Abordagem
O diagnóstico de depleção de volume é clínico, baseado principalmente na história e no exame físico. Os sintomas podem variar desde sede (com depleção leve) até choque irreversível e morte em casos graves. Médicos experientes serão capazes de fazer um exame físico focado na volemia, apesar dos desafios de uma criança que não coopera, está agitada ou chorando. Sinais e sintomas de apresentação como taquicardia e irritabilidade podem ser atribuídos erroneamente a problemas de ansiedade ou comportamentais. Caso a criança esteja agitada ou ansiosa para realizar o exame físico inicial, um profissional pode completar os exames seriais ou monitorar continuamente os sinais vitais remotamente para avaliar melhor o estado clínico do paciente.
Não há exame laboratorial específico para depleção de volume, e o diagnóstico é baseado nos achados clínicos e na história, principalmente com foco na ingestão oral e no volume das fezes e no débito urinário. Pacientes que apresentam história inconsistente, depleção de volume grave ou que não respondem à ressuscitação fluídica inicial constituem um pequeno subconjunto de pacientes nos quais os exames diagnósticos devem ser considerados. O uso de uma escala clínica ou escore pode melhorar a precisão do diagnóstico.[17] Alguns exames laboratoriais podem ser úteis para direcionar a terapia na doença moderada a grave.[18][19]
Presença de fatores de risco
Os fatores de risco fortemente associados à depleção de volume em crianças incluem:
Vômitos e/ou diarreia (mais comumente associados à gastroenterite).
Uma história de trauma: a hemorragia costuma ser bastante evidente, mas a maior incidência de traumatismo contuso, o grande tamanho dos órgãos internos e cabeça de uma criança pequena em comparação ao tamanho do esqueleto e a incapacidade da criança de comunicar dor localizada são desafios para o reconhecimento de perdas hemorrágicas em crianças. Além disso, um trauma não acidental (abuso físico) raramente é considerado no início da avaliação de uma criança com estado mental alterado ou queixas inespecíficas. O trauma não acidental pode estar associado a hemorragia intracerebral importante que, em um lactente muito pequeno, pode causar hipovolemia e choque hemorrágico.
Uma história de queimaduras de mais de 10% da área de superfície corporal causa perdas significativas através da barreira cutânea rompida.
História ou sintomas de diabetes mellitus: crianças sem um diagnóstico prévio ou com uma busca tardia por assistência, as crianças muito pequenas e os adolescentes têm uma maior tendência de terem depleção de volume significativa proveniente de uma hiperglicemia e da glicosúria resultante.[20]
Pode haver história de ingestão oral insatisfatória. Uma criança que se recusa a ingerir líquidos devido a náuseas, dor, estado mental alterado ou outras razões está em risco de ficar desidratada e, consequentemente, com depleção de volume.
Uma história de uso de diuréticos. Diuréticos promovem excreção adicional de água livre do rim, o que limita a capacidade do rim de compensar a depleção de volume ao reter mais água e soluto, podendo causar depleção de volume.
Pode haver também história de exercício extenuante e prolongado: atletas adolescentes realizando exercícios intensos em ambiente com umidade e temperatura elevadas podem apresentar perdas significativas, as quais, se não forem repostas por hidratação frequente com fluidos adequados, causam depleção de volume.[16][21]
História de sintomas recentes
Sede: uma história de sede exige a investigação de um estado hiperosmolar, conforme observado nos casos de desidratação e hipernatremia relativas.
Frequentemente ocorrem vômitos tanto na gastroenterite quanto na cetoacidose diabética (CAD; secundária a náuseas causadas pela cetose), as quais podem inviabilizar a terapia de reidratação oral. É importante perguntar quando ocorreu a última ingestão e o que foi administrado, de modo que a terapia possa ser planejada.
Diarreia (>3 evacuações aquosas/dia) caracteriza gastroenterite. O início, a quantidade, a frequência e a presença de sangue ou muco devem ser investigados. A presença de sangue e muco nas fezes sugere patógenos bacterianos.
Dor abdominal é comum na gastroenterite, na hemorragia intra-abdominal e na obstrução do intestino delgado.
O débito urinário é elevado nos casos de perdas renais excessivas (diabetes insípido, CAD, defeitos tubulares), mas é adequadamente baixo em outras afecções com hipovolemia.
