Abordagem

Pacientes com dor abdominal crônica e/ou história de pancreatite aguda recidivante, sintomas de insuficiência exócrina pancreática (diarreia, esteatorreia, perda de peso, distensão abdominal, flatulência excessiva, deficiência de vitaminas lipossolúveis e desnutrição proteica e calórica) ou diabetes pancreatogênico devem ser avaliados quanto à suspeita de pancreatite crônica.[60][82][83][84]

A abordagem inicial deve incluir anamnese e exame físico completos.[85]

Pode ser difícil estabelecer o diagnóstico

Os sintomas de cada paciente e os exames diagnósticos objetivos fornecem uma probabilidade de pancreatite crônica, mas o diagnóstico geralmente requer uma combinação de fatores.

O diagnóstico dos estágios iniciais da pancreatite crônica é desafiador quando a dor é a única característica e os exames de imagem não são conclusivos. Esses pacientes necessitam de um acompanhamento prospectivo, já que, após uma primeira crise de pancreatite aguda, 8% a 10% dos pacientes podem evoluir para pancreatite crônica.[20][86]

A evolução é prevista de forma independente por quatro variáveis:[86]

  • tabagismo atual

  • etiologia idiopática

  • etiologia alcoólica

  • pancreatite necrosante

Três estudos longitudinais relataram que de 26% a 50% dos pacientes com ataques idiopáticos (ataques recorrentes sem etiologia identificada) desenvolveram evidências de pancreatite crônica ao longo de 18-36 meses.[87][88][89]

História e características clínicas

Em pacientes com características clínicas de pancreatite crônica, deve-se realizar uma revisão abrangente de todos os fatores de risco. Assim, serão identificados possíveis mecanismos subjacentes, fatores de risco fixos e modificáveis, possíveis alvos de terapia e informações prognósticas clinicamente relevantes.[85]

A anamnese deve incluir:[85]

  • datas anteriores e número de episódios de pancreatite aguda (delineados no TIGAR-O ou M-ANNHEIM)

  • datas de início da diabetes mellitus (se presente)

  • má digestão/desnutrição

  • perda de peso

  • saúde óssea (por exemplo, fraturas)

  • doença renal

  • doenças em órgãos associados à fibrose cística (por exemplo, doença pulmonar, sinusite ou infertilidade masculina).

A história familiar deve incluir pelo menos parentes de terceiro grau e incluir:[85]

  • pancreatite

  • fibrose cística

  • diabetes mellitus

  • câncer de pâncreas.

O checklist TIGAR-O fornece orientações sobre como registrar o consumo de bebidas alcoólicas, tabagismo, medicamentos, toxinas, diabetes mellitus, dieta e principais biomarcadores, inclusive cálcio sérico e triglicerídeos.[85]

Principais características clínicas:

  • Dor abdominal: ocorre em mais de 80% das pessoas no momento do diagnóstico.[11] A dor é epigástrica, incômoda, irradia para o dorso, diminui sentando-se para a frente e piora cerca de 30 minutos após as refeições.

  • Icterícia: a incidência geral é de aproximadamente 10%.[90] Ocorre por compressão do ducto colédoco, sendo geralmente precedida por elevação da fosfatase alcalina sem icterícia ou outros sintomas. O câncer deve ser descartado se esse sintoma estiver presente.

  • Esteatorreia: a incidência geral varia entre 8% e 22% no momento do diagnóstico.[11] A esteatorreia ocorre antes da azotorreia (má absorção de proteína alimentar). Causada por lesão, atrofia e perda de tecido pancreático exócrino por inflamação e fibrose da glândula. A ingestão de óleo mineral deve ser excluída na presença desse sintoma.

  • Desnutrição: costuma se desenvolver por medo da comida (devido a dor), má absorção, ingestão alimentar deficitária relacionada ao abuso de álcool, e energia despendida no estado de repouso elevada em 30% a 50% dos pacientes.[91] Cerca de 10% a 15% dos pacientes necessitarão de suplementos nutricionais.[91]

  • Diabetes mellitus e intolerância à glicose: a intolerância à glicose ocorre precocemente em razão de resistência insulínica, e o diabetes mellitus ocorre em estágios mais tardios devido à insulinopenia. A prevalência geral de hiperglicemia é de 47%.[92] A incidência de diabetes mellitus varia de 0% a 22% no início dos sintomas e, em mais de 80% após 25 anos.[11][93] Uma coorte prospectiva de 500 pacientes identificou dois fatores de risco independentes (calcificações pancreáticas e pancreatectomia distal), mas um estudo retrospectivo maior, com mais de 2000 pacientes, identificou cinco fatores de risco independentes que não incluíam calcificações (alcoolismo, sexo masculino, esteatorreia, estenose biliar e pancreatectomia distal).[93][94]

Características clínicas inespecíficas adicionais incluem:

  • Perda de peso: causada pelo medo de alimentos (devido à dor), má absorção, ingestão alimentar deficitária relacionada ao abuso de álcool, e elevação da energia despendida no estado de repouso. No entanto, deve-se descartar a malignidade.

