Abordagem
A história característica é essencial para diagnosticar intoxicações ou enfermidades transmitidas por alimentos.
História
É importante determinar a exposição aos alimentos, a exposição a animais, a duração da doença, a presença de surtos locais de enfermidades transmitidas por alimentos, história de contato, história de abuso de substâncias químicas e histórico de viagens recentes (especialmente viagens ao exterior). Se 2 ou mais pessoas apresentarem sintomas, então é considerado um surto. Alguns patógenos são notificáveis.
As exposições a alimentos específicos para identificação incluem o seguinte:[34][40]
Carne mal cozida: associada a Salmonella, Campylobacter, Escherichia coli produtora da toxina shiga, Clostridium perfringens, Yersinia, Staphylococcus aureus, Trichinella e hepatite E.[24]
Frutos do mar crus: associados com norovírus, espécies de vibriões, hepatite A, Plesiomonas ou trematódeos (parasitas); frutos do mar crus ou cozidos também podem estar associados com contaminação por toxinas (por exemplo, toxinas marinhas, mercúrio, cádmio, histamina)
Alimentos em conserva caseira: associado ao Clostridium botulinum
Leite não pasteurizado, queijos frescos ou outros laticínios crus: associados com Listeria, Salmonella, Campylobacter, E coli produtora de toxina Shiga, Yersinia, S aureus, Cryptosporidium, Brucella, Mycobacterium bovis e Coxiella burnetii
Embutidos, queijos ou saladas: associados com Listeria
Futas, vegetais ou sucos de frutas não pasteurizados: associados com E coli produtora de toxina Shiga, Salmonella não tifoide, Cyclospora, Cryptosporidium, norovírus, hepatite A e Listeria
Ovos crus: Salmonella
Cogumelos: associados com a intoxicação por cogumelos.
Manuseio e armazenamento inadequado dos alimentos
Associados a um risco elevado de desenvolver e transmitir enfermidades causadas por alimentos.
Exemplos incluem:[1][17][20][25][26]
refrigeração e armazenamento inadequados (conservas caseiras)
não lavar tábuas de cortar alimentos e pias antes e depois de lavar frutas, verduras e legumes frescos
não separar produtos animais crus de frutas, verduras e legumes frescos na geladeira, ou ao transportá-los da loja para casa
não usar um termômetro para carne para determinar se a mesma está cozida
não refrigerar os alimentos imediatamente
colocar grandes quantidades de comida quente na geladeira sem dividir em pequenas porções
descongelar o alimento na pia
usar geladeiras muito quentes (≥6°C [43°F]) para o armazenamento seguro dos alimentos.
Populações específicas de pacientes que podem apresentar aumento do risco
Uma história de viagem ao exterior deve levantar a suspeita de infecções endêmicas na região da viagem.
Os idosos e as gestantes são mais vulneráveis às enfermidades transmitidas por alimentos e a uma doença mais grave que possa requerer hospitalização e que esteja associada a morbidade e mortalidade mais altas. Algumas doenças crônicas (por exemplo, diabetes e câncer) e o uso de medicamentos imunossupressores (por exemplo, corticosteroides, medicamentos com fator de necrose tumoral e quimioterapias) aumentam a vulnerabilidade do paciente a infecções oportunistas.[17][20][21] Os indivíduos com transtornos decorrentes do uso de bebidas alcoólicas e pessoas com doença hepática crônica (hemocromatose ou cirrose) têm risco elevado de infecções devidas ao Vibrio vulnificus presente em frutos do mar crus.[22] O uso de supressão do ácido gástrico foi associado a um risco aumentado de infecções entéricas.[27][28][29]
Muitos fatores de risco de intoxicação alimentar estão fortemente associados e podem ter um efeito sinérgico.[1]
Os sintomas podem sugerir o patógeno subjacente
As características e a frequência dos movimentos intestinais associados aos sintomas abdominais e sistêmicos e/ou vômitos sugerem o patógeno subjacente.
Em relação à diarreia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define 3 tipos clínicos:[43]
líquida aguda, que dura várias horas ou dias (inclui cólera)
aguda hemorrágica (disenteria)
persistente com duração de 14 dias ou mais.
A presença de sangue ou muco nas fezes indica invasão da mucosa intestinal ou colônica. A síndrome da proctite, observada com a shigelose, é caracterizada por tenesmo, desconforto retal e movimentos intestinais dolorosos frequentes, contendo sangue, pus e muco. Fezes profusas com aspecto de "água de arroz" sugerem cólera ou um processo enterotoxigênico semelhante. Isso resulta em um grande volume de fezes líquidas na ausência de sangue, pus ou dor abdominal grave. Pode resultar em desidratação profunda.
