Abordagem
O tratamento da esferocitose hereditária (EH) geralmente depende da gravidade da hemólise e do grau de anemia, mas é de suporte para a maioria dos pacientes.[5]
Transfusões de sangue podem ser indicadas durante a primeira infância e períodos de hemólise aumentada ou crise aplástica. Não há um valor de corte da hemoglobina para estabelecer quando a transfusão de sangue é indicada, mas a decisão deve ser baseada no declínio dos valores basais da hemoglobina e nos sintomas de anemia.
Pacientes devem ser encaminhados a um hematologista quando houver suspeita de EH para um diagnóstico definitivo, acompanhamento de rotina e tratamento.
Critérios de gravidade
A EH pode ser clinicamente classificada de acordo com a gravidade da anemia e dos sintomas, e tratada adequadamente.[1]
Traço
Hemoglobina: normal
Reticulócitos: <3%
Bilirrubina: <17 micromoles/L (<1 mg/dL)
Esplenectomia: não é necessária
Leve
Hemoglobina: 110 a 150 g/L (11-15 g/dL)
Reticulócitos: 3% a 6%
Bilirrubina: 17 a 34 micromoles/L (1-2 mg/dL)
Esplenectomia: geralmente não é necessária
Moderado
Hemoglobina: 80 a 120 g/dL (8-12 g/dL)
Reticulócitos: >6%
Bilirrubina: >34 micromoles/L (>2 mg/dL)
Esplenectomia: pode ser necessária antes da puberdade
Grave
Hemoglobina: <60 a 80 g/dL (<6-8 g/dL)
Reticulócitos: >10%
Bilirrubina: >51 micromoles/L (>3 mg/dL)
Esplenectomia: necessária, protelada até >6 anos de idade se possível
A avaliação da gravidade da EH deve ser realizada quando o paciente estiver bem. Os sinais e sintomas podem variar durante a evolução da doença. Por exemplo, após infecção aguda por parvovírus B19, pacientes podem desenvolver crise aplástica.[17] O vírus ataca diretamente os precursores eritroides na medula óssea resultando em aplasia eritrocitária por cerca de 10 dias. O valor da hemoglobina é geralmente entre 30 e 60 g/L (3-6 g/dL). A contagem de reticulócitos é <1%. Durante a fase de recuperação, a contagem de reticulócitos aumenta, e como consequência da recuperação de uma crise aplástica, geralmente desenvolve-se uma imunidade permanente. Esta infecção pode revelar uma EH não diagnosticada até o momento em uma família.
Bem mais comuns, mas menos graves que os episódios aplásticos, são as crises hiper-hemolíticas, que causam um episódio de aceleração do processo hemolítico normal. Os episódios geralmente acompanham infecções virais inespecíficas, nas quais o sistema reticuloendotelial sofre hiperplasia com um aumento adicional do baço. Em contraste à crise aplástica, a hemoglobina (Hb) está geralmente no intervalo de 50 a 80 g/L (5-8 g/dL) (ou até mais alta durante episódios mais leves), a contagem de reticulócitos está elevada, e o paciente apresenta-se mais ictérico que o normal. Pode haver uma esplenomegalia aguda e significativa com dor abdominal no quadrante superior esquerdo e sintomas de saciedade precoce. O baço geralmente regride para o tamanho prévio entre episódios.
Período neonatal (<28 dias de idade)
Quando a EH é diagnosticada no período neonatal é provável que seja mais grave, com até 76% dos neonatos atingidos necessitando de uma ou mais transfusões durante os primeiros 6 a 12 meses de vida, apesar de frequentemente apresentarem valores de Hb normais logo após o nascimento.[27] Neonatos frequentemente não são capazes de manter uma Hb apropriada durante os primeiros meses de vida. Isso ocorre devido à hemólise contínua e a uma incapacidade de criar uma resposta reticulocitária apropriada durante o nadir fisiológico da Hb (que ocorre às 8-12 semanas de vida). Transfusões de eritrócitos podem ser necessárias durante esse período para manter uma Hb de 70 a 80 g/L (7-8 g/dL). Isso pode ser necessário até que a contagem de reticulócitos melhore e a criança consiga manter uma concentração de Hb apropriada sem transfusão. A necessidade de transfusão no início da vida não parece predizer a gravidade da doença ou a necessidade de transfusões regulares contínuas após o primeiro ano de vida.[27] Suplementação de ácido fólico também pode ser fornecida.
