Abordagem

A maioria das pessoas (até 60%) infectadas por Coxiella burnetii permanece assintomática.[2][38] Em muitos pacientes com sintomas, a infecção aguda é leve e autolimitada, apresentando remissão espontânea dentro de 2 semanas.[5][38] No entanto, pacientes sintomáticos devem ser tratados com antibióticos orais por 14 dias. A endocardite e outras infecções focalizadas persistentes exigem antibioticoterapia em longo prazo. Cerca de 65% dos pacientes com endocardite não tratada podem ir a óbito em decorrência da doença.[1][2] Com terapia combinada prolongada (doxiciclina associada a hidroxicloroquina) em pacientes com endocardite, a mortalidade é inferior a 5% em 5 anos.[84]

O tratamento deve ser iniciado com base na suspeita clínica apenas e não deve esperar os resultados dos exames confirmatórios.

Infecção aguda

As infecções agudas geralmente são leves e autolimitadas, durando de 2 a 14 dias. O tratamento não é recomendado em pacientes com infecção aguda sem valvopatia que estejam assintomáticos antes da consulta médica. No entanto, se o paciente for sintomático, a antibioticoterapia poderá encurtar a duração da doença. O tratamento é mais eficaz se administrado nos primeiros três dias após o início dos sintomas.[33]​ A doxiciclina oral por 14 dias é o tratamento recomendado, pois é o antibiótico mais eficaz para infecções por C burnetii e demonstrou-se que ela diminui a taxa de hospitalização.[26][33]​​[53][85]​​​​​ Se o paciente não tolerar a doxiciclina, outros antibióticos podem ser usados (por exemplo, moxifloxacino, claritromicina, rifampicina ou sulfametoxazol/trimetoprima).[2][86]

Os antibióticos fluoroquinolonas sistêmicos, como o moxifloxacino, podem causar eventos adversos graves, incapacitantes e potencialmente duradouros ou irreversíveis. Isso inclui, mas não está limitado a: tendinopatia/ruptura de tendão; neuropatia periférica; artropatia/artralgia; aneurisma e dissecção da aorta; regurgitação da valva cardíaca; disglicemia; e efeitos no sistema nervoso central, incluindo convulsões, depressão, psicose e pensamentos e comportamento suicida.[87]

  • Restrições de prescrição aplicam-se ao uso de fluoroquinolonas e essas restrições podem variar entre os países. Em geral, o uso de fluoroquinolonas deve ser restrito apenas em infecções bacterianas graves e de risco de vida. Algumas agências regulatórias também podem recomendar que eles sejam usados apenas em situações em que outros antibióticos comumente recomendados para a infecção sejam inadequados (por exemplo, resistência, contraindicações, falha do tratamento, indisponibilidade).

  • Consulte as diretrizes locais e o formulário de medicamentos para obter mais informações sobre adequação, contraindicações e precauções.

Deve-se aconselhar o paciente a repousar no leito e beber bastante líquido. Podem ser usados antitussígenos, mas não paracetamol ou anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) para febre e qualquer desconforto, já que o paracetamol pode piorar o envolvimento hepático e os AINEs podem piorar a infecção.

Em pacientes com infecção aguda, altos níveis de anticorpos anticardiolipina (aCL) da imunoglobulina G (IgG) (ou seja, ≥75 GPLU [unidades G antifosfolipídicas]) estiveram associados a valvopatia, vegetação (na endocardite aguda) e progressão para endocardite crônica e trombose.[55][57][71][77] O medicamento imunomodulador hidroxicloroquina pode evitar os efeitos trombogênicos dos anticorpos antifosfolipídeos.[88][89][90][91] A hidroxicloroquina também pode reduzir o risco de desenvolver anticorpos antifosfolipídeos persistentemente positivos e anticoagulante lúpico.[92][93] Portanto, o tratamento combinado com doxiciclina e hidroxicloroquina é recomendado em pacientes com anticorpos aCL à IgG ≥75 GPLU. Os pacientes recebem receber essa terapia combinada até redução dos níveis de anticorpo aCL da IgG para <75 GPLU. Pacientes com deficiência conhecida de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) não devem ser tratados com hidroxicloroquina.

Pacientes com infecção aguda e valvopatia significativa têm altíssimo risco de endocardite, que pode ser fatal se deixada sem tratamento. Para esses pacientes, recomenda-se um ciclo de 12 meses de profilaxia antibiótica com a combinação de doxiciclina associada a hidroxicloroquina. Um estudo descobriu que esse tratamento combinado é altamente eficaz em evitar endocardite em pacientes com risco.[45] Essa profilaxia também é recomendada para pacientes com história de enxerto vascular ou aneurisma que apresentaram uma PET/TC com PET com 18-fluordesoxiglucose (FDG) negativa durante a infecção aguda.

Pacientes com infecção aguda e imunodeficiência grave (por exemplo, pacientes transplantados, pacientes em quimioterapia ou corticoterapia, pacientes HIV-positivos e <200 células T CD4+ e pacientes com neoplasia hematológica) têm alto risco de desenvolver infecções focalizadas persistentes, como endocardite.[94] Recomenda-se monoterapia com doxiciclina para esses pacientes. A hidroxicloroquina não é recomendada para esses pacientes. Em quem tem imunodeficiência em longo prazo, recomenda-se doxiciclina em longo prazo até que a imunossupressão seja resolvida, pois a infecção pode se reativar vários meses após a infecção primária em imunocomprometidos.

