Abordagem

A avaliação de um paciente em risco de suicídio é complexa e influenciada pelo médico, paciente e fatores organizacionais. Uma história cuidadosa e abrangente, junto com um exame completo do estado mental são essenciais e devem ser respaldadas por uma abordagem compassiva. É impossível prever o risco de suicídio com exatidão em cada paciente e esta abordagem falha tanto para os pacientes quanto os médicos. Mesmo os fatores de risco associados com a mais alta razão de chances e uma correlação estatística significativa podem não ser clinicamente úteis durante a avaliação de um determinado indivíduo.[119] Além disso, a ausência de fatores de risco não significa a ausência de qualquer risco de suicídio, já que um paciente pode estar em risco iminente de suicídio, apesar de não fazer parte de um grupo de "alto risco". Também é vital lembrar que os pensamentos, sentimentos e impulsos suicidas (e o risco) podem variar em um período de tempo relativamente curto.[119] Em vez disso, os médicos devem identificar diligentemente todos os fatores de risco e focar em uma resposta individualizada com o intuito de remover, reduzir ou mitigar o risco em novos fatores de proteção e no planejamento da segurança.

Para crianças e adolescentes com problemas psiquiátricos que se apresentam ao pronto-socorro e que relatam ideação suicida atual ou recente e para aqueles que se apresentam após autolesão intencional clara ou suspeita, recomenda-se uma avaliação por um médico experiente na avaliação de condições de saúde mental pediátrica.[88]

História

Faça uma avaliação inicial, breve, do estado mental do paciente e das circunstâncias pessoais para determinar se é necessário um exame mais detalhado deste estado mental. A avaliação aprofundada inclui fatores biopsicossociais, fatores de risco e necessidades do paciente, pontos fortes e qualidades.

Para facilitar a revelação de pensamentos e sentimentos potencialmente dolorosos ou angustiantes, é vital conquistar a confiança do paciente. A maneira mais eficaz de fazer isso é através de uma interação compassiva e terapêutica. Os autores deste tópico recomendam fortemente o treinamento específico para mitigação do suicídio a fim de desenvolver e praticar essas habilidades. Um artigo revisando 70 estudos de pessoas com pensamentos suicidas constatou que aproximadamente 60% das pessoas que morreram subsequentemente pelo suicídio antes havia negado os pensamentos suicidas quando perguntados por um psiquiatra ou médico de atenção primária.[44] Isto realça a necessidade de uma relação compassiva e de confiança que permita aos pacientes revelarem o que pensam. Além disso, confirma o quanto é importante considerar todos os riscos, incluindo o grau de dor emocional. Realize um exame abrangente do estado mental enquanto obtém a história e observe quaisquer fatores de risco e sinais de alerta.

Os fatores que diferenciam os que têm pensamentos de suicídio dos que vão tomar uma atitude com base nesses pensamentos e depois tentar o suicídio ainda são duvidosos.[120][121] Os fatores de risco mais fortes para agir motivado por pensamentos suicidas nos países de alta renda são o comportamento suicida prévio e um transtorno de humor, particularmente se for acompanhado por abuso de substância e/ou eventos de vida estressantes. Embora os transtornos de saúde mental contribuam em grande parte para o suicídio, em alguns contextos, especialmente onde as taxas de suicídio são altas, esteja ciente que as influências sócio-culturais ou político-econômicas podem ser importantes considerações. Os fatores mais preditivos de suicídio iminente são a presença de um plano de suicídio e o acesso imediato a meios letais.[122]

Avaliação de um paciente em risco de suicídio

Esteja ciente da postura e posicionamento em relação ao paciente. Sempre que possível, vise uma atmosfera acolhedora, sem pressa, genuinamente preocupada e isenta de julgamento. Seja sensível se o paciente se sente confortável com o contato visual direto. A discussão deve ter a atmosfera de uma conversa suave, com perguntas sendo utilizadas como lembretes em vez de uma abordagem de consulta mais tradicional concentrada em obter informações através de uma lista de perguntas. Em geral, os seguintes pontos podem ser úteis.

  • Use linguagem apropriada, não médica, e as palavras que o paciente usa quando descreve seus sintomas e experiências.

  • Conceda ao paciente tempo suficiente para responder as perguntas e evite quaisquer suposições ou interrupções, se possível.

  • Faça perguntas abertas e evita qualquer julgamento ou viés implícito: por exemplo, "Como você está se sentindo hoje?"

