Abordagem

A doença hepática gordurosa associada a disfunção metabólica (DHGDM) é um espectro de doenças, que varia desde o acúmulo de gordura hepática (esteatose) sem inflamação, até esteatose hepática, fibrose, cirrose e doença hepática em estágio terminal. Exames laboratoriais e de imagem auxiliam no diagnóstico. A biópsia hepática e a histologia são o padrão-ouro para o diagnóstico, mas são usadas com moderação devido à morbidade associada. Utilizam-se ferramentas de estratificação do risco para identificar os pacientes com maior probabilidade de se beneficiarem de uma biópsia hepática. Biomarcadores não invasivos no sangue ou em exames de imagem podem ser usados em cenários comunitários para estratificação do risco na avaliação diagnóstica de pacientes com DHGDM.[33][34][35][36] Uma combinação de técnicas baseadas em exames de imagem e de sangue pode ser usada para detectar a fibrose significativa e a fibrose avançada, particularmente naqueles submetidos a um estadiamento inicial da fibrose.[34]​​​

Quadro clínico

Os pacientes podem relatar fadiga e mal-estar ou dor abdominal; no entanto, muitos são assintomáticos.[37][38]

A apresentação mais comum é uma anormalidade leve nos testes da função hepática (TFHs) com elevação da fosfatase alcalina, aminotransferases ou bilirrubina durante uma investigação para hipertensão, diabetes ou obesidade. Estas também podem ser encontradas como parte de exames de sangue de rotina para avaliação anual de saúde ou para monitoramento de medicamentos, principalmente na terapia anti-hiperlipidemia. Os pacientes também podem apresentar DHG detectada incidentalmente na imagem abdominal.

Nos estágios mais iniciais, hepatomegalia leve pode ser a única anormalidade no exame.[39]

Nos estágios finais da doença, os pacientes podem apresentar sintomas e sinais característicos de doença hepática crônica (por exemplo, icterícia, esplenomegalia, ascite, encefalopatia hepática, edema e hematomas fáceis).

O diagnóstico de DHGDM requer a exclusão do uso de álcool como causa da doença hepática. Vários níveis de ingestão significativa de álcool têm sido sugeridos.[40] Uma dose padrão contém 14 g de álcool puro. A American Association for the Study of Liver Diseases define a ingestão leve de álcool como até 20 g/dia em mulheres e até 30 g/dia em homens, ingestão moderada como 21-39 g/dia em mulheres e 31-59 g/dia nos homens e ingestão excessiva de ≥40 g/dia nas mulheres e ≥60 g/dia nos homens.[3]​ As diretrizes da Ásia-Pacífico definem o consumo significativo de álcool como >140 g/semana em homens e >70 g/semana em mulheres.[8] As diretrizes europeias definem o consumo significativo de álcool como ≥30 g/dia para homens e ≥20 g/dia para mulheres.[41] A ingestão de bebidas alcoólicas deve ser verificada por mais de um profissional da saúde e em ocasiões separadas para assegurar a consistência.

Um novo termo, "MetALD", foi cunhado pela AASLD para descrever aqueles com DHGDM que consomem quantidades maiores de bebidas alcoólicas por semana (140-350 g/semana para as mulheres e 210-420 g/semana para os homens) e têm DHG e fatores de risco cardiometabólicos.​[1][2]

Os medicamentos associados ao desenvolvimento de DHG incluem os estrogênios (tamoxifeno), corticosteroides, diltiazem, nifedipino, metotrexato, valproato, griseofulvina, tetraciclina intravenosa, amiodarona e terapia antirretroviral para HIV.

