Abordagem
O principal objetivo do tratamento da superdosagem de antidepressivo tricíclico (ADT) é fornecer cuidados de suporte respiratório e cardiovascular até que o medicamento absorvido possa ser totalmente metabolizado e eliminado. O manejo das arritmias envolve correção da acidose, da hipóxia e do desequilíbrio eletrolítico. Em geral, os medicamentos antiarrítmicos devem ser evitados.
Ressuscitação inicial
O paciente deve ser estabilizado rapidamente. É necessário avaliar as vias aéreas, a respiração e a circulação; obter acesso intravenoso; conectar um monitor cardíaco; e obter um eletrocardiograma (ECG) para procurar prolongamento do QRS.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Alterações clássicas do eletrocardiograma (ECG)Do acervo de R.S. Hoffman; usado com permissão [Citation ends].
Em caso de superdosagem de ADT suspeitada ou confirmada com QRS >100 milissegundos, devem ser administrados bolus de bicarbonato de sódio para reduzir o QRS para <100 milissegundos, desde que o pH sanguíneo não esteja superior a 7.55.
Internação
Pacientes assintomáticos 6 ou mais horas após a ingestão acidental de uma dose de TCA que provavelmente não seja tóxica podem ser monitorados em domicílio. Todos os outros pacientes devem ser internados.[22]
Após a estabilização inicial, os pacientes que apresentam sinais de toxicidade significativa (por exemplo, hipotensão, taquicardia de complexo largo e sinais anticolinérgicos) devem ser admitidos na unidade de terapia intensiva.
Pacientes com risco de desenvolver complicações maiores estão suscetíveis a apresentar uma ou mais das seguintes características, no momento da avaliação:[23][24]
Frequência cardíaca de 120 bpm ou superior
Escala de coma de Glasgow <14
Duração do QRS >100 milissegundos
Arritmias cardíacas ou defeitos de condução
Convulsões
Frequência respiratória <8 respirações/minuto
Pressão arterial sistólica <90 mmHg
QRS alargado costuma ser considerado um bom preditor de complicações posteriores, embora um estudo tenha sugerido que a ocorrência de coma pode ser um melhor preditor de tais complicações.[25][26]
Pacientes que recuperam seu estado mental normal rapidamente e cujo ECG mostra taquicardia sinusal sem alargamento do QRS devem ser submetidos a avaliação psiquiátrica e receber alta após descontaminação gastrointestinal e observação mínima de 6 horas.[27]
Descontaminação gástrica e procedimentos extracorpóreos
Para uma superdosagem em estágio precoce (<2 horas após a ingestão), a descontaminação gastrointestinal deve ser considerada por meio da administração de carvão ativado, desde que as vias aéreas possam ser protegidas.[28] Não há nenhum benefício claro em doses repetidas de carvão ativado, mas esse procedimento pode ser considerado caso tenha sido ingerida uma preparação de liberação lenta.
Estudos clínicos não demonstraram qualquer efeito significativo no desfecho utilizando lavagem orogástrica, e há um risco de que ocorra maior absorção do conteúdo do comprimido a partir do intestino delgado. Além disso, a lavagem orogástrica pode agravar a taquicardia e a hipóxia; portanto, seu uso rotineiro não é recomendado. É improvável que procedimentos extracorpóreos (como hemoperfusão, hemofiltração e hemodiálise) sejam benéficos devido ao grande volume de distribuição e à alta capacidade de ligação a proteínas dos ADTs, embora a oxigenação por membrana de circulação extracorpórea (ECMO) tenha sido usada com sucesso para tratar a hipotensão refratária.[28][29][30][31]
Papel do bicarbonato de sódio no manejo de alterações do ECG e acidose
A alcalinização do sistema e a carga de sódio fornecida pelo bicarbonato de sódio hipertônico reduzem a cardiotoxicidade induzida por ADT. Estudos clínicos e experimentais demonstram que a alcalinização e a aplicação de sódio (com ou sem hiperventilação) melhoram os parâmetros eletrocardiográficos, o nível de consciência e a hipotensão.[21]
Bolus de bicarbonato de sódio devem ser administrados para estreitar o QRS para <100 milissegundos, visando um pH máximo entre 7.5 e 7.55. Há algum debate sobre se estes bolus iniciais devem ser seguidos por uma infusão contínua ou por bolus adicionais conforme necessários; qualquer que seja o uso, é importante manter o sódio sérico <155 mEq/L e o pH sérico <7.55.[31] Não há evidências que justifiquem a administração profilática de bicarbonato de sódio na ausência de cardiotoxicidade ou de acidose metabólica.