  • Reúna detalhes específicos a respeito dos pontos fortes e suportes do indivíduo.

  • O reconhecimento de que alguns tópicos como os pensamentos suicidas passados ou presentes e a lesão autoprovocada podem ser particularmente sensíveis e difíceis. Explique os benefícios de reunir essas informações para que vocês possam trabalhar juntos e produzir um plano de tratamento e também um plano de segurança para eles levarem consigo. Dê mais tempo ao paciente para responder essas perguntas.

  • Assim como os aspectos usuais de obtenção da história e um exame do estado mental, também é útil fazer perguntas como essas:

    • O que é importante para você? O que você acha reconfortante?

    • Existem pessoas, lugares, animais, atividades ou realizações que fazem você se sentir esperançoso?

    • Há mais alguma coisa que eu deva saber sobre você?

4 Mental Health: assessment of a patient with suicidal thoughts Opens in new window

Obtenha o máximo de informações possíveis sobre os fatores de proteção que, nos idosos, incluem as relações interpessoais, atividades e interesses significativos, envolvimento da comunidade e envolvimento da equipe de serviços de saúde mental.[123]

Quando abordar jovens que tenham pensamentos de autolesão ou que tenham se lesionado, sempre pergunte sobre o uso da Internet. A Internet pode ser útil (para reduzir o isolamento social, fornecer apoio formal e informal), mas também pode ser nociva (incluindo desencadeamento e contágio suicida).[124]

A alta prevalência de desconhecimento dos pais e a negação adolescente dos pensamentos suicidas encontradas em um grande estudo comunitário avaliando a concordância entre pais e adolescentes em relatos de pensamentos suicidas sugere que muitos adolescentes em risco de suicídio podem passar despercebidos. Esses achados têm importantes implicações clínicas nos contextos relacionados aos adolescentes, incluindo a necessidade de uma abordagem com múltiplos informantes para rastreamento de suicidas e uma abordagem personalizada para a avaliação.[125]​ Além disso, a American Academy of Pediatrics recomenda que os adolescentes sejam rastreados quanto ao risco de suicídio como parte das consultas de rotina a partir dos 12 anos de idade, bem como durante quaisquer situações de alto risco.[126]

4 Mental Health: areas to cover during an assessment after self-harm Opens in new window

Os pacientes pediátricos que se apresentam ao pronto-socorro devem ser rastreados quanto ao risco de suicídio, bem como de transtornos decorrentes do uso de substâncias, pois o uso de substâncias é frequentemente associado à depressão e ao autotratamento, além de ser um fator de risco para pensamentos e comportamentos suicidas.[126]​ Para os pacientes psiquiátricos pediátricos que se apresentam ao pronto-socorro, é benéfico entrevistar os pacientes e os cuidadores juntos e separadamente. Os pacientes frequentemente minimizam a gravidade dos seus sintomas ou a intenção por trás de seus atos. Ao entrevistar os adolescentes sozinhos, discutir os limites da confidencialidade do paciente pode facilitar uma conversa aberta e honesta. Se houver preocupações significativas de que o paciente possa estar em alto risco de danos a si mesmo ou a outrem, o médico pode decidir quebrar a confidencialidade médico-paciente.[88]

Outras questões a considerar

Reúna informações sobre a história psiquiátrica, médica, psicossocial e familiar do paciente, já que elas podem fornecer um contexto importante.

  • História psiquiátrica: até 90% das pessoas que morrem por suicídio têm um diagnóstico psiquiátrico, mais comumente transtorno depressivo maior ou uso indevido de substâncias.[51][52]​​​[53] O suicídio também está associado a outros transtornos do humor (por exemplo, transtornos bipolares I e II, transtorno esquizoafetivo), transtornos de ansiedade, anorexia nervosa e transtornos psicóticos.[127] Os transtornos psiquiátricos devem ser diagnosticados usando os critérios de diagnóstico internacionais padrão (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais [DSM], 5a edição, ou Classificação Internacional de Doenças [CDI]).

  • História médica: obtenha a história médica para identificar a presença de diagnósticos clínicos ou desafios físicos presentes que puderem aumentar o risco de suicídio a curto e longo prazos, como doença terminal ou crônica, dor, comprometimento funcional ou cognitivo, perda de visão ou audição, deformidade ou perda de independência ou dependência elevada de outrem.​​[53][65]​​[66]​​[67][68][69][70][71]

  • História psicossocial: fornece informações sobre a situação de vida atual do paciente, nível de funcionamento, estressores agudos ou crônicos, recursos como a disponibilidade de apoio social externo, fatores de atenuação de risco e crenças culturais ou religiosas relacionadas a morte ou suicídio. Reúna também informações sobre a história de conflitos familiares, luto[85] separação ou divórcio, problemas legais, uso de substâncias, violência doméstica, abuso (físico, emocional ou sexual) e abandono.

