Abordagem

Os sintomas e sinais iniciais da taquicardia ventricular (TV) e das taquicardias supraventriculares (TSVs) apresentam sobreposição considerável. Com exceção dos sinais de dissociação atrioventricular (AV) (por exemplo, ondas A em canhão) que são essencialmente diagnósticas de TV, poucos achados clínicos podem identificar definitivamente a origem de uma taquicardia de complexo largo.

História

Uma história de infarto do miocárdio agudo ou prévio ou disfunção sistólica ventricular esquerdo favorece fortemente um diagnóstico de taquicardia ventricular (TV), mas o oposto não é necessariamente verdadeiro. A maioria dos sintomas associados à taquicardia ventricular são inespecíficos e eles também podem estar presentes em pacientes com outras doenças, incluindo taquicardia supraventricular (TSV). Por exemplo, palpitações, dispneia, desconforto torácico e náuseas/diaforese são comuns em pacientes com TV, mas não são patognomônicos. Além disso, a hipotensão não ajuda a identificar a origem das arritmias; muitos casos de TV bem tolerada e de TSV mal tolerada têm sido descritos. O paciente pode apresentar uma história de síncope ou pré-síncope.

Uma história familiar de morte súbita, principalmente se ocorre em idade precoce, deve alertar o médico a buscar as possíveis causas arritmogênicas. Especialmente se a morte súbita não ocorreu no contexto de doença arterial coronariana subjacente, o médico deve dar ainda mais atenção ao rastreamento de anormalidades elétricas primárias, como síndrome do QT longo e síndrome de Brugada. Além disso, modalidades de exames de imagem incluindo ecocardiografia e ressonância nuclear magnética (RNM) cardíaca devem ser consideradas para avaliar evidências de doenças como a cardiomiopatia hipertrófica, a cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito e não compactação do ventrículo esquerdo.

Os pacientes com alto risco de TV que devem ser considerados para o cardioversor-desfibrilador implantável (CDI) profilático incluem aqueles com:

  • Cardiomiopatia isquêmica ou não isquêmica (fração de ejeção do ventrículo esquerdo [FEVE] ≤35%) e sintomas de insuficiência cardíaca congestiva leve a moderada (sintomas da classe II ou III da New York Heart Association). Aqueles com insuficiência cardíaca grave (classe IV) também apresentam alto risco, mas apresentam insuficiência cardíaca progressiva como um modo de morte competitivo e, portanto, devem ser considerados para CDI apenas se forem candidatos à terapia de ressincronização cardíaca

  • Cardiomiopatia isquêmica (FEVE ≤40%) sem TV não sustentada e TV sustentada induzida durante um estudo eletrofisiológico

  • Cardiomiopatia isquêmica (FEVE ≤30% e sintomas da classe I da New York Heart Association)

  • Cardiomiopatia hipertrófica (CMH) com características de alto risco, como história familiar de morte súbita por CMH; hipertrofia ventricular esquerda maciça (espessura da parede ≥30 mm); síncope inexplicada; disfunção sistólica do ventrículo esquerdo; aneurisma atípico do ventrículo esquerdo; realce tardio com gadolínio extenso na RNM cardiovascular; ou TV não sustentada frequente, mais longa e mais rápida.[8]​​[9] Outras características clínicas utilizadas no cálculo do risco de morte súbita cardíaca na CMH incluem idade, diâmetro do átrio esquerdo, obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo e resposta da pressão arterial ao exercício

  • Síndromes de arritmia congênita, incluindo pacientes sintomáticos com síndrome do QT longo, síndrome de Brugada e TV polimórfica catecolaminérgica com característicos de alto risco.

Exame físico

O exame físico em um paciente com suspeita de TV deve incluir uma avaliação dos níveis de consciência do paciente, da estabilidade das vias aéreas, respiração e do suporte circulatório. Isso ajudará a determinar, assim que a TV for confirmada, se o paciente deve ser imediatamente cardiovertido ou se a primeira tentativa deve ser a terapia farmacológica.

