Abordagem
A infecção por Coxiella burnetii é uma doença notificável nos EUA; no entanto, a notificação não é exigida em muitos outros países.
A maioria das pessoas infectadas com C burnetii permanece assintomática. Para aqueles com sintomas, mais de 30 diferentes síndromes clínicas foram descritas.
O diagnóstico requer um alto nível de suspeita em pacientes febris que apresentam sintomas inespecíficos. Contato recente com animais parturientes raramente é reportado. A maioria dos laboratórios não realiza a cultura de C burnetii, pois é tecnicamente difícil. A cultura de C burnetii requer uma contenção com nível de biossegurança 3 em decorrência da infectividade significativa do microrganismo e do potencial uso como arma de bioterrorismo.[2][52] Portanto, o diagnóstico baseia-se na análise sorológica. A reação em cadeia da polimerase pode ser usada para o diagnóstico de infecção aguda; no entanto, nem sempre está disponível.
História
Contato recente com animal e/ou residência ou viagem para áreas endêmicas devem ser apurados, mas o histórico de exposição muitas vezes é inexistente. Outros fatores de risco incluem sexo masculino e idade de 30 a 70 anos. O clínico deve indagar sobre cardiopatias preexistentes (por exemplo, história de febre reumática, valva aórtica bicúspide, cardiopatia congênita, valvas cardíacas protéticas, regurgitação valvar, estenose grau ≥II ou prolapso da valva mitral), imunossupressão, anormalidades vasculares ou gravidez, pois essas condições predispõem ao desenvolvimento de uma infecção focalizada persistente.
Quadro clínico: infecção aguda
Na maioria dos pacientes (até 60%), a infecção é assintomática ou leve e autolimitada, apresentando remissão espontânea dentro de 2 semanas. As apresentações comuns incluem febre, doença semelhante à gripe, pneumonia e hepatite.[1][2][3][5][38]
A apresentação clássica da infecção aguda é um quadro clínico semelhante à gripe que inclui início abrupto de febre alta (39 °C a 40 °C [102 °F a 104 °F]), calafrios, mal-estar, tosse, cefaleia, fadiga e mialgia. A febre pode manifestar-se isoladamente e durar até 14 dias, mas, em pacientes não tratados, ela pode durar até 57 dias.[38]
Os pacientes podem apresentar pneumonia, que geralmente é leve, com tosse (24% a 90% dos pacientes) e às vezes com dor torácica pleurítica. O exame físico pulmonar pode revelar estertores inspiratórios, roncos ou sibilância. Hepatite é outra apresentação frequente da infecção aguda; icterícia é rara, mas hepatomegalia pode ser palpável.[38]
As apresentações menos comuns, de acordo com o sistema do corpo, incluem:
Cardiovascular: endocardite aguda, miocardite, pericardite, miopericardite, trombose arterial ou venosa
Neurológica: meningoencefalite, meningite
Cutânea: exantema maculopapular ou erupção purpúrea, eritema nodoso
Hematológica: trombocitopenia, síndrome da mononucleose, hemofagocitose, anemia (hemolítica e hipoplástica transitória), necrose da medula óssea, tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa) prolongado com anticoagulante lúpico (atividade antiprotrombinase)
Sistema imunológico: linfadenite
Muscular: rabdomiólise
Gastrointestinal: colecistite, gastroenterite, pancreatite, ruptura esplênica, paniculite mesentérica
Genital: orquite, epididimite, priapismo
Endócrina: tireoidite, secreção inapropriada de hormônio antidiurético
Renal: glomerulonefrite.
