Etiologia

A maioria das ingestões tóxicas em crianças jovens (<6 anos de idade) não são intencionais. Crianças exploram o ambiente ao seu redor através de experimentação, e mimetizam as ações de outros, incluindo o ato de tomar medicamentos. Elas possuem uma habilidade reduzida para distinguir medicamentos ou produtos químicos domésticos potencialmente perigosos de bebidas, alimentos ou doces, e podem ingerir essas substâncias se as mesmas estiverem acessíveis. Crianças também podem ingerir cogumelos tóxicos, frutas silvestres ou plantas domésticas. Pica é um distúrbio clínico no qual crianças desenvolvem um apetite por substâncias não nutritivas, o que aumenta o risco de uma ingestão tóxica.

A ingestão deliberada geralmente ocorre em crianças mais velhas. Em geral, a ingestão representa um pedido de ajuda; crianças raramente têm a intenção de cometer suicídio. Geralmente, mas nem sempre, a criança informa um amigo ou parente. Em situações mais raras, pode haver uma história de transtorno mental ou depressão com ideação suicida, caso em que a ingestão representa uma tentativa genuína de suicídio. É mais provável que a substância seja um medicamento presente na casa ou que pode ser facilmente comprado sem prescrição. Um produto químico disponível na garagem, no sótão ou em estoque também pode ser ingerido. Meninas têm mais propensão que meninos a considerar lesões auto-infligidas.[11]

Ingestão deliberada também pode ocorrer em uma tentativa de 'viajar'. Isso geralmente ocorre em crianças e adolescentes mais velhos onde a pressão de pares é significativa. O etanol continua sendo um dos compostos mais popularmente ingeridos para uso recreativo. Outros agentes incluem dextrometorfano e difenidramina (encontrados em medicamentos para tosse e gripe), metilfenidato e anfetamina, inalação de solventes orgânicos ou asfixiantes, benzodiazepínicos (como alprazolam) e opioides (como hidrocodona e oxicodona).

Fisiopatologia

Uma vez que a toxina é ingerida, o agente deve transitar no trato gastrointestinal e ser absorvido no estômago (etanol) ou no intestino delgado (a maioria dos outros agentes). Ácidos fortes e álcalis podem lesionar a boca, a faringe, o esôfago e outras partes mais distais do trato gastrointestinal. A maioria dos agentes são rapidamente absorvidos, mas algumas toxinas retardam sua própria absorção (por exemplo, opioides, salicilatos, bloqueadores dos canais de cálcio de liberação sustentada e agentes antimuscarínicos como a difenidramina), e outros têm a absorção retardada devido à sua formulação (por exemplo, produtos de liberação sustentada). Alguns agentes são inalados.

A natureza e a extensão da toxicidade dependem da substância ou substâncias consumidas.

  • Paracetamol: a superdosagem produz quantidades aumentadas do metabólito tóxico intermediário N-acetil-p-benzoquinonaimina (NAPQI), excedendo o nível que o fígado consegue desintoxicar. O NAPQI causa toxicidade mitocondrial e morte de hepatócitos, potencialmente conduzindo à insuficiência hepática fatal.[12]

  • Ibuprofeno: como anti-inflamatório não esteroidal (AINE), a toxicidade é produzida pela inibição da ciclo-oxigenase e da inibição da síntese de prostaglandinas. A maioria das superdosagens é assintomática ou apresenta sintomas leves. No entanto, em grandes doses, é possível haver sintomas gastrointestinais (inclusive dor abdominal, náusea, vômito e sangramento) e comprometimento renal agudo. Sintomas do sistema nervoso central (SNC) podem ser observados em caso de superdosagem e incluem redução do nível de consciência. Há relatos também de convulsões generalizadas e apneia.[13]

  • Salicilatos: a toxicidade produz irritação local do trato gastrointestinal, desacoplamento da fosforilação oxidativa, estimulação direta do centro respiratório no tronco encefálico, estimulação da taxa metabólica, perturbação do metabolismo de lipídios e de carboidratos e distúrbios na hemostasia. A frequência respiratória aumentada produz uma alcalose respiratória, que é anulada por perturbações metabólicas, que, por sua vez, produzem acidose metabólica causada pelo acúmulo de ácidos orgânicos.[14]

