalmente nos menores de 1 ano de idade.[103]

Lesões orais

Distinguir lesões orais acidentais das não acidentais pode ser difícil. A boca deve ser totalmente examinada, e qualquer dente ausente ou anormal deve ser registrado. Também é muito importante conhecer a dentição normal em uma criança e estar alerta a alterações sutis (por exemplo, alterações na coloração dos dentes). As lesões orais mais comumente descritas são hematomas ou lacerações dos lábios.[104][105] Outras lesões orais possíveis incluem:

Freio (ou frênulo) com ruptura

  • Quando encontrado, frequentemente está associado a lesões graves ou fatais (geralmente traumatismo cranioencefálico).[32][33]​​[34] Qualquer hematoma não explicado nas bochechas, orelhas, pescoço ou tronco em associação a um freio labial com ruptura deve levantar suspeita de abuso, e uma investigação completa de proteção da criança é necessária. Um freio labial com ruptura pode ocorrer por forçar a alimentação de um lactente, embora isso só tenha sido relatado conclusivamente após um golpe direto.[34][35] Ele é acompanhado por abundante sangramento aparente (mistura de saliva e sangue).

  • Um freio com ruptura "isoladamente" (ou seja, após exclusão de qualquer outra lesão oculta, como fratura ou traumatismo cranioencefálico, e na ausência de outros fatores de risco) nem sempre pode ser assumido como violento. Ele também pode ocorrer acidentalmente, devido a um golpe direto (por exemplo, balanço que atinge a boca, queda de face para o chão, lesão esportiva). Freio com ruptura foi descrito durante tentativa de intubação.[34]

Lesões dentárias

  • Se houver suspeita de alguma lesão dentária, é aconselhável procurar a opinião de um dentista pediátrico. Lesões dentárias violentas incluem intrusões forçadas, extrusões, remoção de dentes secundários saudáveis e microfraturas.[104][105][106] Sabe-se que alguns pais usam de força para extrair dentes saudáveis de seus filhos como "punição".[37] Algumas lesões dentárias podem não ser imediatamente evidentes para o médico (por exemplo, descoloração cinza dos dentes decorrente de uma microfratura prévia ou ausência de dentição secundária).

  • Evitar levar uma criança ao dentista após lesões dentárias prévias, excesso de cáries não tratadas ou doença nas gengivas podem indicar negligência dentária e também devem levantar suspeita de abuso. Os pais podem subestimar a extensão da negligência dentária, mas esses problemas podem causar dor considerável à criança. Negligência dentária também pode ser um reflexo de alimentação inadequada.

  • Até 50% das crianças com lesões dentárias as sofrem acidentalmente, muitas vezes devido a quedas ou lesões esportivas.[107] Descoloração acinzentada dos dentes também pode ocorrer com dentinogênese imperfeita, particularmente quando associada à osteogênese imperfeita, uma condição que resulta em fraturas recorrentes.

Hematomas

Os hematomas são algumas das lesões acidentais mais comuns sofridas por crianças durante atividades diárias normais. Porém, os hematomas também são a manifestação mais comum de abuso físico.[108] Distinguir entre essas causas é crucial.[109]

Hematomas acidentais

  • Geralmente ocorrem em crianças com independência de mobilidade nas partes frontais do corpo e sobre proeminências ósseas.[63][110] Os hematomas ocorrem predominantemente nas pernas e canelas. Hematomas são incomuns em áreas como costas, nádegas, antebraço, bochechas ou face, orelhas, abdome ou quadril, parte superior do braço, pés ou mãos.[111] Hematomas nas mãos são extremamente raros em crianças <2 anos de idade e, se encontrados, deve-se buscar uma explicação clara para a lesão.