Manifestações cutâneas (por exemplo, exantema maculopapular ou erupção purpúrea, eritema nodoso) podem ocorrer em até 20% dos casos durante a infecção aguda.[5] Uma erupção purpúrea também pode ocorrer em aproximadamente 19% dos pacientes com endocardite subsequente a uma infecção crônica.[38]
Os indivíduos com meningoencefalite podem apresentar cefaleia intensa, convulsões ou coma.[53] Sinais encefálicos podem incluir transtornos comportamentais ou psiquiátricos.[54]
Endocardite aguda, trombose arterial ou venosa, trombocitopenia, TTPa prolongado com anticoagulante lúpico (atividade antiprotrombinase), colecistite e glomerulonefrite são quadros clínicos associados a antifosfolípideo autoimune.[55][56][57][58]
A fadiga crônica está sendo reconhecida como uma complicação cada vez mais importante da infecção aguda por C burnetii, levando a incapacidade em longo prazo.[59][60][61] A forma como essa complicação se desenvolve permanece por esclarecer. Os antibióticos não são eficazes para tratar a fadiga crônica associada a infecção por C burnetii, mas a psicoterapia comportamental pode ajudar os pacientes que desenvolverem essa complicação.[62]
Quadro clínico: infecções focalizadas persistentes
Em uma pequena proporção de pacientes, infecção primária conduz a infecções focalizadas persistentes (por exemplo, endocardite, infecção vascular, infecção osteoarticular, linfadenite).[3] As infecções focalizadas persistentes podem ser diagnosticadas de 3 meses a 17 anos após a doença aguda.[63] De maneira alternativa, podem ocorrer sem que exista história de doença aguda.[5]
A endocardite é a forma mais comum de infecção focalizada persistente e ocorre em até 70% dos casos.[2] Geralmente, ela se desenvolve em pacientes com cardiopatia subjacente.[5] As manifestações periféricas de endocardite raramente estão presentes.[38] Nesses pacientes, a febre frequentemente está ausente e as vegetações em geral estão ausentes ou são pequenas. Pode haver aumento de um sopro cardíaco conhecido, sinais de insuficiência cardíaca e êmbolos arteriais. Infecções vasculares (por exemplo, aneurisma, infecção protética vascular) também são comuns.
As apresentações menos comuns incluem infecções osteoarticulares (por exemplo, infecção na articulação protética com cultura negativa, discite, osteomielite, osteoartrite) e linfadenite crônica. Os pacientes que se apresentam com linfadenite crônica podem correr risco de linfoma.[64] As apresentações raras incluem pneumonite intersticial crônica, pseudotumor pulmonar, fibrose pulmonar, uveíte, neurite óptica, arterite de células gigantes, ou arterite de Takayasu.[65][66][67][68] Vasculite dos grandes vasos é um quadro clínico associado a antifosfolípideo autoimune.[55][56][57][58] Um caso de sepse neonatal devido a C burnetii foi relatado.[69]
Investigações laboratoriais
Os exames de rotina devem incluir:
Hemograma completo: a contagem leucocitária pode estar elevada em aproximadamente 30% dos pacientes. Trombocitopenia leve (25% dos casos) e anemia podem ser observadas.[5]
Testes da função hepática (TFHs): as transaminases séricas e a fosfatase alcalina podem ser elevadas para >2 a 3 vezes o intervalo de referência normal na infecção focalizada aguda e persistente; a bilirrubina é normal, mas foram relatados vários casos graves de hepatite ou icterícia.[2][70]
Proteína C-reativa: pode estar elevada, particularmente em casos de infecções focalizadas persistentes.
Tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa) prolongado correspondente a um anticoagulante lúpico com atividade antiprotrombinase.
