Abordagem

A taquicardia ventricular não sustentada (TVNS) é definida como um ritmo ventricular ectópico no eletrocardiograma (ECG), que consiste em 3 ou mais complexos QRS consecutivos e largos (duração de 120 milissegundos ou mais), com uma frequência cardíaca acima de 100 bpm, que remite espontaneamente em menos de 30 segundos.[1][2]​​​ Uma vez estabelecida a presença de uma TVNS, os objetivos principais são identificar qualquer patologia cardíaca existente e classificar os pacientes com doença cardíaca conhecida de acordo com os riscos para o manejo e tratamento adequados.

[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Avaliação da taquicardia não sustentada com QRS largoCriado pelo BMJ Knowledge Centre. [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@289e41ca

Em geral, a TVNS apresenta-se de forma assintomática, e sintomas como palpitações e síncope sobrepõem-se em grande parte a outras patologias e taquiarritmias. Sendo assim, são necessárias investigações adicionais para identificar a etiologia específica da TVNS.[2]​ É apropriado começar com uma anamnese e exame físico completos, seguidos pelo ECG. Exames laboratoriais e ecocardiografia também podem ser úteis na investigação inicial do paciente. Exames mais caros e invasivos, como a ressonância nuclear magnética (RNM) e o cateterismo cardíaco, devem ser solicitados em instalações clínicas adequadas depois que a avaliação inicial for concluída.

História

A TVNS foi identificada em um amplo espectro de pacientes, desde aqueles sem qualquer doença cardíaca identificável até os que têm doença cardíaca isquêmica e não isquêmica. Portanto, é importante avaliar os fatores de risco do paciente à luz da TVNS que possam levar a outros exames e/ou tratamentos.

História que coloca o paciente em risco mais alto:

  • Cardiomiopatia não isquêmica com fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) <35% e sintomas da classe II ou III da New York Heart Association

  • Cardiomiopatia isquêmica com FEVE <35%

  • Cardiomiopatia isquêmica com FEVE <40%, com TVNS e taquicardia ventricular (TV) induzível durante estudo eletrofisiológico

  • Cardiomiopatia hipertrófica (CMH) com história pessoal de parada cardíaca ou TV sustentada, parente de primeiro grau com morte súbita, síncope por esforço ou recorrente não explicada, espessura do septo ventricular esquerdo maior que 30 mm, ou TVNS frequente ou prolongada

  • Síndromes arrítmicas congênitas, como a do QT longo e a de Brugada.[31]

A história familiar de doença cardíaca estrutural, doença elétrica e cardiomiopatia devem ser avaliadas.[2]​​ Além disso, o paciente deve ser questionado sobre o uso de medicamentos potencialmente arritmogênicos (por exemplo, antibióticos macrolídeos, clorpromazina, haloperidol, digoxina, flecainida, sotalol e dofetilida). História familiar de doença cardíaca ou de morte súbita cardíaca pode ser significativa. O médico também deve indagar sobre a existência de qualquer estresse físico ou mental que possa ter desencadeado a arritmia. Os pacientes podem queixar-se de síncope em decorrência de hipotensão devida à TVNS ou a uma doença cardíaca subjacente. Tonturas, sensação de cabeça leve e pré-síncope também podem ocorrer quando o fluxo sanguíneo cerebral está comprometido. A síncope com suspeita de origem cardíaca é um sintoma de alto risco que pode exigir internação hospitalar rápida para investigação adicional.[2]

Exame físico

Deve ter como foco possíveis sinais de doença cardíaca oculta ou agravada, respectivamente, nos pacientes sem ou com doença cardíaca conhecida.

A palpação dos pulsos periféricos fornece informações sobre a frequência cardíaca, identificando uma taquicardia que está ocorrendo, e combinada ao monitoramento da pressão arterial (PA) periférica pode sugerir as condições de débito cardíaco do paciente. A presença de estertores no exame do tórax ou a presença de edema periférico pode ser um sinal de pressão atrial esquerda ou direita elevada, associada à disfunção cardíaca. Do mesmo modo, devem ser realizados a palpação do coração, para verificar o ictus do ventrículo direito ou esquerdo, e o exame do pescoço, para verificar se a pressão venosa jugular está elevada. A ausculta cuidadosa para detectar sopros cardíacos patológicos ou sons cardíacos anormais (B3 ou B4) pode ajudar a indicar a necessidade de investigação adicional de doença cardíaca isquêmica e não isquêmica.

eletrocardiograma (ECG)

A TVNS é diagnosticada com base nos seguintes achados eletrocardiográficos específicos: um ritmo ventricular com complexo QRS largo (120 milissegundos ou mais) e uma frequência cardíaca acima de 100 bpm, que perdura por pelo menos 3 batimentos e remite espontaneamente em menos de 30 segundos.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Taquicardia ventricular não sustentadaDo acervo do Dr F. Kusumoto; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@21fe23aa

