Abordagem
As síndromes de sobreposição formam um grupo diversificado de doenças que, em geral, se apresentam de modo subagudo com manifestações clínicas que podem incluir diferentes sistemas de órgãos. O padrão de comprometimento dos órgãos reflete os aspectos característicos das doenças reumáticas bem definidas que ocorrem simultaneamente.
História e exame físico
Em muitos pacientes, a manifestação de sintomas inespecíficos é comum muitos meses antes que o diagnóstico seja feito. Qualquer sistema de órgãos pode estar envolvido, e o padrão de comprometimento é definido pelas doenças reumáticas subjacentes ocorrendo simultaneamente. Nenhum sintoma da anamnese define qualquer uma das síndromes de sobreposição; deve haver suspeita do diagnóstico quando os pacientes apresentarem um conjunto de achados afetando vários sistemas de órgãos com características simultâneas de mais de uma doença reumática. Na maioria das síndromes de sobreposição, com exceção da doença mista do tecido conjuntivo (DMTC), a presença de poucas evidências limita a possibilidade de uma abordagem diagnóstica baseada em evidências, que são melhor consideradas no contexto de características clínicas específicas, perfis de autoanticorpos e imunogenética.
DMTC: O padrão característico de apresentação é relativamente bem definido pelos critérios diagnósticos e inclui aspectos sobrepostos de lúpus eritematoso sistêmico (LES), de esclerodermia, miosite e artrite reumatoide em um contexto de altos títulos de autoanticorpos para um antígeno nuclear definido, conhecido como ribonucleoproteína U1 (U1 RNP, também conhecida como RNP ou nRNP). As características clínicas são extremamente variáveis, envolvendo predominantemente artrite, fenômeno de Raynaud (FR), alterações cutâneas esclerodermatosas e miosite. Aproximadamente 90% dos pacientes com DMTC têm FR à apresentação. Doenças graves do sistema nervoso central e renal são manifestações raras.[6][12]
Síndrome antissintetase: esta síndrome forma um grupo distinto caracterizado pela presença de anticorpos direcionados contra várias enzimas aminoacil-tRNA sintetases, sendo a anti-Jo-1 a mais comum; observam-se características clínicas sobrepostas de miosite, artrite e doença pulmonar intersticial.[3]
Síndrome de polimiosite/esclerodermia (PM/Scl): Esta síndrome é caracterizada por aspectos sobrepostos de esclerodermia e polimiosite, por anticorpos anti-PM/Scl e pela presença do fenômeno de Raynaud (FR), inflamação de tendão e doença pulmonar intersticial.[2][4] Pode ocorrer esclerodactilia, mas as alterações cutâneas esclerodermatosas tronculares características da esclerose sistêmica estão ausentes.
O exame físico deve visar a identificação de padrões de comprometimento de sistemas de órgãos, com atenção especial para a detecção de achados clássicos de doenças reumáticas bem definidas, como esclerodactilia, sinovite, miopatia e erupções cutâneas típicas de LES. Muitos pacientes apresentam-se com linfadenopatia.
Manifestações musculoesqueléticas: Sintomas nas articulações estão presentes em quase todos os pacientes com DMTC e são sintomas manifestos comuns. Artrite franca desenvolve-se em 50% a 60% dos pacientes durante o acompanhamento. O padrão mais comum de comprometimento é a poliartrite de pequenas articulações, mas as deformidades são incomuns. Na DMTC, mãos edemaciadas são muito comuns à apresentação, podendo haver evolução do edema para a mão inteira. Esclerodactilia também é comum, mas tende a ocorrer como uma manifestação tardia da doença.[5] Mialgias ocorrem em 25% a 50% dos pacientes com DMTC, mas a miosite é menos comum, geralmente sem fraqueza evidente ao exame físico. Entretanto, a miosite é um componente chave dos pacientes com síndrome antissintetase. Nesse caso, os pacientes podem apresentar fraqueza (geralmente nos músculos proximais).
Manifestações pulmonares: a avaliação para doença pulmonar é importante, pois ela é a maior causa de morte em pacientes com DMTC.[6] O comprometimento pulmonar na DMTC acaba afetando até 66% dos pacientes.[13][14] Podem-se observar hipertensão pulmonar (em 20% a 25% dos pacientes) e doença pulmonar intersticial (em 50% dos pacientes). Entre os pacientes com síndrome antissintetase, a doença pulmonar intersticial é ainda mais comum, ocorrendo em 86% dos pacientes.[15][16] O exame físico pode revelar sinais de elevação nas pressões das cavidades cardíacas direitas e estertores bibasilares. Raramente ocorrem derrames pleurais.
Manifestações neurológicas: deve-se realizar um exame neurológico completo. Pode-se observar uma polineuropatia predominantemente sensorial que deve ser mais bem avaliada com estudos de condução nervosa e eletromiografia (EMG). Muito raramente, a neuralgia do trigêmeo pode ser a característica manifesta da DMTC, apresentando-se com dor neuropática ou anestesia ao longo da distribuição de 1 ou mais ramos do nervo trigêmeo. Doenças neuropsiquiátricas, incluindo-se psicose e convulsões, são manifestações raras da DMTC. Raramente na DMTC a cefaleia (decorrente de meningite asséptica) pode ser uma queixa à apresentação.