Sinais de comprometimento das vias aéreas podem incluir estridor e/ou obstrução aparente na respiração durante a reanimação.

A palpação da carótida ou do pulso femoral pode ser necessária para determinar a frequência cardíaca se o paciente estiver relativamente hipotenso (por exemplo, PA sistólica <90 mmHg) e também pode fornecer uma estimativa bruta do débito cardíaco (percebendo a força do pulso) se a medição da pressão arterial não puder ser obtida imediatamente. Pacientes com pulso fraco e hipotensão são classificados como hemodinamicamente instáveis, pois são pacientes com sinais de diminuição da perfusão cerebral (por exemplo, vertigem, tontura, capacidade de reação diminuída ou inconsciência) ou coronariana (por exemplo, desconforto torácico, dispneia). Novamente, esses achados nem sempre ajudam a distinguir a TV da TSV.

Eletrocardiograma (ECG)

O ECG é essencial para o diagnóstico de TV. A TV é definida pela presença de uma taquicardia de complexo largo (QRS de 120 milissegundos ou mais) em uma frequência de 100 bpm ou superior. Entretanto, é importante reconhecer que nem todas as taquicardias de complexo largo ocorrem devido à TV. Ao avaliar o paciente com taquicardia de complexo largo, é essencial distinguir a TV da TSV que se conduz com anormalidade ou com pré-excitação, já que essas doenças são tratadas de modo muito diferente.

Quando disponível, a revisão do ECG inicial do paciente fornece pistas importantes para determinar a origem de uma arritmia ventricular.

As evidências que dão suporte ao diagnóstico de TSV incluem:

  • Pré-excitação preexistente com morfologia semelhante à arritmia ventricular; e/ou

  • Bloqueio de ramo inicial basal que se parece com a taquicardia de complexo largo.[22]

Foi proposta uma abordagem escalonada em 4 etapas para diferenciar a TV da TSV com condução aberrante.[23] As etapas são:

  • 1. Confirmação do diagnóstico de TV pela ausência de um complexo RS em qualquer derivação precordial

  • 2. Se o complexo RS estiver presente na etapa 1, meça o início do QRS até o nadir da onda S:

    • a. intervalo R a S >100 milissegundos confirma o diagnóstico de TV

  • 3. Se o intervalo R a S for <100 milissegundos: examine o ECG quanto à presença de dissociação AV. Se estiver presente, o diagnóstico é TV.

  • 4. Se não há dissociação AV, examine o complexo QRS em V1 e V6:

    • a. QRS com morfologia de bloqueio de ramo direito:

      • i. na derivação V1: R monofásica, QR ou RS falam a favor de TV

        ii. na derivação V6: uma razão R/S <1 fala a favor de TV; QS, QR ou R monofásica falam a favor de TV

    • b. QRS com morfologia de bloqueio de ramo esquerdo:

      • i. na derivação V1 ou V2: R >30 milissegundos, intervalo (nadir) R a S >60 milissegundos ou uma onda S entalhada falam a favor de TV

      • ii. na derivação V6: QR ou QS falam a favor de TV

    • c. Nota: tanto o critério de V1/V2 quanto o de V6 precisam falar a favor de TV para que o diagnóstico seja feito usando-se esta etapa.

Caso contrário, um diagnóstico de TSV será feito.

A dissociação AV pode se manifestar como ondas P dissociadas (geralmente mais bem observadas na derivação V1) ou a presença de batimentos de captura e batimentos de fusão. Batimentos de fusão são alterações no complexo QRS que surgem quando o ritmo nativo compete ou se funde com um ciclo de TV. O batimento de fusão demonstra morfologia diferente da encontrada em outros complexos QRS em uma TV monomórfica e é intermediário entre os complexos amplos e a morfologia inicial do QRS do paciente. Um batimento de captura é um fenômeno do ECG caracterizado por um complexo QRS estreito que ocorre durante a TV; o batimento de captura resulta de um batimento sinusal que penetra temporariamente no circuito da TV. O batimento de captura ocorre em um intervalo RR mais precoce que o esperado pela duração do ciclo da TV. Ao avaliar um paciente com taquicardia de complexo largo não diagnosticada, a presença de batimentos de captura ou de fusão comprova que a arritmia é TV, e não TSV com condução aberrante.