Febre pode ser observada na gastroenterite não complicada, mas também sugere doença invasiva mais grave. Ela está associada ao aumento das perdas insensíveis, às perdas respiratórias através de taquipneia e à taxa metabólica elevada. É um fator de risco para sepse.[22]
Sinais vitais e verificação inicial da glicose
A taquicardia é um indicador confiável e pode ocorrer mesmo com depleção de volume leve. Crianças com desidratação hipernatrêmica podem apresentar uma preservação relativa do volume intravascular, comparadas àquelas com desidratação hiponatrêmica, e, portanto, têm uma frequência cardíaca um pouco mais lenta, apesar da perda de volume geral equivalente. Lactentes e crianças pequenas com hipovolemia mantêm o débito cardíaco adequado principalmente através do aumento da frequência cardíaca em virtude da capacidade limitada, pelo nível de desenvolvimento, de aumentar o volume sistólico.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Limites superiores da faixa normal de frequência cardíaca por idadeTabela criada pelo BMJ Group. Com base nos dados de Ngo NT, et al. Clin Infect Dis. 2001;32:204-213 [Citation ends].
Pressão arterial (PA): a menos que a depleção de volume tenha evoluído para choque grave, a PA é mantida ou se apresenta ligeiramente elevada. As crianças podem preservar uma PA normal em um intervalo muito mais amplo de depleção de volume que os adultos. Grandes perdas de volume são geralmente necessárias para que ocorram alterações da PA. Em crianças, a PA baixa é um sinal tardio e de mau prognóstico. Tabelas de valores normais para a PA em crianças foram publicadas. Clinical practice guideline for screening and management of high blood pressure in children and adolescents Opens in new window
Frequência e profundidade respiratória: hiperpneia ou taquipneia são observadas como respostas compensatórias à acidose metabólica. Isso ocorre com a acidemia láctica decorrente da redução da perfusão tecidual e da cetonemia na CAD.
A temperatura é geralmente elevada nas doenças infecciosas, queimaduras, estresse térmico e sepse. Uma temperatura central baixa pode indicar hemorragia significativa, sepse (particularmente em crianças pequenas) e choque. Uma temperatura cutânea periférica notadamente inferior à temperatura central do paciente é um resultado do aumento da resistência vascular sistêmica e indica um estado de choque compensado na hipovolemia.
Tira para teste de glicose: hipoglicemia frequentemente ocorre em lactentes doentes em decorrência de taxas metabólicas mais altas e de reservas de glicogênio mais baixas. Devem-se obter medidas rápidas de glicose sanguínea à beira do leito em todas as crianças pequenas que apresentem estado mental alterado e sinais de depleção de volume, confirmando-se com glicose sérica para descartar a falsa elevação que pode mascarar a hipoglicemia. A hipoglicemia deve ser rapidamente abordada. Os pacientes que se apresentam com depleção de volume proveniente de um novo episódio de diabetes são hiperglicêmicos.
Exame físico de rotina
Estado mental, avaliação do nível de atividade: fornece informações diagnósticas essenciais. Lactentes e crianças pequenas inconsoláveis ou apáticas, ou que não pareçam resistir a procedimentos invasivos ou desconfortáveis, devem ser consideradas como apresentando doença grave/deteriorante.
Membranas mucosas: membranas mucosas ressecadas ou pegajosas são observadas na hipovolemia; membranas mucosas pálidas sugerem sangramento com anemia.
Enchimento capilar: classicamente, a depleção de volume está associada ao tempo de enchimento capilar prolongado (>3 segundos). Isso tende a ser verdadeiro na depleção de volume gradual, como observado na gastroenterite. Uma metanálise concluiu que os 3 achados clínicos mais úteis em uma criança com depleção de volume e desidratação foram: tempo de enchimento capilar prolongado, turgor cutâneo diminuído e padrão respiratório anormal.[23] Entretanto, em queimaduras, anafilaxia e sepse, o tempo de enchimento capilar pode não ser prolongado (<3 segundos). Portanto, determinar o tempo de enchimento capilar não é um teste clínico confiável em todos os casos.
O turgor cutâneo pode ser notadamente afetado em casos graves de depleção de volume, particularmente nos casos associados à hipernatremia ou hiperosmolaridade. Uma consistência mole é relatada nos estados hiponatrêmicos. Uma vez que crianças apresentam mais elasticidade cutânea que adultos, este frequentemente é um sinal relativamente tardio na evolução da depleção de volume. Recomenda-se a avaliação do turgor cutâneo pelo pinçamento de uma pequena dobra de pele no abdome adjacente ao umbigo e observação da retração. Em um cenário de desnutrição aguda grave, no entanto, turgor cutâneo não é um sinal confiável de depleção de volume. Nesses pacientes, a perda de elasticidade da pele ocorre devido à perda de gordura subcutânea e não somente pela depleção de volume.
Hematomas ou sinais de negligência: crianças que apresentam hipovolemia decorrente de sangramento interno resultante de trauma não acidental podem exibir evidências de trauma anterior ou negligência geral. É importante observar que esses sinais podem estar completamente ausentes. A falta de achados externos não é suficientemente tranquilizadora para dispensar investigações adicionais.