A icterícia neonatal ocorre em cerca de 50% dos pacientes com EH. A icterícia tipicamente ocorre nas primeiras 24 horas de vida e os níveis de bilirrubina podem alcançar níveis em que o tratamento com fototerapia e/ou exsanguineotransfusão é indicado. As diretrizes atuais para icterícia neonatal devem ser seguidas para se determinar uma terapia adequada.[28] Consulte Icterícia neonatal.
Bebês (>28 dias de idade), crianças e adultos: esferocitose hereditária (EH) grave
Esplenectomia geralmente é considerada o tratamento de primeira escolha em pacientes com EH grave.[5][29][30]
Os pacientes devem ser tratados com transfusões para a anemia sintomática até que um momento seja considerado adequado para a realização da esplenectomia. Após o período neonatal, a maioria dos pacientes pode tolerar um valor de Hb tão baixo quanto 60 g/L (6 g/dL) sem a necessidade de transfusões regulares. Cuidados de suporte com transfusões eritrocitárias podem ser necessários, particularmente se infecção por parvovírus B19 causar crise aplástica, ou durante episódios de crises hiper-hemolíticas.
Procura-se evitar a esplenectomia cirúrgica até os 6 anos de idade para reduzir o risco de sepse pós-esplenectomia. No entanto, pacientes com anemia muito grave que necessitam de transfusões regulares podem ser candidatos à esplenectomia com uma idade mais jovem (geralmente não antes dos 2 anos de idade).
Em associação com outras terapias, os pacientes com hemólise significativa (por exemplo, uma contagem de reticulócitos >5%) podem beneficiar da suplementação com ácido fólico para prevenir a anemia megaloblástica. Não há estudos que estabeleçam as boas práticas.
Redução do risco de sepse
A sepse pós-esplenectomia continua sendo um risco significativo apesar das precauções adequadas.[29] Sepse generalizada decorrente de Streptococcus pneumoniae foi reconhecida há décadas, tendo seu pico em crianças pequenas nos primeiros anos após a esplenectomia.[31][32][33][34] O risco de sepse persiste por toda a vida. A vacinação pré-esplenectomia e os antibióticos pós-esplenectomia reduzem o risco, mas não o eliminam.[30][35] CDC: ACIP vaccine recommendations and guidelines Opens in new window
Vacinação
Os pacientes submetidos à esplenectomia devem receber vacinas contra S pneumoniae, Haemophilus influenzae tipo b e Neisseria meningitidis.[35][36][37] CDC: ACIP vaccine recommendations and guidelines Opens in new window
São recomendadas três vacinas contra a doença pneumocócica: duas vacinas pneumocócicas conjugadas (PCV15 e PCV20) e uma vacina pneumocócica polissacarídica (PPSV23). A escolha da vacina pneumocócica depende da idade do paciente (idades mínimas: 6 semanas [PCV15], [PCV 20]; 2 anos [PPSV23]) e do estado clínico.[37][38][39]
Consulte os cronogramas locais para recomendações de vacinação contra pneumococos (e orientações atualizadas) nos pacientes submetidos à esplenectomia.[38][39][40] UK HSA: UK immunisation schedule: the green book, chapter 11 Opens in new window
As crianças com asplenia anatômica ou funcional devem ser vacinadas com a vacina meningocócica quadrivalente conjugada; aqueles com idade ≥10 anos também devem receber a vacina meningocócica do sorogrupo B.
Para a esplenectomia eletiva as vacinações devem ser administradas pelo menos 2 semanas antes da cirurgia, se possível.[36] No entanto elas também são efetivas quando administradas após a esplenectomia.