As doses em bolus de bicarbonato de sódio hipertônico servem-se a três finalidades no tratamento das superdosagens de ADT:
Fornecer substrato de sódio suficiente para permitir maior entrada de sódio nas células miocárdicas, apesar do bloqueio dos canais de sódio. O resultado é um QRS estreito e um melhor débito cardíaco.
Alcalinizar o sangue, o que diminui a afinidade do ADT ao canal de sódio.
Esta alcalinização proporciona uma proteção que ajuda a evitar ou a limitar a acidose que pode seguir uma convulsão ou hipoperfusão. A acidose exacerba a cardiotoxicidade, por reforçar a ligação do ADT com os canais de sódio.
O risco desta terapia é alcalemia (pH >7.55), mas os benefícios geralmente superam este risco. Juntos, o sódio e o bicarbonato parecem agir sinergicamente para potencializar seus efeitos individuais.[32]
Em caso de superdosagem grave, a quantidade de bicarbonato de sódio necessária para manter um QRS adequado pode ser muito grande e poderia causar uma alcalemia intensa. Nesses casos, pode-se utilizar solução salina hipertônica (3%) sem bicarbonato ou deixar o paciente com leve hipercapnia para fornecer tampão ácido para doses em bolus de bicarbonato de sódio necessárias. Para os pacientes que não tolerarem o volume associado à terapia com bicarbonato de sódio, considere uma tentativa de hiperventilação.[31]
Manejo da hipotensão
A hipotensão deve ser tratada com correção da hipóxia, fluidoterapia e bicarbonato intravenoso.
O uso de agentes inotrópicos e vasopressores de ação direta, como a noradrenalina, é controverso e só deve ser feito em consulta com um toxicologista clínico e um especialista em terapia intensiva. A sua utilização pode causar hipoperfusão e aumento da acidose, o que agrava ainda mais a toxicidade da superdosagem de ADT, uma vez que aumenta a afinidade do ADT pelo canal de sódio e o grau de bloqueio do canal. O resultado são ritmos complexos e amplos com diminuição do débito cardíaco, causando hipoperfusão e acidose adicionais.
O glucagon tem efeitos inotrópicos e cronotrópicos sobre o tecido miocárdico. Relatos de caso sugerem que a hipotensão refratária foi tratada com sucesso com altas doses de glucagon intravenoso; no entanto, as diretrizes não fizeram uma recomendação a favor ou contra seu uso nas superdosagens de ADT.[31][33][34] Outros relatos sugerem o êxito do uso da vasopressina e do análogo da vasopressina, terlipressina, na hipotensão resistente a catecolaminas.[35][36]
A ECMO também tem sido usada com sucesso no tratamento da hipotensão refratária.[29][30][31]
Manejo das arritmias
As principais arritmias ocorrem, em geral, em associação com outras alterações do ECG ou na presença de complicações, como coma, hipotensão ou convulsões. No entanto, elas também podem ocorrer nos pacientes com anormalidades eletrocardiográficas pequenas. As arritmias devem ser tratadas corrigindo-se a acidose, a hipóxia e as anormalidades eletrolíticas. Bolus de bicarbonato de sódio podem ser eficazes no tratamento das arritmias, mesmo na ausência de acidose metabólica, e este deve ser o tratamento de primeira linha. Os medicamentos antiarrítmicos geralmente devem ser evitados, pois podem levar a uma exacerbação.[21]
Taquiarritmias