Autoanticorpos: anticorpos anticardiolipina (aCL) imunoglobulina G (IgG) frequentemente estão elevados. Os anticorpos aCL da IgM e anticorpos antimúsculo liso também podem estar elevados. Anticorpos aCL da IgG estão associadas à endocardite aguda, presença de valvopatia, progressão para endocardite e trombose quando unidades antifosfolipídicas (GPLU) ≥75 G.[55][71]
Análise do líquido cefalorraquidiano (LCR): será necessário realizar uma punção lombar se houver suspeita de meningoencefalite. Os pacientes podem apresentar contagem leucocitária elevada com predominância de linfócitos, proteína elevada e glicose normal.[72]
Investigações confirmatórias
O diagnóstico baseia-se em sorologia ou reação em cadeia da polimerase. A detecção de anticorpos por ensaio de imunofluorescência indireto é o método mais comumente utilizado devido à alta sensibilidade e especificidade. Testes de ensaio imunoenzimático (EIE) e fixação de complemento (FC) também são usados, mas são menos precisos. Paradoxalmente, os anticorpos para o microrganismo na fase II são altos na doença aguda, e os anticorpos para o microrganismo na fase I estão aumentados na doença focalizada persistente.[5]
Geralmente, para o diagnóstico de infecção aguda, deve ser detectado o seguinte: título de imunoglobulina M (IgM) contra o antígeno da fase II de 1:50 ou maior e título de IgG contra o antígeno da fase II de 1:200 ou superior, ou soroconversão.[2] Entretanto, nos EUA, a definição nacional de caso da doença afirma que o título de IgG contra o antígeno da fase II deve ser ≥1:128, e a IgM não é utilizada para testes diagnósticos de rotina. Para o diagnóstico de infecção focalizada persistente, deve ser detectado um dos seguintes itens: antígeno IgG da fase I ≥1:800 e antígeno IgM de fase II baixo ou ausente. No entanto, esses critérios foram questionados após a descrição de endocardite com níveis sorológicos baixos (ou seja, 1:200) em pacientes com cardiopatia intensa durante infecção aguda.[57][73] O contexto clínico deve, portanto, ser cuidadosamente levado em consideração na análise dos resultados sorológicos.
A reação em cadeia da polimerase pode ser usada para o diagnóstico de infecção aguda (de maneira ideal, as amostras devem ser colhidas durante as primeiras 2 semanas de doença); no entanto, nem sempre está disponível. A vantagem é que ela oferece um diagnóstico mais rápido, comparada à sorologia. O teste de reação em cadeia da polimerase pode ser usado em amostras teciduais. Ela é altamente sensível em amostras de tecido, como valvas cardíacas, que têm um número mais alto de bactérias.[74][75] A reação em cadeia da polimerase pode ser executada em sangue/soro e fornecer diagnóstico antes da soroconversão. Uma técnica na qual o DNA do C burnetii é concentrado por liofilização demonstrou aumentar drasticamente a sensibilidade deste teste.[76]
Tanto sorologia quanto reação em cadeia da polimerase podem ser usadas para diferenciar um paciente com infecção primária sintomática (ou seja, febre Q aguda) de um paciente assintomático com conversão passada ou de um paciente com infecção focalizada persistente.[3][Figure caption and citation for the preceding image starts]: História natural de Coxiella burnetii e resultados sorológicos/reação em cadeia da polimerase. Ac+: positiva para anticorpos contra C burnetii, Ac++: fortemente negativa para anticorpos contra C burnetii, Ac-: negativa para anticorpos contra C burnetii, PCR+: positiva para reação em cadeia da polimerase para C burnetii, PCR++: reação em cadeia da polimerase fortemente positiva para C burnetii, PCR-: reação em cadeia da polimerase negativa para C burnetiiEldin C, et al. Clin Microbiol Rev 2017; usado com permissão [Citation ends].
