Abordagem

Apenas uma proporção de pessoas transgênero se apresentará a um profissional da saúde com o objetivo de ter acesso à assistência para afirmação de gênero. Para as pessoas transgênero que em busca de tratamento para afirmação de gênero, a apresentação inicial é geralmente a um médico de atenção primária, endocrinologista ou especialista em saúde mental. As recomendações de consenso das diretrizes internacionais recomendam que, quando uma pessoa transgênero procura tratamento para afirmação de gênero com hormônios ou cirurgia, o diagnóstico de incongruência de gênero ou disforia de gênero deve ser feito por profissionais da saúde qualificados, familiarizados com os critérios diagnósticos e com experiência em avaliar para a presença de quaisquer problemas de saúde mental ou física de confundimento/coexistentes que puderem complicar o diagnóstico.[4][31]

O papel do médico da atenção primária é normalmente realizar a avaliação inicial antes de encaminhar para serviços especializados; alternativamente, os pacientes podem ser encaminhados para serviços especializados em gênero por um psicólogo, um psiquiatra não especialista ou um médico especializado em saúde sexual. Os modelos de serviços variam substancialmente de acordo com a localidade, mas como princípio geral recomenda-se fortemente a avaliação diagnóstica no âmbito de uma equipe multidisciplinar especializada.[31] Na prática, se um serviço especializado em gênero não for capaz de avaliar um paciente em um prazo razoável, o encaminhamento para serviços de endocrinologia ou de saúde mental pode ser necessário como medida provisória, dependendo do cenário clínico e das circunstâncias do indivíduo.[32]​ É importante observar que em algumas partes do mundo, os serviços especializados para pessoas transgênero são limitados ou totalmente indisponíveis e, portanto, os profissionais da atenção primária podem precisar assumir um papel muito maior na avaliação e manejo de pessoas transgênero que buscam cuidados para afirmação de gênero, indicando uma necessidade muitas vezes não satisfeita de educação e formação profissional especializadas.[4]

As pessoas transgênero podem ter maior probabilidade de se envolverem em práticas sexuais de risco, especialmente aquelas que sofrem marginalização social.[33][34]​​ A obtenção da história sexual pode, portanto, ser importante para avaliar o risco e orientar o rastreamento de infecções sexualmente transmissíveis (IST), mas requer sensibilidade e consciência do nível de conforto da pessoa e dos sinais não-verbais. Isto pode ocorrer na atenção primária ou secundária, mas observe que em algumas circunstâncias pode ser apropriado adiar a coleta da história sexual para uma consulta posterior, a fim de primeiro se estabelecer uma boa aliança terapêutica. As práticas sexuais variam muito e não devem ser presumidas. As pessoas transgênero podem ter parceiros masculinos, femininos ou outras transgêneros.

Avaliação inicial na atenção primária

​Uma história completa, incluindo a avaliação do estado mental, é recomendada como parte da avaliação inicial na atenção primária.[32]​ Os médicos devem perguntar sobre usos de hormônios e cirurgias gonadais passados e presentes, e sobre quaisquer planos futuros para uso de hormônios ou cirurgias. Não é incomum que as pessoas autoadministrem hormônios e/ou bloqueadores hormonais sem supervisão médica obtidos pela internet, especialmente se o acesso a assistência for limitado, o que acarreta um aumento do risco de efeitos adversos em comparação com o tratamento supervisionado por um médico.[35][36]​​ Os médicos devem perguntar sobre o uso de quaisquer remédios fitoterápicos ou suplementos alimentares, e perguntar sobre qualquer uso de injeções de silicone, que pode ser administrado com o uso de técnicas não estéreis, aumentando o risco de infecções transmitidas pelo sangue.

As pessoas transgênero podem apresentar aumento do risco de problemas gerais de saúde mental, incluindo depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, probabilidade de suicídio e transtornos decorrentes do uso de substâncias.[1][2]​​[14]​​ Vários fatores sociais externos, incluindo o estigma, a discriminação e o estresse das minorias, foram sugeridos como fatores contribuintes.[15] A atenção primária pode representar um espaço seguro para a revelação de sintomas e preocupações de saúde mental, portanto, é provável que o rastreamento e a avaliação para problemas de saúde mental na atenção primária sejam valiosos se realizados de forma contínua. É importante não presumir que todas as preocupações de saúde mental estejam necessariamente relacionadas com a identidade de gênero da pessoa.[37] A história social colhida pode identificar fontes importantes de apoio ou estresse, incluindo fatores familiares e econômicos.

Avaliação na atenção secundária, incluindo o diagnóstico

​Como o diagnóstico é a via para um tratamento potencialmente irreversível, é necessário identificar qualquer comorbidade, descartar diagnósticos diferenciais e fazer um diagnóstico adequado usando os critérios de diagnóstico relevantes (consulte Critérios de diagnóstico).[4][31]​ O diagnóstico é normalmente feito por um profissional de saúde mental, mas, dependendo dos modelos de serviços locais, outro profissional da saúde (por exemplo, endocrinologista médico de atenção primária) pode fazer o diagnóstico, desde que tenha experiência, formação e conhecimento dos critérios diagnósticos adequados. Idealmente, o diagnóstico deve ser feito por um médico que trabalhe no contexto de uma equipe multidisciplinar e especializada em identidade de gênero.

