Abordagem
Indivíduos com lesão crônica da medula espinhal (LME) podem apresentar várias sequelas clínicas que podem afetar quase todos os sistemas de órgãos, que devem ser avaliados de maneira detalhada. Avaliações precisas requerem um conhecimento da anatomia e da função dos tratos na medula espinhal.[28][29]
História
Lesões primárias
A história inicial da lesão desencadeante deve ser documentada. Isso deve incluir o mecanismo da lesão, os achados diagnósticos como exames de imagem, tratamentos e/ou intervenções cirúrgicas e quaisquer complicações. Devido à forte correlação entre a LME e a lesão cerebral, qualquer perda da consciência, alteração na memória de eventos ou alterações cognitivas devem ser observadas. A maioria dos pacientes participam de um programa de reabilitação aguda, e esses registros são muito valiosos para compreender sua lesão, o ciclo de recuperação, o estado funcional e as sequelas clínicas.
Lesão neurológica
É importante observar que o nível de imagem da lesão e o nível neurológico da lesão nem sempre são diretamente correspondentes: geralmente, o nível neurológico é mais alto. Embora seja comum usar o sistema de classificação da American Spinal Injury Association (ASIA) e o exame dos Padrões Internacionais da American Spinal Injury Association (ASIA) para Classificação Neurológica da Lesão na Medula Espinhal para classificar o estado neurológico após LME, seu uso prognóstico só pode ser aplicado a lesões traumáticas.[30] Se disponíveis, os resultados dos exames da ASIA devem ser mantidos para referência, caso haja suspeita de alteração neurológica. Uma história detalhada incluirá o mecanismo, o nível da lesão, a classificação da ASIA e a evolução da recuperação neurológica. O acompanhamento de rotina deve incluir uma revisão das alterações observadas pelo paciente, pela equipe de reabilitação ou pelo profissional da saúde.
Estado funcional
Todas as atividades para as quais o paciente precise de assistência e/ou uso de equipamentos adaptativos (por exemplo, cadeira de rodas, tábua de transferência, acessórios de suporte) devem ser documentadas. Qualquer declínio na função ou na independência requer uma investigação detalhada da causa subjacente, como novo processo infeccioso, lesão musculoesquelética, evolução da patologia espinhal ou nova patologia espinhal.
Controle vesical e saúde renal
As complicações do trato urinário superior e inferior são comuns, independente do mecanismo da LME. A retenção urinária com incapacidade de urinar é a apresentação mais comum (disfunção neurogênica do trato urinário inferior).[31][32] Uma história vesical detalhada incluirá a capacidade do paciente de sentir a bexiga cheia, como ele urina (inclusive a frequência, o volume típico e o tamanho do cateter para cateterismo intermitente, se for o caso) e a frequência da perda por incontinência. A história de infecções do trato urinário, inclusive resultado de culturas, resistência e tratamentos, deve ser documentada. Os resultados do teste urodinâmico, ultrassonografia renal, exame renal ou outro exame urológico também devem ser documentados.
Controle intestinal
A história deve avaliar o objetivo primário de movimentos intestinais previsíveis e continência social. O paciente deve ser questionado sobre sua capacidade de reconhecer a necessidade de evacuar, o nível de controle do esfíncter volitivo, a frequência e a consistência dos movimentos intestinais, eventos de constipação, episódios de incontinência e história de hemorroidas. A história também deve incluir a confiança para participar de atividades fora de casa. A incontinência causada por nova perda de tônus retal requer uma avaliação neurológica.
Espasticidade
O paciente deve ser questionado se e como a espasticidade o afeta, como, por exemplo, causando dor ou impedindo o sono, e seus efeitos sobre o estado funcional. A história também deve incluir os fatores desencadeantes típicos para o paciente, além de alterações na espasticidade e na amplitude de movimentos.
Dor
A dor é comum e, muitas vezes, complexa após a LME. Normalmente, há muitos fatores causadores de dor, e cada um requer atenção individual, avaliação e planejamento do tratamento.[33] Pode ser útil agrupá-los em três categorias:
Dor acima do nível da lesão: muitas vezes de natureza musculoesquelética, como com a cura de lesões traumáticas, lesões por uso excessivo dos ombros ou neuropatias focais por uso excessivo, como neuropatias ulnares ou medianas.