Evidências que sugerem que a arritmia tem maior probabilidade de derivar do ventrículo incluem contrações ventriculares prematuras de morfologia semelhante à taquicardia presente no ECG inicial.[22]

Evidências de infarto agudo do miocárdio prévio ao ECG também falam a favor de um diagnóstico de TV.

Foi relatado outro algoritmo que usa somente derivação aVR para diferenciar TV de TSV com precisão superior.[24] A derivação aVR foi analisada quanto à:

  • 1. Presença de uma onda R inicial

  • 2. Largura de uma onda r ou q inicial >40 milissegundos

  • 3. Entalhe no curso descendente inicial de um complexo QRS predominantemente negativo

  • 4. Razão ativação-velocidade (vi/vt) ventriculares, em que v é a excursão vertical registrada durante os 40 milissegundos iniciais (vi) e terminais (vt) do complexo QRS.

O achado de algum dos aspectos acima permite o diagnóstico de TV.

Outras evidências eletrocardiográficas que dão suporte ao diagnóstico de TV incluem:

  • Duração do QRS: >140 milissegundos com morfologia de bloqueio de ramo direito, ou duração do QRS >160 milissegundos com morfologia de bloqueio de ramo esquerdo (esses critérios não se aplicam a pacientes tratados com medicamentos antiarrítmicos)

  • A presença de um eixo superior direito ou de morfologia de bloqueio de ramo esquerdo e qualquer eixo direito. A ausência de desvio extremo do eixo não implica na origem supraventricular da taquicardia.[25]

Em 2022, outro algoritmo simples foi publicado, chamado algoritmo de Basel. O algoritmo de Basel demonstrou alta sensibilidade, especificidade e precisão no diagnóstico de TV utilizando o ECG de 12 derivações e a história. A TV foi diagnosticada na presença de pelo menos dois dos seguintes critérios: 1) características clínicas de alto risco (ou seja, história de infarto do miocárdio ou história de insuficiência cardíaca congestiva com fração de ejeção de 35% ou menos, ou, na presença de um CDI ou CDI biventricular); 2) tempo até o primeiro pico da derivação II >40 milissegundos; e 3) tempo até o primeiro pico da derivação aVR >40 milissegundos. Caso um ou nenhum critério tenha sido preenchido, o diagnóstico é de TSV.[26]

O ECG inicial deve ser examinado cuidadosamente em relação à evidência de:

  • prolongamento do intervalo QT[Figure caption and citation for the preceding image starts]: QT prolongado: QTc 510 ms (frequência cardíaca [FC] 69 e QT 476)Do acervo do Prof. Sei Iwai; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@6bbaa70b

  • Síndrome de Brugada: um distúrbio caracterizado por anormalidades da condução cardíaca, que leva a uma elevação característica no ponto J e elevação em declive descendente do segmento ST na derivação precordial direita que pode levar à morte súbita devido a TV polimórfica. Uma mutação no gene SCN5A (canal de sódio) foi responsabilizada, mas está presente em uma minoria de pacientes. O SCN10A foi identificado como gene de maior suscetibilidade para síndrome de Brugada.[12]

  • Cardiomiopatia arritmogênica ventricular direita: é um distúrbio genético caracterizado por TV, morte súbita e insuficiência cardíaca progressiva. Nessa doença, várias regiões do músculo ventricular direito (e ocasionalmente no esquerdo) são substituídas por deposição de tecido gorduroso e fibrótico. Os pacientes com cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito frequentemente apresentam retardo de condução do ventrículo direito ao ECG; o achado de uma onda épsilon na derivação V1 é um sinal específico, embora não sensível, dessa doença. Uma onda épsilon representa a ativação tardia de uma região do miocárdio ventricular, sendo que essa demora se deve à presença de infiltração gordurosa e de fibrose.