As vacinas devem ser administradas de acordo com os esquemas de vacinação recomendados e no pré-operatório, conforme necessário. CDC: Immunization schedules Opens in new window UK HSA: UK immunisation schedule: the green book, chapter 11 Opens in new window
Procedimento cirúrgico
A esplenectomia é melhor quando realizada por laparoscopia, uma vez que esta está associada a menos dor e a uma melhora mais rápida que a laparotomia, mas isso dependerá dos especialistas e equipamentos locais. Uma alternativa à esplenectomia completa é a remoção de parte do baço com a intenção de deixar uma parte suficiente para preservar a função imunológica.[41] Isso apresenta algumas limitações e, na ausência de estudos comparativos convincentes, continua sendo um procedimento investigativo.[42]
Tratamento de cálculos biliares
Os cálculos biliares são comuns na EH e podem estar presentes na primeira década, aumentando com a idade para até 50% aos 50 anos de idade.[43] Alguns autores recomendam rastreamento regular para detecção de cálculos biliares, mas não há estudos para dar suporte a isso.[43]
Uma ultrassonografia da vesícula biliar deve ser realizada antes da esplenectomia. Se houver cálculos sintomáticos no momento da esplenectomia, a vesícula biliar é removida simultaneamente. Se cálculos biliares assintomáticos forem detectados, as opções são as seguintes:
Esplenectomia isoladamente
Remoção dos cálculos deixando a vesícula biliar (colecistostomia) e esplenectomia, baseando-se no fato de que o risco de formação de cálculos é removido com a esplenectomia
Colecistectomia (em associação com a esplenectomia)
Cálculos biliares não serão formados após uma esplenectomia bem-sucedida.
Pós-esplenectomia
Penicilina profilática deve ser administrada duas vezes ao dia por pelo menos 3 anos após a esplenectomia, e alguns médicos defendem a profilaxia vitalícia com penicilina.[35] As diretrizes variam de um país para o outro e não há dados claros para guiar a prática.[16]
O risco de infecções generalizadas pós-esplenectomia varia, e deve-se oferecer profilaxia antibiótica vitalícia àqueles com maior risco. Por exemplo, pacientes com mais de 50 anos de idade, aqueles com resposta inadequada documentada à vacinação, história de doença pneumocócica invasiva prévia ou neoplasia hematológica subjacente, particularmente se houver imunossupressão contínua. Os pacientes devem carregar uma provisão de antibióticos adequados para uso emergencial. Se a penicilina não for usada (por exemplo, em regiões com cepas resistentes documentadas), um antibiótico alternativo para proteger contra infecção pneumocócica pode ser adequado. Amoxicilina tem sido recomendada, e pessoas alérgicas à penicilina podem trocá-la por eritromicina.[35] O ácido fólico não é necessário após a esplenectomia.
Bebês (>28 dias de idade), crianças e adultos: EH leve a moderada
O tratamento da EH leve a moderada geralmente é de suporte, pelo menos durante a primeira infância.
Transfusões eritrocitárias podem ser necessárias, particularmente se infecção pelo parvovírus B19 resulta em crise aplástica ou durante episódios de crises hiper-hemolíticas. Pacientes com probabilidade de beneficiarem de esplenectomia incluem os com anemia sintomática moderada; aqueles com crises hiper-hemolíticas recorrentes; e pacientes que necessitam de transfusões múltiplas.
Em pacientes com doença mais leve, os riscos e benefícios da esplenectomia devem ser cuidadosamente considerados individualmente.[29] A esplenectomia pode ser justificada na EH leve com problemas relacionados a uma qualidade de vida reduzida, como icterícia incômoda, fadiga, baixo crescimento ou baixo desempenho escolar.
Os protocolos de vacinação pré-esplenectomia são os mesmos que os descritos para pacientes com EH grave. O tratamento de cálculos biliares em pacientes que serão submetidos à esplenectomia é o mesmo descrito para aqueles com a doença grave. Há alguma evidência de que nem sempre é necessário remover o baço ao mesmo tempo em que se realiza cirurgia para cálculos biliares sintomáticos; cada caso deve ser avaliado isoladamente.[44]
A suplementação com ácido fólico é a mesma prescrita para EH grave antes da esplenectomia.[5] Ela provavelmente é desnecessária na doença leve já que muitos alimentos são hoje suplementados com ácido fólico, e a deficiência é muito rara em países desenvolvidos. O ácido fólico não é necessário após a esplenectomia.
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