  • Alguns pacientes com insuficiência pancreática exócrina relatam distensão abdominal e/ou flatulência excessiva.[84]

  • Deficiências de micronutrientes: causada pelo medo de alimentos (devido à dor), má absorção, ingestão alimentar deficitária relacionada ao uso de bebidas alcoólicas, e elevação da energia despendida no estado de repouso. A prevalência de deficiências de vitaminas lipossolúveis é variável e relatada como de 14.5% para a vitamina A, 24.2% para a vitamina E, e até 53% para a vitamina D.[95][96] Esses deficits podem levar potencialmente a problemas de saúde de longa duração, incluindo deficits visuais, defeitos neurológicos e saúde fraca dos ossos.

  • Fratura por baixo impacto e baixa densidade mineral óssea: relacionada a deficiências de micronutrientes e aumento da inflamação sistêmica.[97] A prevalência de fratura por baixo impacto tem sido relatada como 4.8%, provavelmente devido às taxas de prevalência conjunta altas para osteopenia (39.8%) e osteoporose (23.4%).[98][99] O risco de fratura é maior se o álcool for um fator de risco subjacente para a pancreatite crônica e o paciente apresentar cirrose.[100]

  • Náuseas e vômitos: ocorrem por complicações da pancreatite crônica em curto e longo prazos. Podem resultar de dor, obstrução duodenal ou de ducto biliar, ou da atividade mioelétrica gástrica pós-prandial alterada. São exacerbados por analgésicos opioides.[101] Entretanto, permanece controverso se os pacientes com pancreatite crônica têm esvaziamento gástrico retardado, normal ou rápido.[102][103][104][105]

  • Nódulos cutâneos: a lipase pancreática pode vazar na circulação e causar necrose gordurosa em locais não pancreáticos. Isso resulta em nódulos cutâneos dolorosos e indolores nos membros, associados à febre e poliartrite.[106][107] Cerca de 5% dos pacientes com pancreatite desenvolvem necrose gordurosa intramedular, mas isso geralmente não causa sintomas.[108]

  • Dor nas articulações: ocorre em pelo menos duas condições associadas à doença pancreática: necrose gordurosa metastática; pancreatite autoimune relacionada à imunoglobulina G4 (IgG4), associadas à artrite reumatoide, com ou sem amiloidose secundária.[107][109]

  • Distensão abdominal: ocorre como resultado de um pseudocisto aumentado, câncer de pâncreas, ascite pancreática por vazamento de suco de um ducto ou pseudocisto rompido, ou fibrose e obstrução duodenal levando à distensão gástrica.

  • Dispneia: causada por derrame pleural, secundária a vazamento de suco de um ducto ou pseudocisto rompido, o qual extravasa para o espaço pleural.

A idade à manifestação fornece um indício sobre a etiologia subjacente. A pancreatite hereditária tem um pico de apresentação aos 10-14 anos de idade; a pancreatite crônica idiopática juvenil aos 19-23 anos de idade; a pancreatite crônica relacionada ao álcool aos 36-44 anos de idade; e a pancreatite crônica idiopática senil aos 56-62 anos de idade.[10][11][12]

Exames iniciais

Técnicas de imagens transversais são recomendadas como testes iniciais.[85]

Tomografia computadorizada (TC) e ressonância nuclear magnética (RNM)

A TC ou a RNM é recomendada como primeira linha para o diagnóstico de pancreatite crônica.[85]

Ultrassonografia endoscópica (USE)

A USE só deve ser utilizada se o diagnóstico estiver em questão após a realização de exames de imagens transversais. Ela é invasiva e não tem tanta especificidade.[85]

A USE fornece uma avaliação mais detalhada do parênquima e dos dutos pancreáticos em comparação com a ultrassonografia abdominal e a TC, sendo menos invasiva que a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica. Os riscos da USE incluem perfuração, infecção e sangramento.[110]

Colangiopancreatografia por ressonância magnética com contraste de secretina (CPRM-s)

A CPRM-s é recomendada quando o diagnóstico de pancreatite crônica não é confirmado após o exame de imagem transversal com TC/RNM ou USE, e a suspeita clínica permanece alta.[85]

A CPRM-s permite uma melhor visualização dos ductos pancreáticos do ramo principal e lateral, estimulando a liberação de bicarbonato das células do ducto pancreático.[111]

Outros exames a serem considerados

Vários testes adicionais podem ser considerados quando os resultados de exames de imagem são inconclusivos.