  • Contusões acidentais na cabeça são mais comumente encontradas na testa, nariz, lábio superior ou queixo[112] ao contrário dos hematomas violentos, encontrados nas bochechas, orelha, pescoço ou área periorbital.[111]

  • Embora hematomas acidentais aumentem com a idade, o estágio de desenvolvimento é um parâmetro mais relevante. Menos de 1% dos bebês que ainda não engatinham ou não têm independência de mobilidade apresentam hematomas (geralmente relacionados a lesão no nascimento), em comparação com 17% daqueles que conseguem andar apoiando-se em móveis. Isso aumenta para 52% das crianças que caminham sem auxílio.[63][110]

Hematomas não acidentais

  • Nas crianças vítimas de abuso, a cabeça e o rosto são os locais mais comuns de hematomas, juntamente com hematomas nas nádegas e sobre tecidos moles.[111][113][114] O couro cabeludo deve ser examinado cuidadosamente em busca de hematomas, pois estes podem estar associados à lesão cerebral traumática; 11% das crianças com traumatismos cranioencefálicos violentos apresentam hematomas na face ou no couro cabeludo.[115] A regra TEN-4 é altamente específica e sensível, além da regra de predição clínica, para a identificação de hematoma de alto risco. Ela requer uma investigação de abuso em uma população pediátrica em terapia intensiva.[60] Um hematoma no tronco, nas orelhas, no pescoço de uma criança ou em qualquer parte do corpo de um lactente <4 meses de idade (TEN-4) deve ser um indicador para a avaliação de abuso.

  • Hematomas violentos geralmente ocorrem em aglomerados e podem mostrar um padrão de lesões defensivas (por exemplo, hematoma na parte externa do antebraço e das coxas).[10]​​​ Os hematomas violentos podem refletir uma imagem padronizada positiva ou negativa do objeto usado (por exemplo, fivela de cinto, coleira de cachorro) ou podem ser intercalados com abrasões (por exemplo, lesão por corda).

  • Hematomas violentos tendem a ser maiores e mais numerosos que aqueles encontrados em crianças que não sofreram abuso. Petéquias em associação com hematomas estão significativamente associadas a abuso.[116][117]

  • Abuso grave, até mesmo fatal, decorrente de lesões abdominais ou na cabeça pode ocorrer sem qualquer evidência externa de hematoma.[118] Fraturas não são necessariamente acompanhadas por algum hematoma externo.[119]

Mordidas

Mordidas em crianças podem ser observadas com lesões acidentais (por exemplo, mordidas entre crianças pequenas) e com lesões violentas.[120] Qualquer adulto (ou adolescente) que morda uma criança o suficiente para deixar a marca dos seus dentes causou uma lesão violenta.

Mordidas violentas podem ocorrer em crianças pequenas nos braços, pernas, costas, ombros e nádegas.[121] Adolescentes que são vítimas de abuso sexual podem ser mordidas nas mamas e no pescoço, como em ataques a adultos. Qualquer lesão oval ou circular com endentações que correspondam a marcas de dentes deve ser considerada uma possível marca de mordida.[122]

Distinguir mordidas de crianças de mordidas de adultos é desafiador. Toda mordida com uma distância intercanina >3 cm é mais provavelmente causada por um adulto; uma distância intercanina <2.5 cm é mais provavelmente causada por uma criança pequena (dentes decíduos), embora alguns adultos com dentição anormal possam deixar uma marca pequena.[123] No entanto, a dentição adulta é atingida por volta dos 12 anos de idade; por isso, distinguir agressores adultos de crianças mais velhas pode ser difícil.

Crianças podem morder a si próprias quando forçadas a reprimir o choro durante abuso. Uma criança abusada também pode morder o agressor; a marca da mordida pode potencialmente ser correspondida à sua dentição.[121]

Às vezes as crianças são mordidas por animais: mais comumente cachorros, gatos e furões. As mordidas de animais geralmente são lesões lacerantes. Se a lesão tiver feridas perfurantes (de dentes caninos) com lesões lacerantes em vez de compressão da carne, é mais provável que seja de um animal carnívoro.[124]

Intoxicações

A intoxicação pode estar associada à doença fabricada ou induzida. Há suspeita de intoxicação intencional quando grandes quantidades de uma substância foram ingeridas, se a criança está intoxicada ou se não há história ou apenas uma história de ingestão de pequenas quantidades de veneno, inconsistente com o quadro clínico. Os agentes mais comuns de intoxicação intencional incluem medicamentos prescritos para membros da família (por exemplo, anticonvulsivantes, antidepressivos, ferro, laxantes ou insulina), além de sal, eméticos e drogas recreativas ilegais.[125]

Intoxicação acidental é caracterizada pela ingestão de pequenas quantidades de produtos domésticos ou medicamentos. A criança é apresentada imediatamente pelos pais ou cuidadores, que são capazes de fornecer uma história de ingestão ou de encontrar a criança próxima a um recipiente aberto de veneno.