É mais provável que as infecções parasitárias causem diarreia persistente que as causas bacterianas.[3] A esquistossomose é de difícil diagnóstico em decorrência do início insidioso dos sintomas, os quais frequentemente são vagos e dependem da espécie de parasita envolvido. Os pacientes podem apresentar sintomas hepatobiliares (por exemplo, dor abdominal, icterícia, dor no quadrante superior direito), sintomas pulmonares (por exemplo, tosse crônica, dor torácica, dispneia, hemoptise), ou sintomas intestinais (por exemplo, ulceração da mucosa, desnutrição).[5]
A dor abdominal geralmente é grave nos processos inflamatórios. Cãibras musculares abdominais dolorosas sugerem perda eletrolítica subjacente, como na cólera grave. A enterocolite por Yersinia e a esquistossomose podem mimetizar sintomas de apendicite ou de ileíte de Crohn (dor e rigidez no quadrante inferior direito), tal como a trematodíase.
Distensão abdominal por um período relativamente longo deve levantar suspeita de giardíase.
Quando os vômitos são o principal sintoma de apresentação, há suspeita de Staphylococcus aureus, Bacillus cereus, norovírus ou rotavírus. A ingestão de cogumelos venenosos ou metais pesados também pode se manifestar com náuseas e vômitos.[2]
Exame físico
A presença de taquicardia, taquipneia, pirexia e alteração no nível de consciência pode indicar doença grave. Os exames abdominais podem não ser dignos de nota ou demonstrar dor à palpação difusa ou localizada e, em alguns pacientes, o abdome pode estar distendido. Deve-se fazer uma avaliação da desidratação.
A OMS classifica o grau da desidratação em uma escala de 1-3:[43]
Sem desidratação; sem sinais ou sintomas
Desidratação moderada, indicada por um ou mais destes sinais: sede, comportamento inquieto ou irritável, diminuição da elasticidade da pele e olhos encovados
Desidratação grave, em que os sintomas se tornam mais intensos, indicada por um ou mais destes sinais: diminuição da consciência/letargia, olhos encovados, incapacidade de beber ou pouca ingestão de líquidos, pinçamento da pele com retorno de forma extremamente lenta (≥2 segundos).
A desidratação é menos provável com a diarreia inflamatória do que com a diarreia não inflamatória, pois a inflamatória geralmente é uma doença do cólon, não é mediada por toxina, e geralmente resulta em um menor volume de fezes.
Pode haver um amplo espectro de possíveis sintomas extraintestinais, entre eles cutâneos (por exemplo, manchas rosadas de infecção por Salmonella typhi ou eritema nodoso por Yersinia), musculoesqueléticos (por exemplo, artrite reativa, com ocorrência de 1 a 3 semanas após uma infecção por Salmonella, Shigella, Campylobacter e Yersinia) e manifestações neurológicas (por exemplo, diplopia, redução do tônus muscular e fala indistinta observadas no botulismo).
Pacientes com esquistossomose podem apresentar características de cólica biliar, coléstase, colelitíase, abscesso hepático ou hepatite.[5] A esquistossomose ectópica pode incluir manifestações no sistema nervoso central, coração, órgãos reprodutores, baço, vasos sanguíneos ou pele.
Se não puder ser fornecida uma amostra fecal, pode-se realizar um exame de toque retal para examinar se há sangue oculto e obter um swab retal para cultura.
Exames laboratoriais
No geral, a avaliação laboratorial não é necessária em pacientes com doença leve e não complicada, que geralmente é autolimitada.
A investigação laboratorial é indicada para a doença grave (por exemplo, sangue nas fezes, febre, diarreia que causa desidratação); para os pacientes com alto risco de doença grave; quando há suspeita de causas não infecciosas (toxinas ou químicos); ou quando a identificação do patógeno é necessária para orientar o tratamento ou os esforços de saúde pública.[1][40]
Os testes iniciais devem incluir:
Creatinina sérica e eletrólitos: a fim de se descartarem anormalidades eletrolíticas e disfunção renal em todos os pacientes com evidências de desidratação moderada ou grave, e nos pacientes com vômitos ou diarreia intensos ou sintomas sem melhora após 24 horas. Suspeita de síndrome hemolítico-urêmica quando houver presença de uremia.