Há relatos sobre o uso do sulfato de magnésio no tratamento da taquicardia ventricular e da fibrilação ventricular refratárias a outros tratamentos.[37][38] Pode-se utilizar infusão de magnésio ou estimulação atrial rápida ("overdrive pacing") para tratar a torsades de pointes. Os medicamentos antiarrítmicos das classes Ia (quinidina, disopiramida, procainamida) e Ic (flecainida, propafenona) não devem ser usados, pois apresentam os mesmos efeitos de bloqueio do sódio que os ADTs.[31] Os medicamentos da classe Ia também têm o potencial de aumentar o risco de torsades de pointes. Teoricamente, os antiarrítmicos da classe Ib (como a lidocaína e a fenitoína) têm menos efeitos sobre a contratilidade miocárdica; no entanto, as evidências do benefício clínico com a lidocaína em estudos clínicos são limitadas.[39] Embora a fenitoína possa reduzir os defeitos de condução, ela também pode aumentar a frequência e duração da taquicardia ventricular e, portanto, não é recomendada. Os antiarrítmicos da classe II (betabloqueadores) podem causar hipotensão e bradicardia grave, e têm sido associados com parada cardíaca. Seu uso deve ser limitado à abordagem de taquiarritmias ventriculares no contexto da parada cardíaca, em que outros tratamentos foram ineficazes. Não existem estudos que respaldem o uso de antiarrítmicos da classe III (amiodarona) ou classe IV (bloqueadores de canais de cálcio).
Bradiarritmias
O bicarbonato de sódio deve ser usado para tratar a bradicardia ou bloqueio atrioventricular. Acredita-se que a atropina seja praticamente inefetiva, uma vez que as falhas da condução AV induzidas pelos tricíclicos ocorrem geralmente de forma distal ao nó AV. O desenvolvimento de Mobitz tipo II ou de um bloqueio atrioventricular total pode exigir a inserção de um marca-passo temporário. Nessas circunstâncias, a isoprenalina pode ser usada provisoriamente até que a estimulação com o marca-passo temporário esteja estabelecida.
Emulsão lipídica
Estudos em animais e relatos de casos sugerem que as arritmias com risco à vida que não são corrigidas com bicarbonato de sódio podem responder à infusão de emulsão lipídica. A emulsão lipídica pode funcionar, fornecendo um compartimento intravascular de lipídios no qual os medicamentos lipossolúveis podem ficar sequestrados, por aumentar a disponibilidade de ácidos graxos livres para o metabolismo cardíaco ou melhorando a função miocárdica pelo aumento do cálcio intracelular. Esta terapia tem sido utilizada para tratar as arritmias com risco à vida causadas por medicamentos altamente lipossolúveis, e tem sido sugerida para tratar a cardiotoxicidade grave por ADTs, embora a evidência de sua eficácia seja limitada.[31][40][41][42]
Parada cardíaca
A parada cardíaca causada por ADTs deve ser tratada por meio de alcalinização sistêmica com bicarbonato de sódio e hiperventilação. Os esforços de ressuscitação cardíaca padrão devem ser implementados. As tentativas de reanimação devem prosseguir durante pelo menos 1 hora.
Manejo do coma e convulsões
Alterações do nível de consciência podem ocorrer rapidamente e o coma está fortemente associado ao risco de evolução para outras complicações da toxicidade. O coma também costuma estar associado a depressão respiratória, exigindo intubação e suporte ventilatório. O flumazenil não deve ser administrado para reverter a toxicidade dos benzodiazepínicos nas superdosagens mistas, uma vez que isso pode precipitar convulsões. As convulsões geralmente ocorrem como uma complicação inicial e são improváveis mais de 12 horas após a ingestão. Embora a maioria das convulsões seja breve e autolimitada, mesmo os episódios breves podem causar alargamento do complexo QRS e hipotensão, agravando a acidose, exacerbando os efeitos cardiotóxicos dos ADTs. Não há evidências que respaldem o uso de tratamentos profiláticos para os pacientes em risco de desenvolver convulsões. As convulsões não autolimitadas devem ser tratadas com benzodiazepínicos, seguidos por barbitúricos ou propofol, se necessário.[25] A fenitoína é contraindicada, pois não melhora as convulsões e pode agravar a toxicidade cardíaca.[43]
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