Exame abdominal: o desconforto abdominal é comum na gastroenterite, na hemorragia intra-abdominal e na obstrução do intestino delgado. Ruídos hidroaéreos ativos são ouvidos na gastroenterite. Os ruídos hidroaéreos estão diminuídos na sepse, na hipocalemia, em alguns tipos de trauma abdominal e em doença grave generalizada.
Indicadores comumente utilizados para determinar o nível de depleção de volume
Depleção de volume leve a moderada
Estado mental normal preservado
Estabilidade hemodinâmica
Sinais vitais ligeiramente alterados (por exemplo, grau discreto de taquicardia)
Depleção de volume grave
Estado mental alterado
Taquicardia sustentada
Instabilidade hemodinâmica
OMS: Manual para o manejo de diarreia para médicos e profissionais de saúde seniores
Classifica os sintomas de depleção de volume em crianças que se apresentam especificamente com doenças diarreicas.[14] Os sintomas e sinais permitem o posicionamento das crianças em 1 de 2 categorias de acordo com a gravidade da depleção de volume.
Desidratação leve a moderada (perda de 5% a 10% da água corporal total)
Geral: inquieta, irritável
Olhos: encovados
Sede: sedenta, bebe avidamente
Pinçamento da pele: retorna lentamente
Desidratação grave (>10% de perda de água corporal total)
Geral: letárgica ou inconsciente.
Olhos: encovados
Sede: ingere poucos líquidos ou não consegue ingerir líquidos
Pinçamento da pele: retorna muito lentamente
American College of Surgeons: classificação do sangramento estimado em crianças
Classifica perda sanguínea estimada por sinais clínicos em crianças.[24] Simplifica a apresentação para 4 sistemas em 3 categorias (leve, moderada e grave).
Leve (perda de 15% a 30% do volume de sangue total)
Sistema cardiovascular (SCV): taquicárdico, pulso fraco
Sistema nervoso central (SNC): irritável, confuso, agitado
Pele: fria, tempo de enchimento capilar prolongado
Débito urinário: minimamente diminuído
Moderado (perda de 30% a 45% do volume de sangue total)
SCV: taquicardia, pulsos periféricos filiformes, pressão de pulso convergente, hipotensão leve
SNC: letargia, resposta mínima
Pele: cianótica ou pálida, tempo de enchimento capilar extremamente prolongado
Débito urinário: mínimo
Grave (perda >45% do volume de sangue total)
SCV: taquicardia, ausência de pulsos periféricos, hipotensão, bradicardia tardia
SNC: comatoso
Pele: pálida, fria
Débito urinário: nenhum
Investigações
Osmolalidade e densidade relativa urinárias: concentração urinária que causa osmolalidade elevada da urina é uma resposta fisiológica adequada à depleção de volume, mas pode não prever desidratação de forma confiável.[17][25] Lactentes abaixo de 6 meses são menos capazes de concentrar a urina em decorrência da imaturidade renal e podem não apresentar uma densidade urinária relativa elevada. Pacientes com perdas renais primárias apresentam uma diluição da urina inadequada em face de significativa depleção de volume. A urina é analisada com microscopia e cultura para glicosúria, proteinúria e sinais de urossepse.
Eletrólitos séricos e glicose sanguínea: a diferenciação entre perdas de volume hipernatrêmicas, isonatrêmicas e hiponatrêmicas auxilia a orientar a terapia subsequente. O bicarbonato sérico baixo é identificado em muitos tipos de hipovolemia devida a perdas diretas (por exemplo, diarreia ou perfusão tecidual insuficiente decorrente do volume intravascular diminuído). Os níveis de glicose podem estar baixos nos pacientes jovens com pouca ingestão de alimentos, ou acentuadamente elevados nos pacientes com depleção de volume concomitante à CAD.
Ureia/creatinina: a relação é superior a 20:1 na hipoperfusão renal.
Hemograma completo: anemia pode ser observada no sangramento não agudo, enquanto a hemoconcentração pode ser observada na perda de volume plasmático, principalmente em queimaduras. A hemorragia aguda sem administração de fluidoterapia intravenosa geralmente apresenta um nível de hemoglobina relativamente preservado. Leucocitose ou neutropenia é comum nos casos de infecção.
Pode ser realizada hemocultura em caso de suspeita de sepse.
TC ou ultrassonografia de crânio e abdominal: traumatismo contuso, especialmente cranioencefálico e de vísceras abdominais, pode ser uma causa preponderante de depleção de volume associada à hemorragia. Estado mental alterado em uma criança que se sabe ser constantemente submetida a trauma ou em um lactente deve levar à investigação de sangramento oculto. A história é frequentemente encoberta em situações de abuso.
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