Exemplos de drogas associadas a um fenótipo histológico microvesicular puro são a aspirina, os anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), corticosteroides, o valproato, a tetraciclina, inibidores da transcriptase reversa nucleosídeos e a cocaína. As drogas associadas a um fenótipo histológico macrovesicular incluem os AINEs, corticosteroides, metotrexato, metoprolol, fluoruracila, cisplatina, irinotecano, tamoxifeno e hidrocarbonetos clorados. Um fenótipo histológico macrovesicular e microvesicular misto pode estar associado a medicamentos como a amiodarona, o valproato e o metotrexato. Medicamentos que incluem a amiodarona, o metotrexato, a fluoruracila, a cisplatina, o irinotecano e o tamoxifeno podem também estar associados a um fenótipo histológico esteato-hepático.[31]

O tratamento com metotrexato em longo prazo, em particular, está associado ao desenvolvimento de DHG e fibrose, principalmente na presença de outros fatores de risco conhecidos (obesidade, consumo de bebidas alcoólicas, doença hepática preexistente, diabetes, hiperlipidemia). Se for necessário tratamento com metotrexato em longo prazo, as recomendações incluem restringir o uso nos pacientes com suspeita de DHGDM aos que têm bioquímica hepática normal e não têm fibrose avançada, exames laboratoriais basais e durante o tratamento, realizando-se geralmente uma biópsia hepática se os resultados da elastografia transitória forem anormais ou se persistirem achados anormais na bioquímica hepática.[31]

Obesidade, resistência insulínica, diabetes, síndrome metabólica e dislipidemia estão todos associados à DHGDM.[7] De forma notável, há uma alta prevalência de DHGDM magra nos países asiáticos, onde até 19% dos pacientes com DHGDM não são obesos.[3]​ A DHGDM magra deve ser diagnosticada nos indivíduos com DHGDM e índice de massa corporal <25 kg/m² (não asiáticos) ou índice de massa corporal <23 kg/m² (asiáticos).[42] Nesses pacientes, a resistência à insulina e a presença de adiposidade central podem servir como preditores mais fortes de doença.[43]

Exames laboratoriais

As enzimas hepáticas devem ser solicitadas para todos os pacientes com suspeita de DHGDM.[8] A elevação dos níveis de alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST), entre 1 e 4 vezes o limite superior dos valores normais (LSN), ocorre em 50% a 90% dos pacientes com DHGDM.[44] Os resultados raramente excedem 300 UI/L.[45] Os pacientes com qualquer tipo de DHGDM podem ter TFHs normais.[38][46]

A proporção de AST:ALT na esteatose hepática associada à disfunção metabólica (EHDM) é tipicamente <1.[47] Isto difere da hepatite alcoólica aguda, da qual a proporção geralmente é >2. A reversão da proporção nos pacientes com EHDM (proporção de AST:ALT >1) pode ser um indicador de fibrose hepática mais avançada.[37][48]

Elevações leves podem ser observadas na fosfatase alcalina e/ou gama-glutamiltransferase. A bilirrubina geralmente é normal, a menos que o paciente tenha doença hepática crônica descompensada.

O sangue também deve ser enviado para hemograma completo, eletrólitos (verificação de hiponatremia), função renal (creatinina e ureia), glicose, perfil lipídico e perfil de coagulação.

A insulina em jejum (microunidades/mL) e o cálculo do modelo de avaliação de homeostase (HOMA, glicose [mg/dL] × insulina/405) são utilizados para quantificar a resistência insulínica e a função das células beta.

Exames laboratoriais devem ser solicitados para descartar outras causas de doença hepática crônica. Eles incluem:[45][49]

  • Anticorpo do vírus da hepatite C

  • Antígeno de superfície da hepatite B, anticorpo anti-superfície e anticorpo anti-núcleo

  • Perfil de ferro, incluindo ferro, capacidade total de ligação do ferro, porcentagem de saturação e ferritina

  • Marcadores autoimunes (incluindo fator antinuclear, anticorpo anti-músculo liso, anticorpo microssomal anti-fígado e rim, imunoglobulinas quantitativas)

  • Nível de alfa 1-antitripsina e fenótipo

  • Anticorpo mitocondrial anti-M2 para testar colangite biliar primária; e ceruloplasmina para rastreamento da doença de Wilson em faixas etárias adequadas (<40 anos)

  • Teste de mutação do gene HFE, se a ferritina estiver elevada, para rastrear hemocromatose hereditária.

Além disso, várias definições bioquímicas de lesão hepática clinicamente significativa induzida por medicamentos têm sido descritas e podem ajudar a descartar lesões hepáticas induzidas por medicamentos como causa da DHG:[31]

  • AST ou ALT sérica >5 × LSN, ou fosfatase alcalina (FAL) >2 × LSN (se a basal for anormal, use a linha basal pré-tratamento)

  • Bilirrubina sérica total >2.5 mg/dL com nível elevado de AST, ALT ou FAL

  • Razão normalizada internacional (INR) >1.5 com nível elevado de AST, ALT ou FAL.