Apresentações frequentes com suposta ingestão "acidental" devem levantar a suspeita de negligência à criança, em decorrência de supervisão inadequada ou falta de segurança na residência.

Queimaduras

Escaldaduras

  • As queimaduras mais comuns na infância, tanto violentas quanto acidentais, são escaldaduras. Leva apenas um segundo para que uma criança sofra uma escaldadura de espessura total por um líquido a 60 °C (140 °F).[126][127] Meninos sofrem mais escaldaduras, tanto intencionais quanto acidentais.[128][129]

  • Escaldaduras acidentais geralmente são o resultado de um evento de "derramamento" (por exemplo, a criança alcança e puxa uma xícara ou panela com líquido quente).[126][130] A história é essencial para diferenciar escaldaduras acidentais de violentas, e é importante entender as idades nas quais uma criança é capaz de realizar determinadas ações (por exemplo, entrar em uma banheira sem supervisão).[131] Acidentes incomuns realmente ocorrem e, embora um padrão particular de lesão possa parecer improvável, ele pode ser explicado pelo que a criança estava fazendo no momento (por exemplo, se a criança estava em um "andador", o ato de puxar um líquido pode causar lesões amplas).[132] Escaldaduras acidentais por imersão também podem ocorrer raramente. Geralmente, uma escaldadura acidental tem as seguintes características:

    • Distribuição: escaldaduras acidentais geralmente afetam a face, a cabeça, o pescoço, a parte superior do tronco e 1 membro superior.[128][133]

    • Padrão: profundidade mista, espessura superficial a parcial, com a queimadura mais profunda no primeiro local de contato (geralmente na face, no pescoço ou na parte superior do tronco) e mais superficial na parte inferior do corpo.[128]​​[133] O contorno tende a ser irregular, sem margens definidas.[126] Escaldaduras acidentais por água corrente provavelmente têm margens irregulares e envolvimento assimétrico dos membros.[134]

    • Extensão: varia muito, o que depende predominantemente da quantidade de líquido envolvido e da velocidade e adequação dos primeiros socorros prestados.

  • Escaldaduras intencionais geralmente são lesões por imersão e são mais comumente causadas por água quente em oposição a outros líquidos.[126][130]​​ Se houver suspeita de que uma queimadura seja de origem intencional, é crucial fazer investigações adicionais sobre a história médica/social mais ampla da criança.[129][130][135]​​ Além disso, uma visita à residência pode fornecer informações essenciais (por exemplo, temperatura da água quente, altura da superfície que a criança supostamente alcançou/subiu). Todas as crianças <2 anos de idade com suspeita de uma queimadura intencional devem passar por uma radiografia de esqueleto completa, pois fraturas ocultas são bem descritas nas queimaduras intencionais.[136] Geralmente, uma escaldadura intencional tem as seguintes características:

    • Distribuição: a distribuição típica é nos membros inferiores, incluindo ou não as nádegas ou o períneo.[130][137] Às vezes, as dobras atrás do joelho ou nas nádegas são poupadas porque a criança dobra as pernas com força para se proteger, ou as nádegas ficam pressionadas contra a superfície relativamente fria da banheira (sinal da "rosquinha").[138][139]

    • Padrão: a profundidade geralmente é uniforme, com queimaduras de espessura parcial ou total e margens definidas. Envolvimento simétrico dos membros não é incomum.[129][135][137]

    • Extensão: queimaduras por imersão geralmente são extensas, envolvendo uma grande área total de superfície corporal, embora isso não seja uma característica diferenciadora.[130][133][134][137]

Queimaduras cáusticas e por contato

  • Queimaduras de contato intencionais são a causa mais comum de queimadura sem escaldadura descrita em abuso. Elas são observadas com mais frequência nas costas, ombros e nádegas; geralmente são bem demarcadas; e, em alguns casos, podem refletir precisamente o agente da queimadura (por exemplo, secador de cabelo ou acendedor de cigarro).[126][140]​​[141] Queimaduras de contato acidentais nas mãos são comuns em crianças pequenas, geralmente pela ação de encostar em itens como ferro de frisar ou fogões quentes.