Dor abaixo do nível da lesão: normalmente, tem natureza neuropática com um gerador central
Dor no nível da lesão: também normalmente neuropática, mas pode estar presente com uma característica distintiva, como sensação de pressão ou de constrição.
A história deve incluir a eficácia das intervenções medicamentosas e não medicamentosas e o impacto sobre a função e a qualidade de vida. A perda da dor em decorrência da perda de sensação deve ser avaliada do ponto de vista neurológico.
Disfunção autonômica
Os pacientes com LME podem ter dificuldade para regular a temperatura, a pressão arterial, a frequência cardíaca e o broncoespasmo. Isso pode causar hiper ou hipotermia, ortostasia e resposta cardíaca mais lenta às demandas da atividade.
Disreflexia autonômica
Pacientes com nível neurológico igual ou acima de T6 podem apresentar uma emergência hipertensiva disautonômica chamada disreflexia autonômica. Na maioria das vezes, é causada por constipação, distensão vesical ou irritação vesical, mas pode ser desencadeada por qualquer estímulo doloroso abaixo do nível da lesão. Manifesta-se clinicamente como um aumento relativo na pressão arterial sistólica >20 mmHg acima da linha basal e bradicardia relativa devido a uma resposta parassimpática. Qualquer história de disreflexia autonômica deve ser documentada e discutida, inclusive sintomas durante o evento, como cefaleia pulsátil, rubor facial, piloereção, ansiedade, sudorese, obstrução nasal ou choro (em paciente pediátrico). A história deve incluir os fatores desencadeantes e o plano de emergência do paciente.
Hipotensão ortostática
É comum que os pacientes tenham pressão arterial sistólica em repouso muito mais baixa que a linha basal pré-lesão (por exemplo, 90 mmHg). A hipotensão ortostática também é comum devido à diminuição do tônus neurovascular e pode afetar a função diária, bem como o risco de síncope. O paciente deve ser questionado sobre os sintomas e estratégias usadas para controlar os sintomas, como meias de compressão, cintas abdominais, aumento dos fluidos orais e qualquer medicamento.
Trombose venosa
O risco de trombose venosa permanece elevado por toda a vida após a LME. Tromboses prévias devem ser observadas, bem como dispositivos implantados prévios ou atuais, como filtro de veia cava. Todos os edemas de membros inexplicados devem ser investigados.
Doenças cardiovasculares
A doença cardiovascular é a segunda causa mais comum de morte em pacientes com LME.[34] Deve-se obter uma história cardíaca detalhada, independente da idade do paciente.
Saúde respiratória
As complicações respiratórias (por exemplo, atelectasia, pneumonia) são a principal causa de morbidade e mortalidade após LME.[34] O impacto da LME sobre o sistema respiratório varia muito de acordo com a gravidade da lesão, de dependência vitalícia do respirador à função respiratória normal. O broncoespasmo pode ser causado pela desregulação autonômica. Os sintomas respiratórios e as vacinas contra doenças respiratórias devem ser documentados.
Saúde óssea
Há um aumento do risco de fraturas por fragilidade em todas as idades após LME, correlacionadas com a gravidade da paralisia. Isso ocorre devido à perda de densidade óssea rápida e substancial após a paralisia, à redução da força física no osso e a outros fatores neuro-humorais complexos.[35][36] A história deve incluir história de fraturas prévias, níveis de vitamina D, resultados da densitometria óssea, manejo como com bifosfonato e história familiar de osteoporose ou fraturas por fragilidade.
Saúde da pele
Sensação alterada e paralisia causam aumento do risco de lesões relacionadas a pressão, e a incontinência pode causar ruptura da pele relacionada à hidratação. Os pacientes devem ser questionados sobre problemas de pele, a frequência com a qual inspecionam a pele e estratégias para aliviar a pressão.