  • História familiar: uma história familiar de suicídio aumenta o risco vitalício de suicídio deste indivíduo, naqueles com ou sem um diagnóstico conhecido de doença mental.[61]

Exame

Realize um exame do estado mental psiquiátrico cuidadoso para poder considerar pensamentos e atos de autolesão dentro do contexto de quaisquer sintomas psiquiátricos atuais. A agitação é uma característica preocupante se presente ao lado da ideação suicida.[88][128] Também é útil avaliar os pontos fortes e fracos da personalidade. Os traços de personalidade ou os estilos de pensamento afetam como ele tolera o estresse emocional ou psicológico e qual tipo de estratégias de enfrentamento ele utiliza para lidar com esses estressores.[88] Embora esses fatores não prevejam o suicídio, eles podem contribuir com o perfil de risco geral através de seu efeito na capacidade do paciente de lidar com problemas, e os sistemas de apoio disponíveis para ele.

Investigações

As ferramentas para avaliação do risco de suicídio usam principalmente fatores de risco demográficos (que são inespecíficos para o indivíduo) e que foram desenvolvidos em grande parte sem uma base de evidências sólida.[129] Fatores de risco demográficos podem estar associados com um aumento no risco de suicídio de toda uma população ao longo de sua vida, mas não preveem o suicídio em um indivíduo em um único ponto no tempo. Além disso, os fatores de risco sócio-demográficos "conhecidos" associados ao suicídio podem não se aplicar às pessoas que têm um diagnóstico psiquiátrico concomitante.[130]

As escalas de risco podem fornecer falsas garantias e não devem mais ser utilizadas para prever o suicídio após a lesão autoprovocada.[131][132] As escalas de risco não devem substituir uma avaliação psicossocial abrangente da situação individual do paciente, dos riscos e necessidades, bem como de suas qualidades e pontos fortes.[133]

Não confie totalmente na identificação dos fatores de risco durante a avaliação dos indivíduos. Uma pessoa pode estar em risco elevada ou iminente de suicídio, embora possa não se enquadrar em um grupo "de risco" conhecido e, por outro lado, nem todos os membros dos grupos de alto risco correm risco igual de suicídio.[119][131]​ Por exemplo, no National Confidential Inquiry into Suicide no Reino Unido, entre 2010 e 2020, o risco imediato de suicídio foi considerado baixo ou inexistente em 83% das pessoas no último contato com um profissional de saúde antes de morrerem por suicídio. As observações de casos dos pacientes conhecidos dos serviços de saúde do Reino Unido que morreram por meio de suicídio em até uma semana após sua última avaliação mostraram que 14% tiveram alta recente, 12% não aderiram à medicação e 23% faltaram à última consulta.[134]

Um paciente pode não admitir explicitamente os pensamentos de autolesão ou uma história de autolesão ou de tentativas de suicídio. Isto pode ser devido ao medo, estigma, vergonha, medo de ser julgado ou constrangimento. Geralmente uma abordagem compassiva vai ajudar a criar confiança para facilitar a revelação pelo paciente dos seus verdadeiros pensamentos e sentimentos. Se não ajudar, é mais seguro erra por excesso de cautela e ficar alerta que isso pode ser uma possibilidade. Família, amigos, profissionais de saúde, professores, colegas de trabalho ou outros também podem fornecer informações valiosas para dar suporte à avaliação.

Se não houver informações colaterais disponíveis e o paciente não responder as perguntas diretamente, o médico pode ter que confiar no julgamento clínico baseado nos riscos aparentes; sinais de alerta para ideação suicida, intenção ou plano ocultos (por exemplo, presença de psicose, desânimo, sofrimento emocional, culpa, desesperança, desamparo, raiva, agitação, incapacidade para desenvolver afinidade, dificuldade em fazer contato visual); e impressões subjetivas. Além disso, o médico talvez precise revisar os registros do hospital ou clínica para encontrar evidências de comportamentos prévios de lesão autoprovocada, e prestar muita atenção durante o exame físico em busca de sinais ou lesões suspeitas.

O uso deste conteúdo está sujeito ao nosso aviso legal