  • Apesar de queimaduras por cigarros serem uma queimadura de contato observada frequentemente em crianças, as verdadeiras características de queimaduras intencionais versus acidentais não são bem descritas. Queimaduras intencionais por cigarro são circulares, de espessura total, com aproximadamente 0.8 cm a 1 cm de diâmetro e estão em áreas nas quais a criança não tem possibilidade de receber uma queimadura acidental, embora faltem evidências publicadas para distinguir queimaduras acidentais e intencionais por cigarro.[142] Queimaduras acidentais por cigarro são superficiais, podem não deixar padrão nem uma marca em forma de cone e ocorrem em áreas expostas da pele.

  • Crianças que sofrem abuso também podem ser submetidas a queimaduras cáusticas (ácido ou álcali colocados na boca, nos olhos ou na pele).[143][144] Queimaduras cáusticas podem não causar dor inicialmente (ao contrário de escaldaduras, que são imediatamente muito dolorosas). Queimaduras cáusticas acidentais podem ser decorrentes de pilhas com vazamento ou cristais de sal.[145][146] Uma história detalhada, seguida por um exame das roupas da criança, é necessária para encontrar o agente químico.

Abuso sexual

Consulte Abuso e agressão sexual.

Investigações

Crianças <2 anos de idade estão em risco particular de formas graves de abuso. Elas podem ter uma lesão oculta e não são capazes de fornecer a sua própria história dos eventos. Portanto, uma investigação mais abrangente é necessária nessa faixa etária.

Investigações iniciais para todos os pacientes

  • Radiografia de esqueleto: uma radiografia do esqueleto de 22 filmes (incluindo incidências oblíquas das costelas) deve ser realizada em toda criança <2 anos de idade em que houver suspeita de abuso.[10][31][147][148] Uma radiografia de esqueleto completa deve ser realizada em crianças com lesões abdominais se elas estiverem clinicamente estáveis. Mesmo quando a radiografia inicial do esqueleto for negativa ou ambígua, uma radiografia repetida do esqueleto realizada entre 11 a 14 dias após a investigação inicial fornece informações adicionais sobre os achados ambíguos, identifica fraturas adicionais e acrescenta informações sobre a idade de uma fratura.[10][149] Em alguns países, um exame com radionuclídeos é uma abordagem alternativa. Nos EUA, no entanto, varreduras com radionuclídeos raramente são usadas em crianças.

  • Hemograma completo com contagem de plaquetas e perfil de coagulação se a criança tiver hematomas que sugiram abuso ou evidência de sangramento.[150]

  • Uma urinálise para rastrear traumas no trato urinário e nos rins.[10]

  • TFHs, amilase sérica e lipase para rastrear lesões abdominais ocultas.[10][151][152][153]

  • Investigações do metabolismo ósseo para incluir os níveis de cálcio sérico, fósforo, fosfatase alcalina, paratormônio e 25-hidroxivitamina D, se for descoberto que a criança tem fraturas.[154] No entanto, pode haver um nível elevado de fosfatase alcalina com fraturas curadas, o que não necessariamente indica doença óssea.[31]

  • Registro fotográfico de quaisquer lesões possíveis: é importante que fotografias adequadas sejam tiradas de hematomas, queimaduras, mordidas e quaisquer outras lesões cutâneas. Nos casos de suspeita de mordida, o padrão dentário pode ser reconstruído a partir de fotografias. Embora, a precisão da odontologia forense na identificação da "mordida" a partir de uma marca de mordida seja incerta, podem ser obtidas informações úteis com a análise de imagens de mordidas. As fotografias devem ser tiradas com um dispositivo de medição de ângulo reto e em pelo menos 2 planos, se a lesão estiver em uma superfície curva.[36]

Suspeita de lesões da cabeça e/ou na medula espinhal (além da investigação inicial)

