Abordagem

Embora a grande maioria das transfusões seja realizada sem incidentes, é importante observar que todos os receptores apresentam um risco de reação transfusional. Do ponto de vista diagnóstico, é útil dividir as reações transfusionais mediadas imunologicamente nos tipos agudo e tardio. As reações que não são mediadas imunologicamente são incomuns e não serão especificamente discutidas.

Reações agudas: história

É necessário observar fatores importantes da história que aumentam o risco de uma transfusão. Esses fatores incluem incompatibilidade ABO (incomum e tipicamente resultante de erro administrativo), gestação ou transfusão prévias (associadas com a sensibilização a antígenos que predispõem a reações futuras), transplante e estado imunocomprometido (associados à doença do enxerto contra o hospedeiro), deficiência de imunoglobulina A (IgA) (associada à reação anafilactoide) e história prévia de reação transfusional.[3][9]

Reações agudas: quadro clínico

Os sinais e sintomas de uma reação hemolítica aguda tipicamente evoluem durante ou imediatamente após a transfusão. Eles têm uma sobreposição de várias etiologias de reações imunologicamente mediadas. Os sintomas incluem calafrios e febre, cefaleia, náuseas e vômitos ou ansiedade.[3]​ Pode ser observada palidez na anemia grave. Dor ao longo do membro que tiver recebido infusão é um sintoma mais específico de reação transfusional hemolítica aguda. Dor abdominal, torácica ou dorsalgia também podem acompanhar os sintomas gerais. A hemoglobinúria, manifestada como urina avermelhada, geralmente está presente. Na reação transfusional hemolítica aguda grave, o paciente pode evoluir para hipotensão, insuficiência renal e coagulação intravascular disseminada (CIVD).[3]​ A gravidade da reação é proporcional à quantidade de sangue incompatível transfundido.[3]

Os sintomas típicos de uma reação alérgica incluem prurido, rubor e dispneia. Os sintomas geralmente ocorrem dentro de minutos após o início da transfusão. Tipicamente ocorre urticária e, menos comumente, há o desenvolvimento de angioedema. A anafilaxia - uma reação alérgica sistêmica grave, com potencial risco à vida - pode ser desencadeada.[5] A anafilaxia geralmente tem início rápido, com sinais e sintomas variáveis, e normalmente afeta dois ou mais sistemas orgânicos (por exemplo, cutâneo, respiratório, cardiovascular).[5] No entanto, as apresentações atípicas podem parecer afetar apenas um único sistema (por exemplo, hipotensão isolada).[5]​ Pode haver características de comprometimento respiratório (por exemplo, dispneia, sibilância, estridor, hipoxemia, pico do fluxo expiratório reduzido) e/ou comprometimento cardiovascular ou disfunção de órgão-alvo associada (por exemplo, hipotensão, hipotonia/colapso, síncope, incontinência).[5] Sintomas gastrointestinais também podem estar presentes (por exemplo, dor abdominal do tipo cólica, vômitos, diarreia).[5] É importante observar que as características cutâneas típicas da anafilaxia (por exemplo, urticária, rubor, prurido, angioedema) nem sempre estão presentes.[5] Esteja ciente de que os lactentes e as crianças pequenas podem apresentar outros sintomas de anafilaxia específicos para a idade, alguns deles difíceis de distinguir do comportamento normal, como choro, irritabilidade, apego a objetos (clinging), abstinência, dedos nas orelhas e puxar ou coçar a pele.[5] Estudos retrospectivos adicionais contataram que, em comparação com crianças mais velhas, os lactentes com anafilaxia apresentam sintomas cutâneos com mais frequência, mas sintomas respiratórios com menos frequência.[5] A gravidade da reação anafilática pode variar, e hipotensão e hipoxemia sugerem uma anafilaxia mais grave.[5] A anafilaxia grave está associada a uma idade mais avançada e a doença cardiopulmonar preexistente, e aqueles que fazem uso de betabloqueadores e/ou inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECAs) podem apresentar maior gravidade da reação (possivelmente em relação direta com os efeitos desses medicamentos sobre a capacidade do corpo de compensar durante a anafilaxia e de responder ao tratamento com adrenalina e/ou devido à presença dos distúrbios cardiovasculares subjacentes os quais esses medicamentos normalmente são usados para tratar).[5]​​​​​​​

As reações transfusionais febris não hemolíticas se manifestam com febre. Mais especificamente, a febre é definida como uma elevação da temperatura de pelo menos 1 °C (1.8 °F) acima de 37 °C (98.6 °F), sem nenhuma outra causa identificável. A maioria dos episódios é benigna, mas inicialmente eles podem ser indistinguíveis do início de uma reação transfusional hemolítica aguda.

A lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão (TRALI) é caracterizada pelo início súbito de dispneia e taquipneia, geralmente acompanhadas por febre e taquicardia.[6]​ Estertores podem ser observados no exame físico. Hipotensão também pode ser observada. O início ocorre tipicamente dentro de 1 a 2 horas após a transfusão de qualquer hemoderivado (mais comumente de eritrócitos, plaquetas ou plasma fresco congelado [PFC]), mas observou-se que pode ocorrer mais precocemente em algum momento durante a transfusão ou tardiamente até 6 horas após a transfusão e, por definição, ocorre até 6 horas após a transfusão.[6][7][8]

Reações agudas: investigações

Em qualquer reação aguda, a transfusão deve ser imediatamente interrompida, mas o acesso venoso deve ser mantido.[1]​ Quando houver suspeita de uma reação hemolítica aguda, a diferenciação por investigações laboratoriais inclui as seguintes etapas:

  • A transfusão deve ser interrompida, e a bolsa e os tubos componentes devem ser desconectados do paciente.

  • Uma verificação administrativa deve ser realizada para confirmar que o receptor é compatível com a unidade transfundida.[1]​ Isso é fundamental, pois uma incompatibilidade paciente-componente implica que um outro paciente no hospital está em risco da mesma incompatibilidade e do recebimento de sangue errado.

  • Amostras de sangue após a transfusão devem ser obtidas do receptor e enviadas ao banco de sangue, juntamente com a bolsa de sangue e os tubos.

  • Deve-se realizar a repetição do teste ABO na amostra pós-transfusão do sangue do paciente e no restante da unidade transfundida.

  • O teste de antiglobulina direto deve ser realizado para identificar se ocorreu hemólise, indicando a presença de uma reação transfusional hemolítica aguda.[1]

  • A amostra do plasma também deve ser visualmente inspecionada quanto à alteração na cor (indicando a presença de hemoglobina livre decorrente de hemólise). A inspeção visual poderá ser o único indicador de hemólise se o anticorpo ou os eritrócitos cobertos com complemento tiverem sido rapidamente depurados da circulação do paciente, resultando em um teste de antiglobulina direto negativo.

  • A hemólise pode ser corroborada pela presença de hemoglobina livre na urina e de haptoglobina sérica baixa. Amostras de urina pós-transfusão devem ser obtidas.[1]

  • O dímero D, o tempo de protrombina (TAP) e o tempo de tromboplastina parcial (PTTa) podem estar elevados em decorrência da CIVD.

A reação transfusional febril não hemolítica é um diagnóstico de exclusão. O diagnóstico pode ser feito quando a resposta clínica observada é consistente e a investigação laboratorial descarta a presença de hemólise.

A coloração de Gram e a cultura de componente e de amostras do receptor pós-transfusão também poderão ser consideradas quando puder haver suspeita de sepse associada à transfusão.[4]

O diagnóstico da anafilaxia é clínico, com base na história clínica e nos sinais e sintomas presentes durante o evento.[5]​ Ao realizar exames diagnósticos, é importante que eles não protelem o tratamento de emergência do episódio anafilático agudo suspeitado.[5][32]​​​​​ Nos casos em que se observa anafilaxia, o paciente deve ser testado para anticorpos contra IgA, e os níveis de IgA quantitativos devem ser avaliados. Avaliar os níveis de triptase também pode ajudar na confirmação pós-aguda do diagnóstico.[5][32]​​​​ No Reino Unido, o National Institute for Health and Care Excellence (NICE) recomenda a medição de dois níveis de triptase mastocitária aguda: o primeiro deve ser obtido assim que possível após o início do tratamento de emergência; o segundo deve ser obtido idealmente dentro de 1-2 horas (mas não depois de 4 horas) do início dos sintomas.[32] ​​​O NICE orienta que uma terceira amostra pode ser necessária quando o paciente faz acompanhamento no serviço de alergia especializado para estabelecer seu nível de triptase mastocitária basal.[32] De maneira similar, uma atualização de 2023 dos parâmetros de prática para anafilaxia realizada pela Joint Task Force on Practice Parameters (JTFPP) sugere (com base em evidências de certeza moderada) que o nível agudo de triptase sérica deve ser medido assim que possível (idealmente em até 2 horas após o início dos sintomas) e que, em seguida, deve-se realizar uma segunda medição de triptase sérica em um momento posterior para estabelecer o nível basal do paciente.[5] Um nível agudo de triptase acima do limite superior do normal (definido em laboratório) apoia um diagnóstico de anafilaxia, pois é um nível agudo que indica elevação significativa a partir do nível basal de triptase do paciente (mesmo quando o nível agudo ainda está na faixa normal, ou seja, um nível de triptase agudo na faixa normal não descarta anafilaxia).[5]​​