Escore de risco de fibrose

Vários escores foram criados e validados para ajudar a determinar quais pacientes com DHGDM têm o maior risco de evolução para doença hepática em estágio terminal e para ajudar a orientar a tomada de decisão em relação à biópsia hepática. O Escore de Fibrose na DHGNA e o Escore de Fibrose 4 (FIB-4) são os escores não invasivos preferenciais para predizer a fibrose avançada.[50][51]​ Nos pacientes adultos com DHGDM que necessitam de estadiamento de fibrose, a AASLD recomenda o uso de exames de sangue não invasivos em vez da não realização de exames para detectar fibrose avançada.[35]​ A AASLD faz uma sugestão contrária ao uso de exames de sangue não invasivos para detectar a esteatose nos pacientes com DHGDM.[35]​ O escore de fibrose da DHGNA utiliza a idade, a hiperglicemia, o índice de massa corporal (IMC), a contagem plaquetária, a albumina e a proporção AST:ALT para prever os pacientes com fibrose hepática avançada.[50] NAFLD Fibrosis Score Opens in new window​ Ao se aplicar esse modelo, a biópsia hepática pode ser evitada em uma proporção substancial de pacientes. O índice FIB-4 utiliza a contagem plaquetária, a idade, a AST e a ALT.[52] Fibrosis 4 Score (FIB-4) Opens in new window​ É improvável que os pacientes com DHGDM e um escore FIB-4 <1.3 tenham fibrose avançada.[33]​ A British Association for the Study of the Liver e o British Society of Gastroenterology NAFLD Special Interest Group recomendam que os pacientes com baixo risco de fibrose significativa sejam reavaliados a cada 3 anos com o uso de exames não invasivos.[51]

Nos pacientes com DHGDM e um escore FIB-4 >1.3, uma combinação de dois ou mais exames não invasivos (de sangue e/ou de imagem) é preferencial para o estadiamento e a estratificação do risco.[33]

O escore Enhanced Liver Fibrosis (ELF) usa um painel de três biomarcadores: inibidor tecidual de metaloproteinases 1 (TIMP-1), propeptídeo amino-terminal do procolágeno tipo III (PIIINP) e ácido hialurônico. O escore se correlaciona bem com os estágios de fibrose na doença hepática crônica.[53]

Exames por imagem

A American Association for the Study of Liver Diseases (AASLD) recomenda o uso de exames de imagem não invasivos para detectar a fibrose significativa, a fibrose avançada e a cirrose nos adultos com DHGDM.[34]​ Os exames de imagem podem ser incorporados preferencialmente no processo inicial de estadiamento da fibrose devido à sua maior acurácia em relação às técnicas baseadas no sangue e são recomendados para identificação da fibrose avançada e da cirrose nos adultos com DHGDM.[34]​ Tanto a elastografia transitória por ultrassonografia quanto a elastografia por ressonância magnética são recomendadas pela AASLD para estadiar a fibrose nos adultos com doença hepática crônica.[34]​ A AASLD desaconselha o uso de exames de imagem como um exame independente para avaliar a regressão ou progressão da fibrose hepática.[34]

Estudos de imagem podem determinar a presença e a quantidade de infiltração gordurosa. A ultrassonografia é uma modalidade de imagem inicial razoável.[8][41][54]​​ Ela tem uma sensibilidade de 84.8% e uma especificidade de 93.6% para detectar o fígado gorduroso moderado a grave, em comparação com a histologia. O parâmetro de atenuação controlada, uma técnica baseada em ultrassonografia, fornece uma avaliação semiquantitativa da DHG no local de atendimento.[3]​ O parâmetro de atenuação controlada medido pela elastografia transitória (TE-CAP) tem uma boa acurácia diagnóstica para classificar a esteatose, e pode ser usado na prática clínica.[34]​​ Uma ressonância nuclear magnética (RNM) do fígado pode ser solicitada se houver suspeita de DHG mas não for detectada pela ultrassonografia.[8] A RNM para avaliação de gordura por densidade de proteína (MRI-PDFF) se correlaciona bem com a DHG comprovada por biópsia e é mais precisa do que a ultrassonografia para identificar a DHG.[55][56]​​ A MRI-PDFF pode quantificar a esteatose.[3]​ No entanto, a disponibilidade é limitada.