  • Opioides: os efeitos tóxicos são mediados pelo estímulo de receptores kappa e mu no SNC e no sistema nervoso periférico. A estimulação do receptor mu produz analgesia, euforia, depressão respiratória e miose. A estimulação do receptor kappa produz analgesia, miose, depressão respiratória e sedação.[15]

  • Simpatomiméticos (agonistas alfa, agonistas beta, anfetaminas/psicoestimulantes, inibidores da monoaminoxidase [IMAOs]): estas substâncias produzem a ativação do sistema nervoso simpático pela estimulação direta de adrenorreceptores alfa ou beta, liberação indireta de noradrenalina pré-sináptica, prevenção de captação pré-sináptica da noradrenalina, ou inibição do metabolismo da noradrenalina. A toxicidade produz ativação excessiva do sistema nervoso simpático, causando broncoespasmo, hipertermia, hipertensão extrema, arritmias ou isquemia cardíacas, convulsões, acidentes vasculares cerebrais (AVCs) ou sangramentos intracranianos. Alguns simpaticomiméticos têm vários mecanismos de ação, o que pode variar de acordo com a dosagem. Por exemplo, a fenilefrina, um componente de alguns medicamentos descongestionantes de venda livre, exerce seus efeitos principalmente como agonista alfa, mas, em doses extremamente altas, pode também exercer atividade agonista beta.

  • Agentes antimuscarínicos: os efeitos tóxicos de medicamentos como a difenidramina são mediados pelo bloqueio de receptores muscarínicos. A ampla distribuição desses receptores resulta em um conjunto característico de sintomas, incluindo hipertensão (que é menos marcada que aquela produzida por simpatomiméticos), taquicardia, hipertermia, midríase, pele avermelhada, retenção urinária, ruídos hidroaéreos ausentes, perda da transpiração, sedação ou agitação e convulsões.

  • Inibidores da colinesterase: incluem-se aqui os organofosforados, que apresentam uma variedade de usos. Inibidores da colinesterase são também encontrados naturalmente em uma variedade de plantas e fungos. A intoxicação causa um excesso de acetilcolina em regiões simpáticas, parassimpáticas, SNC e junção neuromuscular. Os efeitos parassimpáticos são predominantemente precoces e causam secreções excessivas, broncoespasmo, diarreia e pupilas puntiformes. Os efeitos simpáticos podem causar hipertensão e taquicardia. Os efeitos colinérgicos no SNC contribuem para convulsões e insuficiência respiratória em intoxicações graves.[16]

  • Barbitúricos: esses medicamentos potencializam e prolongam os efeitos do ácido gama-aminobutírico (GABA), um dos principais neurotransmissores inibitórios no cérebro. Os efeitos diretos incluem sedação e atividade hipnótica em posologias baixas. O efeito calmante do SNC mimetiza aquele do etanol. A depressão dos centros respiratório e vasomotor no bulbo causa depressão respiratória e cardiovascular.

  • Benzodiazepínicos: estes medicamentos potencializam e prolongam os efeitos do GABA. Os efeitos diretos incluem sedação, ação hipnótica e relaxamento muscular. A depressão dos centros respiratório e vasomotor medulares causa depressão cardiovascular, mas a mortalidade por superdosagem é rara.

  • Metanol: usado como solvente marítimo e industrial, e também em removedores de tinta, fluido de fotocopiadoras, goma-laca e líquidos para limpeza de para-brisas. A toxicidade após a ingestão é produzida pela subsequente acidose metabólica e a formação de ácido fórmico, que causa danos aos olhos, levando à cegueira.[17]

  • Etilenoglicol: um líquido de sabor doce, sem cheiro e sem cor usado em anticongelantes. A substância por si só não é tóxica, inicialmente causando embriaguez. Entretanto, a toxicidade aparece em até 12 a 24 horas por causa da acidose metabólica e da formação de oxalato de cálcio a partir de um dos metabólitos. A deposição de oxalato de cálcio nos pulmões, miocárdio e rins causa danos respiratórios e cardíacos seguidos de lesão renal aguda. Pode também ocorrer hipocalcemia devida ao consumo do cálcio circulante pela formação de cristais.[18]

  • Isopropanol: um solvente usado em muitos colutórios bucais, loções para a pele e álcool cirúrgico. A toxicidade é causada por depressão do SNC e irritação do trato gastrointestinal. Ao contrário do metanol e do etilenoglicol, não há acidose metabólica.[19]

  • Produtos de limpeza: incluem uma variedade de corrosivos e de soluções à base de fluoreto.[20]​ Ingestões alcalinas ou ácidas causam necrose tecidual; o principal local de necrose é o estômago, para ingestões ácidas, e o esôfago, para ingestões alcalinas. O fluoreto possui uma variedade de efeitos tóxicos, inclusive irritação ou corrosão gastrointestinal, ligação ao cálcio (causando hipocalcemia, hipomagnesemia e inibição de enzimas cálcio-dependentes, canais iônicos e transportadores), inibição da adenosina trifosfatase de sódio/potássio (acarretando hipercalemia) e inibição da acetilcolinesterase.