  • TC cranioencefálica: pode identificar sangramentos intracranianos, lesão esquelética e dos tecidos moles e lesão parenquimatosa com ou sem edema cerebral.[155] Essa investigação deve ser fortemente considerada em: crianças <1 ano de idade em todos os casos de suspeita de abuso físico; crianças com sintomas e/ou sinais neurológicos; e todas as crianças com traumatismo cranioencefálico. TC de crânio também deve ser considerada se for encontrada lesão abdominal violenta. Pesquisas sugerem que a TC de crânio sem contraste ajuda na identificação de traumatismo cranioencefálico oculto em crianças e é o padrão de cuidado para avaliação de primeira linha de possível TCV.[155][156][157] Os sinais que foram significativamente associados a trauma cranioencefálico violento incluem: hemorragia subdural múltipla ou bilateral nas convexidades parenquimatosas; hemorragias inter-hemisféricas; lesão hipóxica-isquêmica; e edema cerebral.[61]​​[62][158] Se forem observadas anormalidades, deve-se realizar uma RNM do cérebro em 3 a 5 dias.[159]

  • Fundoscopia dilatada: um oftalmologista deve conduzir um exame físico detalhado dos fundos dos olhos usando fundoscopia indireta com as pupilas dilatadas e RetCam (exame de imagem digital da retina pediátrica de campo amplo). Essas técnicas têm a capacidade de visualizar a periferia da retina, onde hemorragias retinianas em TCV são observadas com mais frequência.

  • RNM cranioencefálica (± RNM da medula espinhal): deve ser realizada em 3 a 5 dias se alguma anormalidade for encontrada na TC cranioencefálica.[159]​ O exame deve incluir a imagem ponderada por difusão (IPD), sequências ponderadas em T1 e T2, além da recuperação da inversão atenuada por fluidos (FLAIR). Isso permitirá o delineamento completo da extensão da lesão. As sequências de IPD também podem ajudar no prognóstico. A RNM deve ser ampliada para incluir a coluna vertebral se houver suspeita de lesão na medula espinhal.[155]

Suspeita de lesão esquelética (além da investigação inicial)

  • Cintilografia óssea com radionuclídeos: em alguns países, ela pode ser realizada como alternativa à radiografia repetida de esqueleto em crianças com suspeita de fraturas quando a radiografia de esqueleto inicial é negativa ou duvidosa. Nos EUA, no entanto, varreduras com radionuclídeos raramente são usadas em crianças. Uma cintilografia óssea torna-se positiva em até 4 horas da ocorrência de uma fratura, mas permanece positiva por muitos meses, por isso não contribui para datar fraturas. Ela não tem valor na detecção de fraturas no crânio, e é menos sensível na identificação de lesões metafisárias. Radiografias simples também devem ser obtidas, e os testes podem confirmar fraturas observadas como focos. Entretanto, a cintilografia óssea apresenta alta sensibilidade para identificar fraturas de costela e pode ser considerada se houver suspeita de fraturas agudas de costela, uma vez que estas são de difícil detecção na radiografia simples antes da cura.[31]

Lesões orais (além da investigação inicial)

  • Radiografias da boca podem ser obtidas e podem mostrar uma fratura dentária ou mandibular.

Lesões abdominopélvicas (além da investigação inicial)

  • TFHs, amilase sérica e lipase se não tiverem sido realizados na investigação inicial.[152][153]

  • Ultrassonografia abdominal: tem uma função limitada no rastreamento de lesões abdominais traumáticas.

  • TC de abdome/pelve: teste definitivo; delineia qualquer ruptura de órgão oco e detecta hematomas subcapsulares, rupturas do fígado ou baço e lesão renal.

Mordidas (além da investigação inicial)

  • É essencial que crianças com suspeita de mordidas de adultos sejam encaminhadas em tempo hábil para a American Board of Forensic Odontology ou British Association of Forensic Odontologists (equivalentes da Associação dos Odontólogos Forenses) para avaliação adicional.[122] Dentistas forenses podem realizar TC, reconstruções dentárias, recuperação de ácido desoxirribonucleico (DNA) ou exame de imagem ultravioleta (UV) digital para possivelmente identificar um agressor.[160]

  • Swabs forenses para DNA também devem ser obtidos, pois ajudam na identificação do agressor.

Hematomas (além da investigação inicial)

  • Estudos da função plaquetária e estudos do fator de von Willebrand podem ser considerados para ajudar a descartar uma causa clínica dos hematomas.[76][150]

Intoxicações (além da investigação inicial)

  • Exames toxicológicos.

  • Se houver suspeita de toxinas/venenos/medicamentos específicos ou incomuns, diferentes opções de testes devem ser discutidas com o laboratório adequado.

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