Hemograma completo com diferencial: em pacientes que apresentam sangue nas fezes, febre, suspeita de patógenos invasivos (por exemplo, E coli produtora da toxina Shiga [por exemplo, O157:H7]) e manifestações extra-gastrointestinais. Ajuda a avaliar a resposta inflamatória e o grau de hemoconcentração e pode detectar evidências de síndrome hemolítico-urêmica quando houver suspeita de E coli produtora da toxina Shiga.
Microscopia das fezes:
para leucócitos e eritrócitos em pacientes com sangue nas fezes, febre, suspeita de patógenos invasivos (por exemplo, E coli produtora da toxina Shiga [por exemplo, O157:H7]) e quando outros diagnósticos forem considerados (por exemplo, doença inflamatória intestinal, colite isquêmica ou infecciosa) e com sintomas de 3 dias ou mais.
também inclui o exame das fezes em busca de ovos e parasitas (incluindo ovos de trematódeo), realizado em todas as amostras fecais.
a microscopia de campo escuro pode ser incluída para identificar Vibrio cholerae, se houver suspeita.
Coprocultura:
As diretrizes recomendam exame de fezes para Salmonella, Shigella, Campylobacter, Yersinia, Clostridioides difficile, E coli produtora de toxina Shiga e Entamoeba nos indivíduos com diarreia acompanhada de febre, fezes com sangue ou muco, cólicas ou sensibilidade abdominal grave ou sinais de sepse.[40]
Testes para organismos adicionais podem ser considerados a depender do quadro clínico.[3] O teste para Yersinia enterocolitica deve ser realizado nos indivíduos com dor abdominal persistente e em pessoas com febre e risco epidemiológico de yersiniose.[40] Em indivíduos que também apresentam grande volume de fezes com aspecto de "água de arroz" ou exposição a águas salgadas ou salobras, consumo de frutos do mar crus ou malcozidos, ou viagem a regiões endêmicas para cólera até 3 dias antes do início da diarreia, examine amostras de fezes para espécies de vibriões.[40]
Testes sorológicos nas fezes e exames para toxinas podem ajudar a diagnosticar o tipo de bactéria produtora da toxina Shiga, e também qual toxina está sendo produzida. O teste para Yersinia normalmente envolve a testagem sorológica com repetição do nível 2 semanas depois, mas recomenda-se consulta com um infectologista local.
Outros exames a serem considerados:
Reação em cadeia da polimerase: alguns centros estão migrando para o sequenciamento por reação em cadeia da polimerase para detectar várias infecções bacterianas, virais e parasitárias (por exemplo, Campylobacter, Salmonella, E coli produtora de toxina Shiga O157, Giárdia, Cryptosporidium).[3][44][45] Útil para detectar vírus, como norovírus, e para diferenciar as espécies de Entamoeba patogênicas das não patogênicas.[3][46]
Teste para toxina de Clostridioides difficile (antes conhecida como Clostridium difficile): para descartar diarreia associada a C difficile.
Hemocultura: se o paciente estiver febril (por exemplo, temperatura >38.4 °C [>101 °F]) e houver sinais de sepse (por exemplo, taquicardia, hipotensão, enchimento capilar lentificado, taquipneia, confusão mental aguda, diminuição do débito urinário), deve ser realizada uma hemocultura a fim de se descartar bacteremia. Também recomendada para os indivíduos imunocomprometidos, pessoas com sinais de infecção sistêmica, e quando houver suspeita de febre entérica.[40] Pode ser difícil diferenciar os sinais de sepse dos sinais de desidratação grave. Consulte Sepse em adultos.
Testes da função hepática (TFHs): para distinguir a intoxicação alimentar da colecistite aguda ou hepatite aguda.
Sorologia para hepatite A e E: quando houver evidências de enzimas hepáticas alteradas.
Amilase ou lipase séricas: devem ser solicitadas se houver dor abdominal intensa, para descartar pancreatite aguda. A testagem da lipase sérica é preferível à da amilase sérica, mas depende da disponibilidade local.[47][48]
Testes do antígeno fecal: estão melhorando o diagnóstico de doenças como Giardia e Cryptosporidium.
Teste do barbante (enteroteste): considerado caso a microscopia das fezes não consiga diagnosticar Giárdia e caso o teste para o antígeno seja negativo ou esteja indisponível. Engole-se uma cápsula com um barbante, com a extremidade livre do barbante presa na bochecha do paciente. A cápsula se dissolverá e o barbante passará pelo duodeno, onde será deixado por 4 a 6 horas antes de ser removido. O barbante poderá então ser examinado em busca de trofozoítos. Em alguns centros, a reação em cadeia da polimerase pode ser usada para diagnosticar Giárdia.