Um ECG ambulatorial de 24 horas pode ser necessário para detectar a TVNS, determinar a extensão da carga arrítmica e/ou analisar o intervalo QT (pode ser identificado usando um ECG padrão de 12 derivações, embora, às vezes, alterações temporais dinâmicas no intervalo QT exijam um monitoramento mais prolongado, como no ambulatorial de 24 horas). O uso de pelo menos 3 derivações no Holter pode ajudar a estimar se as TVNS/contrações ventriculares prematuras são uni ou multifocais e mostrar seu local de origem.[2]​​ Mais recentemente dispositivos portáteis que podem identificar arritmias, incluindo a TVNS, têm sido utilizados pelos pacientes. Embora a qualidade dos registros desses dispositivos tenha melhorado dramaticamente, particularmente na identificação da fibrilação atrial e na identificação e avaliação da carga de arritmias ventriculares, os dispositivos de registro de ECG de nível médico fornecem informações mais detalhadas e clinicamente úteis.[32]

É importante diferenciar uma taquicardia de complexo largo que tem origem nos ventrículos de uma taquicardia supraventricular, já que o tratamento clínico delas difere.

Evidências que apoiam o diagnóstico de uma TV incluem:

  • Taquicardia no ECG inicial, com morfologia semelhante à de complexos ventriculares prematuros

  • Início da taquicardia com um complexo ventricular prematuro, o que aumenta a possibilidade de TVNS.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Início do ritmo QRS largo não precedido por uma onda P, sugerindo taquicardia ventricular não sustentadaKusumoto FM. ECG interpretation. In: Pathophysiology to clinical application. New York, NY: Springer; 2009; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@b912062

  • Dissociação atrioventricular (AV) durante a taquicardia, com ondas P dissociadas ou batimentos de captura e de fusão[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Eletrocardiograma (ECG) mostrando dissociação atrioventricular (AV). Deflexões devido a ondas P (setas) não são associadas a complexos QRSKusumoto FM. ECG interpretation. In: Pathophysiology to clinical application. New York, NY: Springer; 2009; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@1e15115f

  • Duração do QRS maior que 140 milissegundos com morfologia de bloqueio de ramo direito (BRD) ou duração do QRS maior que 160 milissegundos com morfologia de bloqueio de ramo esquerdo (BRE); não se aplica, porém, a pacientes que usam medicamentos antiarrítmicos.[33]

  • Um eixo superior direito ou morfologia de BRE com qualquer eixo direito[1]

  • Complexos QRS largamente positivos nas derivações inferiores (1, 3 e aVF), caso em que se deve suspeitar de TVNS associada a local idiopático das vias de saída ventricular. Se o local estiver na via de saída do ventrículo direito, o complexo QRS terá morfologia de BRE (negativo em V1) e, se o local estiver no trato de saída do ventrículo esquerdo, ele terá morfologia de BRD (QRS positivo em V1). Do ponto de vista clínico, esse é um achado importante de ser identificado, já que essas entidades não são associadas à morte súbita cardíaca e, com frequência, são tratadas por ablação.

O ECG inicial também deve ser avaliado em busca de evidências de fatores de risco conhecidos para TVNS, incluindo:

  • Síndrome do QT longo: prolongamento do intervalo QT[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Eletrocardiograma (ECG) de um paciente com síndrome do QT longoKusumoto FM. ECG interpretation. In: Pathophysiology to clinical application. New York, NY: Springer; 2009; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@74fbe28e

  • Síndrome de Brugada: elevação do ponto J e supradesnivelamento do segmento ST com inclinação descendente nas derivações pré-cordiais direitas[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Eletrocardiograma (ECG) de um paciente com síndrome de Brugada, mostrando onda R terminal positiva e supradesnivelamento do segmento ST na derivação V1Kusumoto FM. ECG interpretation. In: Pathophysiology to clinical application. New York, NY: Springer; 2009; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@4255530d

  • Cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito: atrasos na condução interventricular (uma deflexão distinta após o complexo QRS, chamada de onda épsilon, na derivação V1, é específica dessa doença)[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Eletrocardiograma (ECG) de um paciente com cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direitoKusumoto FM. ECG interpretation. In: Pathophysiology to clinical application. New York, NY: Springer; 2009; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@7425bf29

  • Distúrbios eletrolíticos: intervalo QT prolongado

  • Presença de ondas Q, anormalidades do segmento ST ou outros sinais de doença arterial coronariana (DAC)[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Eletrocardiograma (ECG) mostrando uma onda Q anormal em V4 e supradesnivelamento de ST em V1-V6 em paciente com grande infarto da parede anterior do miocárdioKusumoto FM. ECG interpretation. In: Pathophysiology to clinical application. New York, NY: Springer; 2009; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@1417c69a

  • BRE: pode ser sinal de cardiopatia estrutural, incluindo doença de Chagas ou cardiomiopatia dilatada

  • Inversão de onda T: embora inespecífica, pode ser um marcador importante de doença estrutural cardíaca subjacente.

