Abordagem
A triquinelose é uma doença bifásica. Durante a fase sistêmica (parenteral), a presença de febre, mialgia e edema periorbital, em associação com uma história recente de consumo de carne crua ou malcozida, deve levantar suspeita de triquinelose. A probabilidade da presença de triquinelose aumenta se >1 pessoa for afetada em uma residência ou na comunidade, após o consumo da mesma fonte de carne.
É muito improvável que a triquinelose seja reconhecida e diagnosticada durante a fase gastrointestinal (entérica) da doença, já que os sintomas desse estágio inicial são inespecíficos.[34]
A International Commission on Trichinellosis recomenda uma abordagem gradual para a identificação de casos da doença, incluindo:[38]
Buscar por sinais típicos, como diarreia, febre, edema facial, mialgia, eosinofilia (>1000/mm³) e elevação de enzimas musculares e/ou IgE total
Identificar se o caso é isolado ou parte de um surto mais amplo
Determinar a gravidade da doença (desprezível, leve, moderada ou grave) com base na sintomatologia
Detectar complicações (cardíacas, neurológicas, oculares, respiratórias ou digestivas)
Hospitalizar casos graves e complicados
Alertar as autoridades de saúde pública (por exemplo, nos EUA, a triquinelose é uma doença de notificação compulsória).[39]
Quadro clínico
O período de incubação para a triquinelose após a ingestão de carne crua ou malcozida é diretamente proporcional à carga parasitária adquirida, variando de 1-2 dias (fase enteral) a 2-8 semanas (fase parenteral) ou mais, dependendo da dose infectiva.[9]
O quadro clínico pode variar de infecção assintomática a doença fatal.[40] No entanto, uma recuperação completa dentro de 6 semanas a 6 meses é a evolução mais comum. A Trichinella spiralis é responsável pelos casos mais graves.[41] As manifestações clínicas da triquinelose se desenvolvem e se alteram em semanas à medida que a infecção progride.[34][Figure caption and citation for the preceding image starts]: Representação gráfica das manifestações clínicas de acordo com a semana de infecçãoExtraído de: Resumo da seção de ciência básica e informações clínicas (Summary of Basic Science and Clinical Info) do site The Trichinella Page (http://www.trichinella.org); usado com permissão do Dr. Dickson Despommier [Citation ends].
Fase gastrointestinal (entérica) inicial
Ocorre dentro de poucos dias após a ingestão do parasita.
Manifesta sintomas gastrointestinais, como dor abdominal, náuseas, vômitos e diarreia.
Fase sistêmica (parenteral) subsequente
As manifestações mais comuns são febre, mialgia e edema facial ou periorbital bilateral simétrico.
A febre é um sinal precoce e se manifesta em até 90% dos casos.[42] Pode ocorrer febre de >40 °C (104 °F) nas primeiras 24 horas, mas temperaturas mais baixas podem persistir por semanas.[43]
Mialgias são proeminentes e afetam predominantemente músculos ativos, como os músculos oculomotores, língua e músculos respiratórios. Há dor ao toque nos músculos e fraqueza muscular associada.[43] A mialgia pode ser tão intensa a ponto de impedir que o paciente se mova, além de prejudicar a capacidade de mastigação, deglutição, respiração ou fala, dependendo dos músculos envolvidos. O grau de intensidade da mialgia geralmente está correlacionado com o grau de eosinofilia.[44]
Edema facial, afetando particularmente as pálpebras, também pode ser muito intenso, de modo que a face se torna irreconhecível.[45]
São comuns conjuntivites e hemorragias subconjuntivais, hemorragias em estilhas na retina e subungueais, fraqueza muscular intensa, apatia, um estado semelhante à paralisia, cefaleia intensa e insônia.[6][46]
Outras características oculares incluem edema palpebral, quemose, visão prejudicada, dor ocular e paralisia dos músculos oculares.[32] Pode também haver presença de midríase, um marcador de doença neurológica grave e de morte.[47]
As características neurológicas incluem hiporreflexia, zumbido, vertigem, surdez, afasia e convulsões.[6][7]
As manifestações cutâneas incluem prurido, sudorese e sensação de insetos rastejando debaixo da pele. Pode ocorrer um exantema maculopapular inespecífico (muito provavelmente decorrente da vasculite induzida pelo parasita).[48]
Complicações importantes como miocardite e encefalite podem ocorrer na fase sistêmica.[49] A miocardite pode se manifestar com dor torácica, palpitações, dispneia e edema dos membros inferiores, secundário à insuficiência cardíaca congestiva.