Exame histológico

Sugerido como padrão-ouro para diagnosticar pancreatite crônica em pacientes de alto risco quando as evidências clínicas e funcionais de pancreatite crônica são fortes, mas o diagnóstico é inconclusivo após o exame de imagem transversal com TC/RNM ou USE.[85]

Teste genético

Recomendado em pacientes com evidências clínicas de possível pancreatite crônica em que a etiologia não é clara, especialmente em pacientes mais jovens.[85]

Os pacientes com pancreatite crônica idiopática devem ser avaliados quanto a mutações nos genes PRSS1, SPINK1, CFTR, CTRC, CASR e CPA1.[85] Até 50% dos pacientes com pancreatite crônica idiopática apresentam mutações dos genes SPINK ou CFTR.[59][60]

Teste da função pancreática

Um meio importante de diagnosticar insuficiência pancreática exócrina. Sua função no estabelecimento do diagnóstico de pancreatite crônica é complementar.[85]

A função pancreática é medida por métodos diretos ou indiretos. Os testes diretos da função pancreática envolvem o estímulo hormonal exógeno da secreção pancreática e a coleta e medição de concentrações de bicarbonato ou enzimas no suco pancreático. Os testes de função diretos são provavelmente mais sensíveis e específicos para o diagnóstico de insuficiência pancreática leve a moderada ou pancreatite crônica.[112][113]

Os testes indiretos da função pancreática (por exemplo, a medição de elastase-1 nas fezes) são simples e não invasivos, mas imprecisos no diagnóstico de pancreatite crônica leve a moderada. Eles são usados principalmente para diagnosticar doença grave.[114][115] O teste de elastase fecal-1 é o exame inicial para diagnosticar insuficiência pancreática exócrina.​[84]

Os testes da função e da estrutura são complementares porque as comparações de testes diretos da função pancreática com a CPRE ou a USE podem gerar resultados discordantes.

Diagnóstico diferencial

O câncer de pâncreas e a pancreatite autoimune devem ser considerados e descartados como diagnósticos diferenciais nos pacientes com doença de início em idade mais avançada.[7]

Exclusão de malignidade

Eliminar a malignidade é um importante desafio diagnóstico, sobretudo em pacientes cuja cabeça do pâncreas está aumentada. A exclusão de malignidade requer, frequentemente, alguma forma de ressecção cirúrgica para garantir um exame histopatológico confiável. Em 10% dos pacientes, o diagnóstico é estabelecido somente por prova histológica no momento da operação (mesmo em centros experientes).[116][117]

As investigações adicionais para distinguir entre pancreatite autoimune e câncer de pâncreas incluem testes sorológicos (fator antinuclear, nível de IgG4), biópsia ampular para detectar plasmócitos positivos para IgG4, e uma tentativa de 2 semanas de corticosteroides, mas essas decisões devem ser tomadas por especialistas e requerem acompanhamento em um curto prazo.[116][117]

O câncer de pâncreas deve ser considerado nos pacientes com um primeiro ataque de pancreatite aguda dentro do primeiro ano do diagnóstico, ou nos pacientes com um novo diagnóstico de pancreatite crônica, especialmente naqueles com 40 anos de idade ou mais. Um estudo retrospectivo demonstrou que, entre pacientes com câncer de pâncreas, aproximadamente 5% foram inicialmente diagnosticados incorretamente com um novo diagnóstico de pancreatite crônica, e 11% com um primeiro ataque de pancreatite aguda.[118][119]


Venopunção e flebotomia – Vídeo de demonstração
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Como colher uma amostra de sangue venoso da fossa antecubital usando uma agulha a vácuo.


Critérios de diagnóstico

Vários critérios diagnósticos já foram propostos, mas nenhum é universalmente aceito. Eles incluem:[5][6][10][11][121][122][123]

  • Classificação de Cambridge para a pancreatite crônica

  • Critérios de Ammann (workshop de Zurique)

  • Sistema de pontuação para diagnóstico multicomponente da Mayo Clinic para a pancreatite crônica

  • Critérios de M-ANNHEIM (modificação de Ammann)

  • Diretrizes da Japanese Pancreas Society.

Em geral, é necessário o acompanhamento do paciente para confirmar uma suspeita de pancreatite crônica leve a moderada. Mais informações sobre os diferentes critérios podem ser encontradas na seção Critérios de Diagnóstico deste tópico.

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