  • Corpos estranhos: estas ingestões podem ser benignas e merecer apenas observação ou, em alguns casos, podem levar a consequências clínicas mais graves. As seguintes situações são particularmente preocupantes:

    • chumbo - objetos alojados no estômago podem causar toxicidade aguda por chumbo

    • baterias tipo botão - especialmente se ficarem presas no esôfago, podem causar danos tanto por pressão local quanto por efeitos cáusticos

    • ímãs - que podem se ligar a si mesmos ou a outro metal e causar perfuração intestinal.[21][22][23]

  • Sais de bário: são aditivos lubrificantes em produtos cosméticos e farmacológicos. Eles são rapidamente absorvidos e causam hipocalemia profunda, potencialmente fatal.[24]

  • Betabloqueadores: esses medicamentos bloqueiam os adrenorreceptores beta. A toxicidade resulta em bradicardia, hipotensão e hipoglicemia. A depressão cardíaca mediada centralmente também pode ocorrer.

  • Bloqueadores dos canais de cálcio: esses medicamentos produzem vasodilatação periférica com hipotensão e bradicardia devido a seus efeitos diretos no sistema cardiovascular. A inibição da liberação da insulina causa hiperglicemia. A inibição do uso de ácidos graxos causa acidose láctica.

  • Bloqueadores dos canais de sódio: incluem medicamentos antiarrítmicos de classe 1 e antidepressivos tricíclicos. A toxicidade principal é produzida pela diminuição da condução cardíaca, resultando em arritmias e/ou hipotensão. Sintomas gastrointestinais ou do SNC também podem ocorrer. A disopiramida e a quinidina podem causar síndromes anticolinérgicas.

  • Varfarina: inibe a síntese de fatores de coagulação dependentes de vitamina K II, VII, IX e X, e das proteínas anticoagulantes C e S. A toxicidade causa anticoagulação excessiva e sangramento.

  • Digoxina: este medicamento inibe a bomba adenosina trifosfatase de sódio-potássio, produzindo um efeito inotrópico positivo pelo aumento do cálcio e do sódio intracelulares e declínio do potássio intracelular. A toxicidade pode desencadear qualquer arritmia e produzir alteração sensorial ou do estado mental e sintomas gastrointestinais.

  • Sulfonilureia: esses medicamentos diminuem a glicose sanguínea, e a toxicidade produz hipoglicemia.

  • Ferro: produz efeitos corrosivos diretos no trato gastrointestinal e toxicidade celular por causa da captação excessiva do ferro. Os pacientes desenvolvem acidose metabólica devida à hipoperfusão sistêmica e ao desacoplamento da fosforilação oxidativa, que pode ser letal. Uma toxicidade grave causada pelo ferro pode passar despercebida por causa de um período quiescente que ocorre após uma fase inicial de náuseas e vômitos.[25]