Os exames de imagem não invasivos, como a TE-CAP e a MRI-PDFF ou a espectroscopia por ressonância magnética, são superiores aos exames de sangue não invasivos e devem ser usados na avaliação da esteatose hepática em adultos com DHGDM, quando disponíveis.[34]

Para a identificação de fibrose avançada ou cirrose, o principal biomarcador é a rigidez hepática. A elastografia ultrassônica das ondas de cisalhamento é uma técnica não invasiva para avaliar a rigidez do fígado. A rigidez do tecido é deduzida a partir da análise de ondas de cisalhamento que são geradas por pulsos de ultrassom de alta intensidade.[57] A elastografia por ressonância magnética é uma técnica alternativa para avaliar a rigidez hepática. É mais precisa do que a elastografia ultrassônica das ondas de cisalhamento para identificar fibrose e cirrose e tem melhor desempenho em pessoas com obesidade.[54][56][57]

Biópsia hepática

Atualmente, a biópsia hepática é a melhor ferramenta diagnóstica para confirmar a DHGDM. Ela também é o meio mais específico e sensível para fornecer informações prognósticas importantes.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Biópsia em cunha do fígado de uma doadora de órgãos de 52 anos; biópsia mostrando esteatose mista micro e macrovesicular de grau moderado; não há inflamação lobular significativa ou necrose (hematoxilina e eosina, coloração H&E, x 200)Do acervo de Kapil B. Chopra, MD [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@5d162815[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Caso de esteatose hepática associada a disfunção metabólica; a biópsia mostra degeneração por balonamento dos hepatócitos (meio à direita) e inflamação lobular irregular em associação com esteatose mista micro e macrovesicular (H&E, x 200)Do acervo de Kapil B. Chopra, MD [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@6ddf012a Quando há probabilidade de a doença ser benigna (testes da função hepática normais com exames de imagem que mostram leve infiltração gordurosa), a biópsia provavelmente não é necessária. Atualmente, o estadiamento da DHGDM pode ser realizado por uma combinação de técnicas radiológicas e laboratoriais, reduzindo enormemente a necessidade de biópsia hepática invasiva na maioria dos pacientes.[58] A biópsia hepática geralmente é reservada para pacientes selecionados, incluindo:[3][8]

  • Pacientes com DHGDM que apresentam aumento do risco de esteatose hepática e/ou fibrose avançada (por exemplo, pacientes com síndrome metabólica, pacientes com escore de fibrose na DHGNA ou índice FIB-4 elevados ou aumento da rigidez hepática em exames de imagem)

  • Pacientes com uma possível causa alternativa de DHG ou doença hepática crônica coexistente (se essas causas alternativas/diagnósticos coexistentes não puderem ser descartadas por outros meios). Nos pacientes com suspeita de DHGDM e positividade de fator antinuclear em títulos maiores que 1:160 ou positividade de anticorpos antimúsculo liso em títulos maiores que 1:40, uma biópsia hepática pode ser considerada para descartar a presença de hepatite autoimune[49]

  • Pacientes nos quais a avaliação não invasiva da fibrose hepática é inconclusiva

  • Pacientes que apresentam elevações persistentes (>6 meses) nas enzimas hepáticas apesar de mudanças no estilo de vida

  • Pacientes que estão sendo considerados para entrada em um ensaio clínico.

A decisão de realizar uma biópsia hepática em um paciente com suspeita de DHGDM, bem como o momento da biópsia, deve ser uma decisão individualizada e compartilhada entre o paciente e um hepatologista. A American Gastroenterological Association recomenda a biópsia hepática nos pacientes com resultados de exames não invasivos indeterminados ou discordantes, ou que conflitem com outros achados clínicos, laboratoriais ou radiológicos, ou quando houver suspeita de etiologias alternativas para a doença hepática.[33]

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