Consideração do diagnóstico diferencial
Os sintomas iniciais de diarreia, vômitos e dor abdominal podem ser comuns a vários outros diagnósticos diferenciais. Se o paciente desenvolver sintomas diferentes dos sintomas típicos de enfermidade transmitida por alimentos, ou se houver resposta inexistente ou inadequada ao tratamento, deve-se considerar um diagnóstico diferencial.
Achados que exigiriam investigações adicionais incluem:
Pacientes que apresentam icterícia e/ou dor abdominal significativa; deve-se realizar testes da função hepática para hepatite e coledocolitíase.
Suspeita de pancreatite e pacientes com dor abdominal significativa; particularmente, em caso de dor epigástrica com náuseas e vômitos e testes hepáticos anormais, deve-se solicitar amilase e lipase sérica. O exame de lipase sérica é usado preferencialmente em vez da amilase sérica.[47][48]
Outras causas de dor/distensão abdominal com diarreia devem ser consideradas, como doença inflamatória intestinal (requer hemograma completo, proteína C-reativa, radiografia abdominal, sigmoidoscopia/colonoscopia com biópsias e radiologia do intestino delgado), colite isquêmica (requer uma sigmoidoscopia/colonoscopia com biópsias e imagens transversais), doença celíaca (descartar com anticorpo antiendomísio/transglutaminase tecidual, além de endoscopia digestiva alta com biópsias dos quadrantes D1 e D2) e diarreia associada a C difficile (descartar com o teste para toxina nas fezes).
Se houver história ou profissão (por exemplo, creche, instituição asilar) que sugira exposição, ou se os testes da função hepática estiverem anormais, indica-se um screening para hepatite A.
Se houver sinais de botulismo (paralisia de nervos cranianos, fraqueza óculo-bulbar e paralisia flácida simétrica descendente na ausência de febre), secreções séricas, das fezes ou gástricas, ou amostras de alimentos devem ser enviados para detecção da toxina.[49] Não aguarde os resultados dos testes antes de administrar antitoxina botulínica se o paciente estiver sintomático e houver suspeita de botulismo.[49]
Exames de imagem/endoscopia/patologia
Os exames de imagem e os estudos endoscópicos não são necessários em doenças leves e não complicadas e em pacientes cuja doença está se resolvendo ou melhorando.
Deve-se solicitar uma série de exames abdominais com urgência para pacientes com dor intensa ou sintomas obstrutivos, ou quando houver suspeita de perfuração.
A sigmoidoscopia é considerada nos pacientes com diarreia sanguinolenta nos quais não tiver sido identificado nenhum patógeno entérico, com diarreia hemorrágica que persiste ou aumenta em gravidade, e nos pacientes cujo quadro clínico e resultados dos exames forem incompatíveis com um diagnóstico de enfermidade transmitida por alimentos. A sigmoidoscopia pode ser útil para diagnosticar doença inflamatória intestinal, diarreia associada a antibióticos, shigelose e disenteria amebiana. É necessário obter uma biópsia do tecido, embora raramente seja útil, pois normalmente demonstra apenas resposta inflamatória aguda. A biópsia pode diferenciar a doença inflamatória intestinal da enterite infecciosa aguda ou da colite pela presença de alterações arquiteturais de criptas, como ramificações ou escassez das criptas. No entanto, essas características levam várias semanas para se desenvolverem, e é pouco provável que estejam presentes em uma colite infecciosa. A microscopia eletrônica do tecido biopsiado é útil quando existe suspeita de parasitas intracelulares (Cryptosporidium ou Cyclospora cayetanensis). A colonoscopia deve ser reservada para os pacientes nos quais a sigmoidoscopia não produzir um diagnóstico, ou para oa pacientes com sintomas persistentes ou que não apresentarem resposta ao tratamento inicial.
A endoscopia digestiva alta com aspirado duodenal, com ou sem biópsia, é considerada para os pacientes imunocomprometidos, que estiverem recebendo quimioterapia, e os pacientes com sintomas persistentes e graves com duração de mais de 5 dias, e aqueles que não responderem bem ao tratamento inicial. O aspirado duodenal é invasivo, mas pode ser usado para diagnosticar infecção por Giárdia, Strongyloides, Cystoisospora ou microsporídia quando os outros testes não conseguirem revelar o diagnóstico.[40]
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