Embora ele esteja tentando imaginar se a taxa da taquicardia sugere se ela é proveniente ou não do ventrículo, a taxa de taquicardia não é útil no diagnóstico da localização da taquicardia. Do mesmo modo, a regularidade da taquicardia geralmente não é útil para classificar sua origem, embora a irregularidade macroscópica sugira a possibilidade de fibrilação atrial com condução aberrante ou pré-excitação.

Eletrólitos e enzimas cardíacas

Anormalidades eletrolíticas (principalmente hipocalemia e hipomagnesemia) podem incitar e/ou contribuir para TV. Quando o tempo e a condição do paciente permitem, os eletrólitos sanguíneos devem ser investigados e quaisquer anormalidades nesses eletrólitos devem ser corrigidas.

Em situações em que isquemia ou infarto são o mecanismo suspeito da TV, ensaios de marcadores de lesão miocárdica (especialmente troponina) fornecem informações úteis para confirmação.

Exames de imagem

Devido ao prognóstico amplamente variável e às estratégias de manejo para TV idiopática e TV associada à cardiopatia estrutural, é crucial estabelecer a presença ou ausência de cardiopatia estrutural em um paciente com TV. O ecocardiograma é uma forma inicial eficiente de determinar a presença ou ausência de cardiopatia estrutural, além de quantificar a função sistólica.

Em pacientes com suspeita de cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito, a RNM cardíaca é indicada para a presença de infiltração fibrogordurosa do ventrículo direito e para disfunção do ventrículo direito.

Teste de esforço e cateterismo cardíaco

Testes de esforço e/ou cateterismo cardíaco devem ser considerados para estabelecer a presença de doença arterial coronariana (DAC), para descartar a possibilidade de isquemia assintomática/silenciosa, principalmente entre pacientes com fatores de risco para DAC.

Em pacientes com suspeita de apresentar a TV polimórfica catecolaminérgica como doença hereditária, o diagnóstico pode ser feito com base na presença de arritmias ventriculares bidirecionais ou polimórficas sob condições de atividade simpática aumentada (por exemplo, após teste ergométrico) em pacientes jovens com coração estruturalmente normal e ECGs iniciais normais.[27] O diagnóstico pode ser feito com base no teste genético para mutações nos genes codificadores do canal de liberação de cálcio e rianodina (RyR2) tipo cardíaco e, em alguns pacientes, mutações nos genes codificadores da calsequestrina cardíaca (CASQ2).[16][17]

Estudo eletrofisiológico (EF)

A determinação de quais pacientes devem se beneficiar de um estudo EF invasivo é feita na consulta com um eletrofisiologista.[7] Ela pode ser necessária para distinguir TV da TSV com anormalidade nos casos em que o ECG de superfície não consegue estabelecer um diagnóstico. O estudo EF também pode ser usado para estabelecer o mecanismo da TV em pacientes com coração estruturalmente normal, e em pacientes com fração de ejeção do ventrículo esquerdo >35% ou com síncope inexplicada.[28] Um estudo de PE pode ser útil nesses casos para determinar se um paciente específico se beneficiaria de um CDI profilático.[7]

Teste genético

O teste genético está disponível para doenças cardiovasculares hereditárias, inclusive síndrome do QT longo, síndrome do QT curto, síndrome de Brugada e cardiomiopatia hipertrófica e TV polimórfica catecolaminérgica.[16][17] A consulta com um médico geneticista é útil ao decidir quais pacientes devem fazer o teste genético.[16][17] A prestação de aconselhamento genético é uma parte essencial dos cuidados para qualquer paciente que concorde em fazer o teste genético.[16][17]

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