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Triquinelose manifestada por hemorragias em estilhas sob as unhas dos dedosCentros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC)/Dr. Thomas F. Sellers/Emory University [Citation ends].
Triquinelose crônica
A existência de triquinelose crônica, que ocorre após a doença aguda, ainda é controversa entre os especialistas.[50] Entretanto, alguns pacientes podem apresentar dor crônica, astenia, diaforese excessiva, sensação crônica de insetos rastejando debaixo da pele e, raramente, conjuntivite e psicose, durante meses a anos após a infecção aguda.
Esses pacientes provavelmente terão uma história médica pregressa de triquinelose confirmada.
Triquinelose em populações especiais
Há relatos anedóticos da doença em pacientes imunossuprimidos, e a gravidade não parece diferir entre os casos descritos de pacientes imunossuprimidos e pacientes imunocompetentes.
Em gestantes, a triquinelose pode provocar aborto espontâneo e parto prematuro. A infecção pode ser adquirida congenitamente, embora a maioria dos bebês nascidos de mulheres infectadas não seja afetada.[51]
A infecção é mais leve em crianças. Isso é decorrente de uma carga parasitária mais baixa, secundária à ingestão de porções menores de carne contaminada, e devido à ausência de uma forte resposta alérgica.[52]
Exames de sangue iniciais
Na apresentação, todos os pacientes devem receber um perfil sanguíneo completo, inclusive hemograma completo e enzimas musculares. Há presença de leucocitose, eosinofilia e elevação de enzimas musculares na triquinelose.
É também aconselhável a avaliação da bioquímica sérica e da imunoglobulina E (IgE).
Hemograma completo
Leucocitose: varia de 12,000 a 18,000 células/mm³.
Eosinofilia: varia de 1000 a 3000 células/mm³, mas pode chegar a 8000 células/mm³.[2] Os eosinófilos compõem 10% a 50% da leucocitose. O grau de eosinofilia está correlacionado com o número de vermes adultos que causam a infecção e, consequentemente, com o número de larvas neonatas que entram no sangue.[2] Uma baixa contagem de eosinófilos é um achado raro e, juntamente com uma súbita queda nessa contagem, constitui um sinal prognóstico desfavorável que pode estar associado ao óbito.[46][53]
Enzimas musculares
Creatina quinase, aldolase, lactato desidrogenase e transaminases apresentam níveis elevados em decorrência da invasão parasitária do músculo esquelético e da destruição muscular.[2]
Há uma correlação entre o grau da elevação de enzimas musculares e o nível de eosinofilia.[54]
Eletrólitos
Hipocalemia é um achado frequente.[54]
Albumina
Hipoalbuminemia é um achado frequente e resulta em um aumento do conteúdo de água extracelular e em edema subsequente.[2]
Anticorpos IgE
Altamente elevados.
Sugere-se que o aumento da IgE represente uma reação protetora por parte do hospedeiro humano.[55]
Exames confirmatórios
Sorologia de anticorpos
A International Commission on Trichinellosis recomenda o método ELISA com antígenos excretores/secretores das larvas musculares, para fins de rastreamento.[57]
Anticorpos contra espécies de Trichinella se desenvolvem dentro de 3 a 5 semanas após a infecção.[58] Os níveis de pico pode ser observados no segundo ou terceiro mês após a infecção, seguidos de uma queda.[34] Geralmente positiva na fase sistêmica (parenteral) da doença e no momento em que os sintomas clínicos se manifestam, podendo permanecer positiva por anos.[54]
Ocasionalmente, pode ser negativa durante a fase sistêmica, mas se houver uma forte suspeita clínica de triquinelose, a sorologia deverá ser repetida, pois o fenômeno de soroconversão tem grande valor diagnóstico.