Muitos medicamentos (por exemplo, doxiciclina, fluoroquinolonas) podem não ser recomendados para gestantes. A terapia em longo prazo (≥5 semanas) com sulfametoxazol/trimetoprima protege contra complicações obstétricas, incluindo óbito intrauterino, aborto espontâneo e parto prematuro.[26][95]​ A alternativa de tratamento para gestantes alérgicas a sulfametoxazol/trimetoprima é a azitromicina.[96] Após o parto, mães com infecção aguda deverão ser avaliadas quanto ao risco de infecção focal persistente e receber o devido tratamento.

A C burnetii é encontrada no leite materno; portanto, não se recomenda amamentação para as pacientes infectadas. Para confirmar se a amamentação deve ser interrompida, uma reação em cadeia da polimerase para C burnetii pode ser executada no leite materno.

Infecção focalizada persistente

As infecções focalizadas persistentes incluem endocardite (até 70% dos casos) e infecção vascular (por exemplo, aneurisma, infecção protética vascular).[2] O tratamento recomendado para endocardite é doxiciclina oral associada a hidroxicloroquina por 18 meses em pacientes com endocardite de valva nativa, ou por 24 meses em pessoas com endocardite de valva protética ou C burnetii relacionado a corpo estranho (por exemplo, de um dispositivo cardiovascular eletrônico implantado/marca-passo).[2][5][97][84][26] A cirurgia de substituição da valva deverá ser levada em consideração para todos os pacientes com endocardite infecciosa que tiverem comprometimento hemodinâmico. Os antibióticos devem ser prolongados na ausência de um bom desfecho sorológico (ou seja, diminuição de duas vezes no título de diluição da IgG de fase I e ausência de IgM de fase II em 1 ano).[84] Neste caso, o monitoramento deve continuar e os níveis dos medicamentos deverão ser repetidamente medidos, de forma a verificar os níveis medicamentosos terapêuticos. Será necessário obter um parecer especializado se os níveis terapêuticos forem alcançados sem que seja observada melhora nos desfechos sorológicos.

A endocardite pode ser diagnosticada em pacientes com cardiopatia grave (habitualmente na unidade de cirurgia cardíaca) que tenham níveis de IgG de fase I de apenas 1:200.[73][79] Neste contexto específico (ou seja, cirurgia cardíaca e cirurgia vascular e títulos sorológicos baixíssimos entre 1:200 e 1:400), deverá ser prescrito o tratamento da endocardite e da infecção vascular, mesmo na ausência de sintomas infecciosos ou na ausência de reação em cadeia da polimerase positiva, pois o risco de mortalidade é alto se deixado sem tratamento.

Se o paciente tiver marca-passo artificial implantado, recomenda-se um PET/TC com 18F-FDG.[98] Se o exame mostrar alta captação de FDG no marca-passo, a bolsa do marca-passo deverá ser trocada após 1 mês de tratamento com combinação de doxiciclina e hidroxicloroquina ter sido concluído. Se o exame mostrar alta captação de FDG nos eletrodos intracavitários, não haverá necessidade de remover imediatamente; será realizada uma nova PET/TC com 18F-FDA após 2 meses de tratamento. Será necessária opinião especializada se a captação elevada de FDG persistir no exame.

As infecções vasculares são um desafio muito importante no tratamento da infecção por C burnetii, pois os antibióticos não evitam a ruptura vascular. O tratamento recomendado para infecções vasculares é doxiciclina associada a hidroxicloroquina por 18 meses em pacientes sem material protético vascular ou por 24 meses naqueles com material protético vascular, seguido por remoção cirúrgica do tecido vascular infectado ou do material protético vascular infectado após 3 a 4 semanas de tratamento, a menos que haja necessidade de cirurgia de urgência. A cirurgia está associada a um prognóstico melhorado.[99] Assim, faz-se necessária a ressecção cirúrgica de rotina do material vascular tecidual/protético infectado.[99]

Em pacientes gravemente imunocomprometidos (como pacientes transplantados, pacientes recebendo quimioterapia ou corticoterapia, pacientes HIV-positivos e <200 células T CD4+ ou pacientes com neoplasia hematológica) com endocardite por C burnetii ou infecção vascular, recomenda-se monoterapia em longo prazo com doxiciclina.

Para todas as infecções focalizadas persistentes e infecções agudas com valvopatia, o monitoramento sorológico e medicamentoso mensal é de suma importância e está associado ao sucesso terapêutico.[100][101][102] Os níveis de doxiciclina devem ser mantidos entre 5 e 10 mg/L e os de hidroxicloroquina entre 0.8 e 1.2 mg/L.[103] As principais causas de fracasso no tratamento e recidiva são falta de monitoramento medicamentoso mensal, níveis insuficientes de medicamento no plasma e ausência de cirurgia em pacientes com infecções vasculares.

[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Algoritmo para o diagnóstico e manejo da infecção por C burnetii. ETT: ecocardiografia transtorácica; anticorpos IgG anticardiolipina (aCL); PET/TC com 18-FDG: PET com 18-fluordesoxiglucose combinada com TCEldin C, et al. Clin Microbiol Rev 2017; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@53806f3a

O uso deste conteúdo está sujeito ao nosso aviso legal