Como a soroconversão pode ser protelada por até 6 semanas, a sorologia deve ser repetida nos dias 15, 30 e 45, caso o quadro clínico seja coerente, mas a sorologia inicial seja negativa. A reação em cadeia da polimerase em sangue/soro, cuja sensibilidade seja aumentada por liofilização, pode ser muito útil nesse contexto.[76]
Biópsias teciduais, imuno-histoquímica e hibridização in situ fluorescente (FISH) são o padrão ouro, mas são realizados apenas em laboratórios especializados. A imuno-histoquímica tem a vantagem de ser capaz de identificar os tipos de célula, enquanto o FISH é muito mais sensível que a imuno-histoquímica. A biópsia de linfonodos deve ser feita rotineiramente em pacientes com linfadenite crônica (conforme diagnosticado por tomografia por emissão de pósitrons/tomografia computadorizada [PET-CT] com 18F-fluordesoxiglucose [FDG]) em função do risco de linfoma.[64]
Exames por imagem
Radiografia torácica:
Pode ser solicitada para a doença aguda se houver suspeita de complicações pulmonares. Os achados podem variar de opacidades normais a múltiplas inespecíficas (sem um padrão ou distribuição aparente) em ambos os pulmões, mais consistentes com uma pneumonia atípica.[38] As anormalidades mais comuns na radiografia torácica são as opacidades lobares ou segmentares. Várias opacidades arredondadas são a principal característica da pneumonia por febre Q, mas são incomuns. Derrames pleurais são raros. Em pacientes com infecção focalizada persistente, a radiografia torácica pode identificar duas infecções focalizadas persistentes diferentes: fibrose intersticial e pseudotumor pulmonar.
Ecocardiografia:
Ecocardiografia transtorácica (ETT) é rotineiramente recomendada durante a infecção aguda, para descartar lesões cardíacas subjacentes que podem ser silenciosas e que venham a exigir profilaxia com antibióticos.[3] Em pacientes com endocardite aguda e níveis altíssimos de anticardiolipina IgG, muitas vezes se encontra uma vegetação grande e transitória.[57] Em pacientes com endocardite crônica, as vegetações são pequenas ou ausentes.[77] Lesões nodulares e calcificações também são frequentes.
Recomenda-se ecocardiografia transesofágica (ETE) para identificar lesões cardíacas em pacientes >40 anos com infecção aguda mas ETT negativa e anticorpos aCL da IgG ≥75 GPLU.[3]
Ultrassonografia do fígado:
Utilizado tanto para a doença aguda quanto para a infecção focalizada persistente se houver suspeita de comprometimento do fígado e pode ser sugestivo de hepatite granulomatosa. A hepatomegalia crônica está frequentemente associada à endocardite.
Tomografia computadorizada (TC) do tórax e cranioencefálica:
Tipicamente não são exigidas, mas podem ser usadas para avaliar as complicações pulmonares ou neurológicas.
TC ou ultrassonografia abdominal:
São recomendadas em pacientes com >65 anos com infecção aguda e que atualmente fumem ou tenham fumado no passado, ou que tenham história familiar de aneurisma. A infecção aguda em pacientes com aneurisma aórtico exige uma abordagem de manejo específica.[3]
PET/TC com 18F-FDG:
Essencial para identificar infecções focalizadas persistentes.[78]
Esse exame de imagem é capaz de decifrar endocardite, infecção vascular, linfadenite e infecção osteoarticular, nenhuma das quais pode ser identificada sem essa técnica.
Agora faz parte do check-up anatômico padrão em pacientes com sintomas persistentes e/ou sorologia elevada persistente e/ou reação em cadeia da polimerase positiva no sangue/soro, ou qualquer amostra com quadro clínico não consistente com infecção primária. É especialmente recomendado em pacientes com infecção aguda que têm:[3]
IgG ≥1:800 na fase I persistente e/ou sinais de evolução clínica desfavorável
História de enxerto vascular ou aneurisma
Sorologia inexplicada (IgG na fase I ≥1:800) ou suspeita clínica de infecção persistente.
Isso também é útil para identificar infecção em pacientes com prótese vascular e/ou aneurisma, e para identificar candidatos a cirurgia de ressecção dos tecidos vasculares infectados.
O algoritmo a seguir proporciona uma abordagem passo a passo para gerenciar a febre Q aguda:[3]
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Algoritmo para o diagnóstico e manejo da infecção por C burnetii. ETT: ecocardiografia transtorácica; anticorpos IgG anticardiolipina (aCL); PET/TC com 18-FDG: PET com 18-fluordesoxiglucose combinada com TCEldin C, et al. Clin Microbiol Rev 2017; usado com permissão [Citation ends].
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