Os médicos devem seguir as orientações locais relevantes para o seu país de prática; por exemplo, a orientação norte-americana da Endocrine Society oferece detalhes sobre os critérios necessários para se fazer um diagnóstico de disforia/incongruência de gênero em adultos.[31] Os médicos devem estabelecer se os critérios de diagnóstico relevantes para disforia/incongruência de gênero são atendidos, de acordo com os critérios diagnósticos relevantes para sua localidade de prática.[1][2]

É importante que todas as preocupações quanto à saúde mental ou diagnósticos diferenciais (por exemplo, transtorno dismórfico corporal) que puderem complicar/explicar o diagnóstico sejam avaliados e potencialmente tratados, antes de se considerar o tratamento para afirmação de gênero.[4][31]​​ Avaliar se há uma intenção séria de mudar o papel social de gênero, ou se o desejo declarado de tratamento hormonal ou cirurgia visa a eliminar as características de um sexo sem buscar as características do outro ou adquirir características de ambos e, principalmente, sem alterar o papel de gênero social. Este último aspecto está mais de acordo com o transtorno dismórfico corporal ou a autoginefilia.[27]

Os médicos devem identificar e avaliar quaisquer condições clínicas ou fatores de risco subjacentes (por exemplo, fatores de risco cardiovascular, história de câncer de mama) que puderem complicar ou impedir o tratamento hormonal.[4] Aqueles que recebem tratamento endócrino e que têm contraindicações relativas aos hormônios, como, tabagismo, diabetes, doença hepática, devem debater intensamente com o seu médico a respeito dos riscos e benefícios da terapia.[31]

Os médicos devem avaliar a capacidade de consentimento para o tratamento de afirmação de gênero, explorar os objetivos do paciente para o tratamento, incluindo as expectativas de tratamento, estabelecer que o desejo de transição é apropriado e persistente, confirmar a sua compreensão dos riscos versus benefícios, e discutir o impacto potencial sobre a fertilidade futura, incluindo opções de preservação da fertilidade.[4][31]

Quadro clínico

Determine se existe uma história anterior de disforia ou incongruência de gênero na infância, recorrendo a informantes se possível. Quando crianças, as pessoas transgênero podem ter demonstrado inconformidade de gênero acentuada em relação a suas preferências, maneirismos, desempenhos de papéis, sonhos, fantasias e preferências por brincadeiras e brinquedos estereotipados como sendo de um gênero. Elas podem ter dito que não queriam desenvolver características sexuais secundárias de seu gênero designado, pedido para remover suas características sexuais primárias ou ter tido esperança de crescer e se transformar em um adulto do gênero ao qual sentem pertencer.[2]

A anamnese deve esclarecer se a pessoa adotou comportamentos de seu gênero vivenciado e se adotou medidas para alterar suas características sexuais primárias e secundárias. Os indivíduos com sexo atribuído como masculino ao nascer podem remover os pelos faciais, corporais e da perna e/ou amarrar seus genitais. Indivíduos com sexo atribuído como feminino ao nascer podem enfaixar suas mamas. As pessoas transgênero são muitas vezes relutantes em permitir que os parceiros sexuais vejam ou toquem nos seus órgãos genitais.[2]

A manifestação mais comum de disforia/incongruência de gênero em indivíduos com sexo masculino atribuído ao nascer é o travestismo. O travestismo pode ser descrito como o uso de roupas do outro sexo para desfrutar da experiência temporária de pertencer ao outro sexo.

As pessoas transgênero podem adotar um primeiro nome consistente com o gênero vivenciado.[2]

O exame físico geralmente não apresenta nada digno de nota. O vestuário, o penteado, o estilo vocal e os maneirismos podem se assemelhar aos do gênero com o qual o paciente se identifica.[2]

Investigações laboratoriais

Os androgênios séricos devem ser verificados nos indivíduos com sexo feminino ou masculino atribuídos ao nascer, tanto como parâmetro basal quanto durante qualquer tratamento hormonal.[32]​ Ao diagnóstico, a presença de testosterona e di-hidrotestosterona séricas elevadas e hormônio folículo-estimulante e hormônio luteinizante não suprimidos sugere uma síndrome de insensibilidade androgênica parcial, a qual requer aconselhamento genético para a família. Baixos níveis de testosterona e altos níveis de gonadotrofinas em homens sugerem síndrome de Klinefelter.' Níveis elevados de androgênios em indivíduos com sexo atribuído como feminino ao nascer podem sugerir síndrome do ovário policístico.

Os exames de sangue iniciais recomendados incluem testes da função hepática, lipídios, hematócrito e hemoglobina (para avaliar para policitemia) e prolactina.[32]

Em algumas localidades, é uma prática comum medir o antígeno prostático específico (PSA) nos indivíduos com sexo atribuído como masculino ao nascer, com idade igual ou superior a 45 anos, antes do início da terapia hormonal, para se obter um nível basal e descartar um câncer de próstata não diagnosticado. É importante observar que após o início do tratamento hormonal, o PSA pode ser uma ferramenta de medição menos útil para o câncer de próstata, dado que os níveis de PSA normalmente despencam naqueles que fazem terapia hormonal para afirmação de gênero; é necessário cuidado extra na interpretação dos resultados.[38]

Os níveis de vitamina D são medidos rotineiramente em alguns centros, dada a elevada taxa de deficiência de vitamina D na população transgênero.[39]

Um exame de saúde sexual de rotina para avaliar para ISTs pode ser realizado na atenção primária ou secundária, conforme orientado por quaisquer fatores de risco específicos observados na história sexual.

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