Disfunção sexual e fertilidade
A função sexual costuma ser afetada pela LME e isso deve ser discutido se o paciente estiver aberto ao diálogo. Deve-se observar que os fatores psicológicos podem desempenhar um papel confuso nessa população, assim como ocorre com a população em geral. Os pacientes do sexo masculino devem ser questionados sobre as ereções, inclusive sobre força, duração, se a ereção é possível por estímulos psicológicos, se a ereção é possível por estimulação direta, capacidade de orgasmo e se a ejaculação está presente. Qualquer medicamento ou dispositivo que restringe o fluxo sanguíneo deve ser observado. As pacientes do sexo feminino devem ser questionadas sobre a produção de lubrificação, se a excitação pode ser obtida por meios psicológicos, se a excitação pode ser obtida por estimulação direta e sobre a capacidade de orgasmo. Como as interações sexuais podem produzir eventos de disreflexia autonômica em homens e mulheres, isso também deve ser discutido. A fertilidade é consideravelmente reduzida em homens com LME, e a intenção de ter filhos deve ser discutida.[37] Mulheres com LME geralmente não apresentam redução na fertilidade após a fase inicial de amenorreia, mas as investigações podem ser insuficientes.[38][39]
Comorbidades psicológicas
Há aumento do risco de depressão, transtorno de ansiedade, transtorno por uso de substâncias, TEPT e suicídio em pacientes com LME.[40][41] O rastreamento deve ser realizado em cada consulta, para incluir os sintomas atuais e a história vitalícia.[41]
Integração social
Após a LME, os indivíduos enfrentam barreiras pessoais, internas e externas ao seu papel em casa, no trabalho e nas atividades sociais e de lazer. Os pacientes devem ser questionados sobre o tempo e as atividades fora de casa, hobbies, situação de trabalho e outras atividades sociais de que gostam.
Exame físico
A avaliação neuromuscular de indivíduos com LME utiliza múltiplas avaliações de especialistas. A documentação é importante para identificar possíveis alterações neurológicas e para ajudar a estratificar a urgência de relatos subjetivos de declínio funcional. Uma alteração neurálgica encontrada no exame físico sempre requer avaliações adicionais.
Avaliação do tônus muscular
Os pacientes podem apresentar flacidez ou espasticidade. A espasticidade pode ser avaliada e classificada por meio da Escala de Ashworth modificada:[42]
0: sem aumento no tônus muscular
1: leve aumento no tônus muscular, com resistência no final da faixa de movimento
1+: leve aumento no tônus muscular, com resistência elevada por toda a faixa de movimento
2: aumento acentuado no tônus por toda a faixa de movimento
3: aumento no tônus muscular, movimento passivo difícil
4: articulação rigidamente mantida em flexão ou extensão.
A espasticidade e o aumento do tônus muscular são dinâmicos e podem flutuar. Isso pode causar contraturas nas articulações, perda da função e aumento do risco de ruptura da pele.
Avaliação da força muscular
A avaliação de músculos específicos está relacionada com um nível espinhal específico. A força motora dos seguintes músculos é avaliada:
Flexores do cotovelo (C5)
Extensores do punho (C6)
Extensores do cotovelo (C7)
Flexores dos dedos das mãos (C8)
Abdutores do dedo mínimo (T1)
Flexores do quadril (L2)
Extensores do joelho (L3)
Dorsiflexores do tornozelo (L4)
Extensores do hálux (L5)
Flexores plantares do tornozelo (S1).
A força motora de cada grupo de músculos deve ser pontuada da seguinte forma:
0: sem contração muscular
1: contração muscular rápida e palpável
2: amplitude de movimentos (ADM) total com a eliminação da gravidade
3: ADM total contra a gravidade
4: ADM total contra a resistência, mas menos que a força normal
5: ADM total e força normal após acréscimo de resistência.
É crucial obter uma pontuação precisa. A ADM total deve ser avaliada. Uma boa abordagem é testar a ADM total em relação à gravidade e então eliminar a gravidade, se o grupo de músculos estiver fraco demais, ou aplicar resistência se houver ADM total. Para tentar detectar uma rápida contração muscular, a gravidade deverá ser eliminada nos membros superiores, ou a posição antigravidade deverá ser usada nos membros inferiores. Se estiverem presentes contraturas que reduzem a ADM em >50%, a força motora não poderá ser avaliada precisamente; isso deve ser documentado. É importante certificar-se de que o paciente não esteja realizando movimentos compensatórios que envolvem usar outras articulações e grupo musculares (por exemplo, extensão do ombro durante o teste de extensão do cotovelo), pois podem acarretar uma pontuação inadequadamente alta.