  • Descongestionantes: medicamentos de venda livre comercializados para tratar os sintomas de tosse e resfriado são compostos por uma variedade de ingredientes ativos que variam de acordo com a preparação. Alguns ingredientes comuns incluem: anti-histamínicos (por exemplo, bronfeniramina, clorfeniramina, difenidramina e doxilamina) que podem exercer efeitos tóxicos antimuscarínicos, simpaticomiméticos (inclusive fenilefrina e pseudoefedrina), dextrometorfano e guaifenesina. A compreensão da complexa atividade farmacológica do dextrometorfano continua a evoluir, mas acredita-se que inclua: antagonismo dos receptores N-metil-D-aspartato; agonismo dos receptores sigma-1 neuronais, inibição da recaptação de neurotransmissores periféricos de noradrenalina e serotonina.[26]​ Ele é vendido como antitussígeno, mas pode também ser usado como droga de abuso, produzindo efeitos psicológicos em doses maiores do que as recomendadas. Entre esses efeitos estão euforia, confusão e agitação, mas podem progredir para experiências dissociativas fora do corpo e até mesmo alucinações e psicose em doses mais altas. Outras manifestações neurológicas podem incluir nistagmo, midríase, perda de coordenação motora, ataxia, coma e convulsões. Outras manifestações físicas da toxicidade do dextrometorfano incluem: taquicardia, pressão arterial elevada, diaforese, rigidez muscular e rabdomiólise. A guaifenesina é comercializada como um expectorante que ajuda a ralear e eliminar a congestão mucosa e torácica. Em geral, não se acredita que seja perigosa por si só, sendo o vômito considerado o principal sintoma em altas doses. É importante lembrar que medicamentos anti-inflamatórios, inclusive paracetamol e ibuprofeno, podem estar incluídos em alguns medicamentos de venda livre para tosse e resfriado.

  • Metais pesados: a ingestão de formicida que contenha arsênico ou de chumbo presente no ambiente pode causar toxicidade por metais pesados. A exposição a metais pesados causa uma ampla gama de sequelas psiquiátricas e físicas (cardiovasculares, renais, reprodutivas, gastrointestinais e neurológicas).

  • Plantas tóxicas ou cogumelos: a intoxicação por plantas ou cogumelos ocorre após o consumo acidental ou intencional de partes tóxicas de plantas (inclusive frutas, bagas, folhas, tronco e raízes) ou cogumelos. A maioria não causa nenhuma consequência ou apenas leves consequências clínicas; entretanto, várias substâncias químicas de plantas e cogumelos podem resultar em sintomas graves, disfunção de órgãos e até mesmo morte. As toxinas encontradas em plantas e em cogumelos incluem gastrotoxinas, hepatotoxinas, cardiotoxinas (geralmente, glicosídeos cardíacos), neurotoxinas (que podem produzir alucinações, neuropatia periférica, fraqueza neuromuscular ou convulsões), dermatotoxinas (que causam erupções cutâneas), hematotoxinas (que podem produzir coagulopatia ou supressão da medula óssea) e toxinas sistêmicas (por exemplo, anticolinérgicos ou colinérgicos).

  • Cianeto: essa toxina inativa a citocromo oxidase, inibindo assim a respiração celular. Ela afeta virtualmente todos os tecidos corporais, produzindo uma gama de sintomas cardiopulmonares, gastrointestinais e neurológicos progressivos.[27]

  • Síndrome serotoninérgica: pode ocorrer a partir da exposição a qualquer medicamento que aumenta a concentração intrassináptica de serotonina no SNC. Manifesta-se clinicamente com a tríade excitação neuromuscular, efeitos autonômicos e estado mental alterado. Os agentes causadores incluem antidepressivos (inibidores seletivos de recaptação de serotonina, venlafaxina, clomipramina, imipramina), opioides (petidina, tramadol, fentanila, dextrometorfano), IMAOs, anfetaminas, lítio e triptofano.[28]

  • Bloqueadores dos receptores de dopamina: o bloqueio do receptor 2 de dopamina pode causar efeitos que variam de uma simples acatisia até uma discinesia tardia. Alterações neurofisiológicas podem ser leves ou graves e resultar em síndrome neuroléptica maligna. Os medicamentos causadores incluem fenotiazinas, antipsicóticos atípicos e antieméticos.

  • Teofilina: a toxicidade está relacionada à liberação de catecolaminas endógenas, que causam estimulação de adrenorreceptores beta e antagonismo da adenosina. Os efeitos mais comuns são taquicardia sinusal e tremores, embora uma gama de arritmias atriais e ventriculares também possa ocorrer, incluindo taquicardia ventricular ou parada cardíaca com fibrilação ventricular ou atividade elétrica sem pulso. Hipotensão, hiperpneia, sintomas gastrointestinais e excitação do SNC também podem ocorrer.[29]

  • Solventes orgânicos: a toxicidade pode advir de hipóxia, convulsões, hepatotoxicidade ou danos renais. Certos hidrocarbonetos podem causar sensibilização do miocárdio a catecolaminas e, consequentemente, a disritmias ventriculares instáveis. O cloreto de metileno é metabolizado em monóxido de carbono e pode apresentar um problema especial, produzindo intoxicação oculta por monóxido de carbono.

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