Os resultados positivos obtidos pelo ELISA devem ser confirmados por Western blot.[57]
Biópsia muscular
Técnica usada com menos frequência na prática clínica.[34]
A sensibilidade é maior 4 semanas após a infecção, quando a maioria dos pacientes apresenta uma melhora nos sintomas. Portanto, pode não ser eticamente justificável realizar um procedimento tão invasivo neste momento.
Em humanos, os músculos mais comumente afetados são os extraoculares; o bíceps e os músculos da mandíbula, pescoço, coluna lombar e diafragma. Entretanto, tradicionalmente as amostras da biópsia são obtidas do músculo deltoide.
A amostra da biópsia pode ser examinada pela compressão entre duas lâminas, pela digestão com solução de HCl a 1% e pepsina a 1% (liberando assim as larvas dos músculos) ou por inspeção histopatológica regular para a detecção das larvas.[2]
Se for realizada muito precocemente na fase sistêmica, o resultado poderá ser negativo.
Útil para determinar o tipo de espécie de Trichinella e a carga larval muscular.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Larva da Trichinella spiralis em uma célula protetora no músculoExtraído de: Resumo da seção de ciência básica e informações clínicas (Summary of Basic Science and Clinical Info) do site The Trichinella Page (http://www.trichinella.org); usado com permissão do Dr. Dickson Despommier [Citation ends].
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Cistos da Trichinella spiralis incorporados em um espécime de tecido muscular, em um caso de triquineloseCDC [Citation ends].
Investigações adicionais
Os testes a seguir não são realizados rotineiramente, mas podem ser considerados em situações particulares.
Eletromiografia
Pode ser mais útil para confirmar um diagnóstico alternativo (como a polimiosite) que o diagnóstico de triquinelose.
O aumento da contratilidade do músculo estriado pode ser detectado por eletromiografia. Entretanto, os achados são inespecíficos e raramente ajudam a confirmar o diagnóstico de triquinelose.
Foram relatadas redução da amplitude do potencial e interferência da condução elétrica.[59]
Alterações eletromiográficas podem persistir por anos após a infecção inicial.[59]
RNM ou TC cranioencefálica e análise do líquido cefalorraquidiano
Podem ser consideradas na suspeita de casos de neurotriquinelose. Devido ao tamanho diminuto e à ausência de calcificação nos primeiros estágios da doença, as larvas de Trichinella no músculo não podem ser detectadas por radiologia convencional.
Na neurotriquinelose, pequenas áreas hipodensas, provavelmente representando infartos secundários à vasculite induzida pelo parasita, podem ser detectadas no parênquima cerebral na TC ou na RNM.[6][60]
Em casos de comprometimento do sistema nervoso central, a análise do líquido cefalorraquidiano pode revelar elevações discretas em linfócitos, eosinófilos e/ou proteína.[61]
Eletroencefalograma
Pode ser considerado em casos suspeitos de triquinelose complicada por encefalite, particularmente para descartar outras etiologias.
Pode exibir lentificação difusa elétrica em casos de triquinelose complicada por encefalite.
eletrocardiograma (ECG)
Deve ser realizado em casos suspeitos de miocardite por Trichinella.
A miocardite por Trichinella é caracterizada por várias alterações no ECG, incluindo alteração inespecífica da repolarização ventricular, representada por anormalidades na onda ST-T e por arritmias (bloqueio do ramo ou taquicardia sinusal). De forma menos comum, são observadas outras bradiarritmias e taquiarritmias, além de complexos QRS de baixa voltagem nas derivações dos membros.[62]
Urinálise, creatinina sérica e clearance da creatinina
Podem estar anormais e ajudar a identificar insuficiência renal em casos graves.[63]
Transaminases séricas
Pode ser realizado se houver suspeita de comprometimento hepático.[64]
Investigações em apresentação tardia
Em pacientes com triquinelose crônica, achados anormais na eletromiografia e anticorpos séricos positivos podem persistir durante anos após a infecção inicial.[50][65]
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