Avaliação sensorial
São produzidos déficits sensoriais pelo comprometimento de múltiplos tratos espinhais. A dor e a temperatura são transmitidas pelos tratos espinotalâmicos laterais, e a sensibilidade tátil pelo trato espinotalâmico anterior. A propriocepção é transmitida pela coluna posterior. Pode haver hiperestesia, hiperalgesia ou dormência.
A sensibilidade tátil e a sensibilidade à dor devem ser avaliadas para cada dermátomo do lado esquerdo e direito, e são pontuadas da seguinte forma:
0: não pode distinguir se foi tocado ou não no teste de sensibilidade tátil; não pode distinguir objetos com extremidade pontiaguda de objetos com extremidade romba no teste de estímulo doloroso.
1: pode sentir se foi tocado no teste de sensibilidade tátil; e pode distinguir objetos com extremidade pontiaguda de objetos com extremidade romba no teste de estímulo doloroso, mas a sensação é reduzida em comparação ao rosto.
2: pode sentir se foi tocado no teste de sensibilidade tátil; e pode distinguir objetos com extremidade pontiaguda de objetos com extremidade romba no teste de estímulo doloroso, e a sensação é a mesma em comparação ao rosto.
A sensação sacral e a função motora devem ser avaliadas para determinar se a lesão é completa ou incompleta. Isso é feito por meio da avaliação da contração anal voluntária, do tônus anal e da sensação nos dermátomos S4 e S5. Se houver ausência de todos esses elementos sacrais, a lesão é classificada como lesão completa. A preservação sacral confere status de lesão incompleta.
Avaliação de reflexos
Na paralisia espástica, os reflexos são rápidos e podem estar associados ao clônus. Vários reflexos patológicos também podem ser obtidos. Eles incluem o sinal de Babinski (plantar extensor), reflexo radial invertido, sinal de Hoffman (flexor do dedo), sinal de Lhermitte, reflexo escápulo-umeral (indica uma lesão sobre C4), sinal de abdução espontânea do dedo e sinal de Oppenheim. Na paralisia flácida, os reflexos estão ausentes nos membros afetados. Novamente, é importante documentar o que é "normal" para um paciente, para detectar alterações no exame neurológico.
Investigações
Exames por imagem
A RNM da medula espinhal deve ser realizada se houver deterioração aguda ou novos sintomas neurológicos.[43]
Eletromiografia
Eletromiografia, estudos de condução nervosa e potenciais evocados somatossensitivos podem localizar o local e tipo de lesão. Repetir os estudos pode ajudar a determinar se o estado neurológico é estável em comparação com a linha basal obtida 6-12 semanas após a LME) ou se há alguma recuperação.
Estudos vesicais e renais
Ultrassonografia da bexiga para avaliar a retenção e o esvaziamento completo da bexiga, e ultrassonografia renal para detectar nefrolitíase devem ser realizadas pelo menos uma vez ao ano e conforme a necessidade.[44][45] Avaliações invasivas que podem ser consideradas incluem cistouretrografia miccional e estudos urodinâmicos.[44][46]
Saúde óssea
A densitometria óssea para avaliar a perda de densidade óssea e a resposta ao tratamento clínico deve ser realizada a cada 1-2 anos, dependendo da gravidade da perda óssea.[47][48]
Avaliação laboratorial
Os seguintes exames devem ser verificados uma vez ao ano, como parte do rastreamento de manutenção da saúde: hemograma completo, perfil metabólico completo com magnésio, cálcio e fósforo; perfil de função hepática; perfil lipídico; hemoglobina A1c; nível de 25-hidroxivitamina D.
Marcadores metabólicos ósseos (por exemplo, C-telopeptídeos, osteocalcina, propeptídeo do procolágeno tipo 1 N) podem ser medidos para avaliar a renovação óssea.
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