Quando houver suspeita de TRALI, uma radiografia torácica deverá ser obtida.[1]​ Evidências de infiltrados alveolares irregulares bilaterais dão suporte ao diagnóstico. A TRALI é clinicamente definida como o início de lesão pulmonar aguda em uma relação temporal à transfusão. Os critérios para lesão pulmonar aguda incluem início agudo dos sintomas, ausência de sobrecarga circulatória, infiltrados pulmonares bilaterais na radiografia torácica e hipoxemia, conforme demonstrado por pressão arterial de oxigênio/fração de oxigênio inspirado (PaO2/FiO2) <300 mmHg. Um hemograma completo com diferencial pode demonstrar eosinofilia e/ou redução aguda na contagem de neutrófilos, mas esses achados associados não confirmam nem descartam necessariamente o diagnóstico de TRALI.

Eletrólitos séricos e creatinina também são aconselhados para reações transfusionais agudas mediadas imunologicamente. A hemólise pode causar toxicidade renal, e a liberação de cátions intracelulares pode precipitar distúrbios eletrolíticos graves.

Reações tardias: história

Exposições prévias a antígenos eritrocitários estranhos após gestação, transfusão prévia ou transplante de órgãos estão associadas com reações transfusionais hemolíticas tardias.[3]​ Os pacientes imunocomprometidos, como os que apresentam linfoma, leucemia e deficiências imunes congênitas, apresentam risco de doença do enxerto contra o hospedeiro. Transfusão ou gestação prévias podem sensibilizar os pacientes ao antígeno plaquetário humano 1a, predispondo, portanto, os pacientes a trombocitopenia e resultando em púrpura pós-transfusional.

Reações tardias: quadro clínico

As reações transfusionais hemolíticas tardias podem se manifestar com febre ou anemia, que ocorrem em dias a semanas após a transfusão.[3]​ Palidez pode estar presente no exame físico. A icterícia se desenvolve em alguns pacientes. A hemoglobinúria pode ser observada como urina avermelhada devido à hemólise, a qual é principalmente extravascular. Raramente, ocorrem insuficiência renal aguda e CIVD. Pode ocorrer hemólise tardia na ausência de sintomas. O diagnóstico pode ser feito quando um novo teste de antiglobulina direto positivo e/ou um rastreamento positivo para anticorpo são identificados na preparação de uma transfusão subsequente.

A doença do enxerto contra o hospedeiro associada à transfusão raramente ocorre, sendo tipicamente observada em pacientes imunocomprometidos. Os sintomas geralmente começam 8 a 10 dias após a transfusão, e incluem exantema maculopapular, febre e diarreia.[9]​ Ela tende a causar aplasia da medula óssea, com rápida evolução para óbito. Evidências de necrólise epidérmica tóxica podem estar presentes.

A púrpura pós-transfusional é incomum. Os pacientes tipicamente apresentam púrpura disseminada, e o sangramento de membranas mucosas, do trato gastrointestinal e do trato urinário pode ser decorrente da trombocitopenia associada.

Reações tardias: investigações

A diferenciação por exames laboratoriais das reações transfusionais hemolíticas tardias é feita mais frequentemente por exames no banco de sangue, que revelam um rastreamento positivo para aloanticorpos ou um novo aloanticorpo em um paciente que recebeu recentemente uma transfusão.[3]

Ao tentar avaliar a etiologia de anemia em um paciente com uma história recente de transfusão, o teste de antiglobulina direto deve ser positivo, sugerindo o diagnóstico de reação transfusional hemolítica tardia. A elevação da lactato desidrogenase (LDH) e da bilirrubina, a presença de hemoglobina livre na urina e a haptoglobina sérica baixa dão suporte ao diagnóstico de hemólise. O dímero D, o TAP e o PTTa podem estar elevados, particularmente com CIVD. Eletrólitos, radiografia torácica e gasometria arterial são aconselháveis, já que essas reações podem causar insuficiência renal, distúrbios eletrolíticos e infiltrados pulmonares.

A doença do enxerto contra o hospedeiro associada à transfusão pode ser identificada por biópsia de pele da área afetada, ou por biópsia no intestino ou do fígado.[9]​ A tipagem de antígeno leucocitário humano (HLA) do receptor e do doador deve ser realizada.

Quando houver suspeita de púrpura pós-transfusional, o rastreamento de anticorpos plaquetários confirmará o diagnóstico.

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