A morfologia da TVNS pode dar pistas sobre sua causa, com TV monomórfica típica sugerindo causa idiopática com bom desfecho.[2]​​ Algumas morfologias são particularmente preocupantes. Por exemplo, surtos mais longos de TV polimórfica, particularmente aqueles com frequências rápidas (menor duração [duração do ciclo] entre complexos QRS), ou contrações ventriculares prematuras de acoplamento curto que iniciam a TV polimórfica NS ou TVNS monomórfica com duração curta do ciclo podem indicar pacientes com maior risco de morte súbita cardíaca. Esses pacientes podem precisar ser internados para uma avaliação mais aprofundada.[2] As evidências para o valor prognóstico da duração da TVNS (por exemplo, 6 batimentos vs. 25 batimentos) têm sido mistas; no entanto, como regra geral, episódios mais longos suscitam mais preocupação do que episódios mais curtos (<3-5 batimentos).

Eletrólitos e biomarcadores cardíacos

As anormalidades eletrolíticas, especialmente hipocalemia, hipercalemia e hipomagnesemia, podem frequentemente desencadear e/ou contribuir para a taquicardia ventricular não sustentada (TVNS) e, portanto, qualquer anormalidade eletrolítica no sangue precisa ser identificada.[2]​​ A suspeita clínica de isquemia deve levar ao exame de biomarcadores miocárdicos (creatina quinase-MB [CK-MB] e troponina I), já que fornecem informações importantes para confirmação de infarto do miocárdio (IAM).

Ecocardiografia, teste ergométrico, cateterismo cardíaco ou RNM

A investigação de doença cardíaca subjacente é facilitada por diversos testes diagnósticos.

  • A ecocardiografia é uma ferramenta segura e barata para avaliar anormalidades cardíacas estruturais, como valvopatia cardíaca que, em estágio avançado, pode causar TVNS e é tratável. A ecocardiografia é útil também para quantificar a função sistólica e detectar a presença de uma cardiomiopatia subjacente.[2]

  • O teste ergométrico e/ou cateterismo cardíaco são úteis para estabelecer a presença de DAC em pacientes que apresentam fatores de risco para DAC, mas podem estar assintomáticos. A probabilidade de DAC pré-teste do paciente deve ser pontuada e usada para orientar a escolha das investigações. Um teste ergométrico pode identificar arritmias induzidas por exercícios e, se presente, pode indicar cardiopatia estrutural subjacente. Os pacientes podem precisar ser aconselhados a evitar exercícios até que sejam submetidos investigações e tratamento adicionais.[2]​ Frequentemente, o teste ergométrico com imagem (por exemplo, ecocardiográfica ou nuclear) é necessário para uma identificação mais definitiva de isquemia subjacente.

  • A RNM cardíaca com gadolínio pode ser útil para identificar cicatrização do miocárdio, associada a DAC, cardiomiopatia dilatada idiopática e CMH. Ela também confirma a presença de infiltrados fibroadiposos no ventrículo e mede a disfunção ventricular direita nos pacientes com suspeita de cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito. As diretrizes recomendam considerar uma RNM cardíaca em pacientes com TVNS recentemente documentada e suspeita de cardiopatia estrutural (exceto DAC) após a avaliação inicial.[2]

Teste eletrofisiológico

A consulta com um eletrofisiologista é essencial para determinar quais pacientes se beneficiarão de um teste eletrofisiológico invasivo, da colocação de um cardioversor-desfibrilador implantável e de otimização do tratamento clínico.[1] O teste eletrofisiológico pode ser útil para avaliar (e tratar) uma ampla gama de pacientes após um IAM, incluindo aqueles com TV induzível e fração de ejeção (FE) menor que 40%, bem como aqueles com FE menor que 30% a 35% sem TV induzível, especialmente se houver QRS prolongado.[31][34] Nos pacientes com TVNS sintomática (tontura, síncope) originada da via de saída, o teste eletrofisiológico e a ablação são ferramentas diagnósticas e terapêuticas importantes.

Rastreamento genético

O rastreamento genético está disponível para mutações comuns associadas a síndrome do QT longo, síndrome de Brugada e TV polimórfica catecolaminérgica, bem como CMH e cardiomiopatia dilatada. A consulta com um cardiologista ou um geneticista pode ajudar a determinar quais pacientes se beneficiarão mais de um rastreamento genético. Pode ser necessário realizar teste genético em cascata nos familiares.[2][23][35][36]​​​​​[37]

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