Manifestações cutâneas: lesões cutâneas podem ser evidentes em 50% a 60% dos pacientes. Aproximadamente 90% dos pacientes com DMTC apresentam-se com o FR.[6] Anormalidades à capilaroscopia periungueal (observação do padrão dos vasos sanguíneos sob baixa magnificação) demonstraram ter valor preditivo para uma doença reumática subjacente. A presença de capilares gigantes e desorganização da arquitetura normal com perda de vasos são padrões que podem sugerir esclerose sistêmica ou polimiosite subjacentes.[17][18] Na DMTC, eritemas malares e lesões discoides semelhantes às típicas do LES podem ser ocasionalmente observados. Pode-se observar acroesclerose com telangiectasias e ocasionalmente calcinose, mas alterações cutâneas esclerodermatosas tronculares são muito raras. Alterações cutâneas típicas de dermatomiosite, inclusive pápulas de Gottron e um rash heliotrópico, podem ocorrer na DMTC, mas nódulos de artrite reumatoide são raramente observados.[6] A alopecia também pode ser observada na DMTC.
Manifestações gastrointestinais: a doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) é comum na DMTC. Os pacientes com DMTC podem apresentar sintomas de alteração da motilidade esofágica, com sintomas de refluxo, disfagia ou regurgitação.
Investigações laboratoriais iniciais
Nenhum exame de sangue isoladamente ou em combinação com outros exames é diagnóstico. Os exames de sangue iniciais incluem os seguintes testes.
Achados inespecíficos, como anemia, leucopenia e hipergamaglobulinemia podem ser observados através de hemograma completo, dosagens de ureia e creatinina sérica, e marcadores inflamatórios como a velocidade de hemossedimentação (VHS) ou a proteína C-reativa. Os marcadores inflamatórios (VHS ou proteína C-reativa) podem ou não estar elevados.
Para a maioria dos pacientes, a dosagem de fatores antinucleares (FANs) é um exame inicial apropriado quando a avaliação clínica revela sintomas ou sinais sugestivos de uma doença reumática subjacente. Títulos de FANs são observados em quase todos os pacientes com DMTC, mas também estão presentes em outras condições, como o LES e a esclerodermia, e, portanto, não são diagnósticos para uma síndrome de sobreposição.
Os níveis do fator reumatoide e de anticorpos antipeptídeos citrulinados cíclicos (anti-CCP) devem ser medidos. Ambos são marcadores de artrite reumatoide e podem estar elevados em pacientes com a síndrome de sobreposição
As enzimas musculares podem estar elevadas nos pacientes nos quais a DMTC, a síndrome antissintetase ou a polimiosite sejam uma das doenças reumáticas. A enzima indicadora mais sensível é a creatina quinase.
Proteinúria significativa ou hematúria na urinálise é sinal de comprometimento renal.
Altos títulos de anticorpos anti-ribonucleoproteína U1 (U1 RNP) são um requisito para o diagnóstico de DMTC. A ausência de anticorpos anti-U1-RNP indica uma síndrome de sobreposição alternativa ou uma doença autoimune distinta.
Anticorpos para várias enzimas aminoacil-tRNA sintetases são característicos da síndrome antissintetase, sendo os anticorpos anti-Jo-1 os mais comuns.
Sorologia adicional de autoanticorpos
Quando há suspeita clínica de uma síndrome de sobreposição autoimune, com ou sem o achado inicial de um FAN positivo, devem-se considerar exames adicionais para avaliar a presença de marcadores sorológicos mais específicos para as doenças reumáticas. Na ausência de anticorpos anti-U1-RNP, os exames sorológicos fornecem evidências adicionais para uma variante subjacente da síndrome da sobreposição ou um processo autoimune alternativo.
Os anticorpos contra o ácido desoxirribonucleico de dupla fita (dsDNA) ou contra o antígeno de Smith podem sugerir LES; na DMTC, o antígeno de Smith é negativo, embora um subconjunto de pacientes com a doença possa ser positivo para anti-dsDNA.
Anticorpos anti-ScL 70, anticentrômero e anti-RNA (ácido ribonucleico) polimerase III, anti-Ku ou anti-PM/Scl sugerem a síndrome de sobreposição esclerodermia.
Os anticorpos anti-Ro (SS-A) e anti-La (SS-B) são avaliados para a síndrome de Sjögren coexistente.
Os anticorpos anti-Jo-1 são altamente específicos para síndromes antissintetase e são procurados nos pacientes com miosite.
Outros anticorpos antissintetase (entre eles PL7, PL12, OJ, EJ, KS, Ha e outros) podem estar presentes nas síndromes antissintetase, mas são menos comuns que o anti- Jo1.
O achado desses autoanticorpos é altamente sugestivo de suas doenças associadas, e as investigações adicionais devem, então, seguir os protocolos para essas condições.
Na ausência de um achado sorológico específico, alguns pacientes que não atendem aos critérios de uma doença bem definida devem permanecer classificados como tendo doença do tecido conjuntivo indiferenciada (DTCI). O diagnóstico só pode ser esclarecido ao longo de um acompanhamento para o desenvolvimento de achados clínicos ou sorológicos adicionais. Um estudo estimou que, dos pacientes inicialmente classificados como tendo DTCI, 64% mantiveram o diagnóstico em 1 ano e 47% em 5 anos de acompanhamento.[19] Outro estudo entre pacientes húngaros sugeriu que um terço dos pacientes com DTCI evoluiu para outro diagnóstico reumático, e que essa evolução ocorreu com maior probabilidade nos primeiros 2 anos de acompanhamento.[20]
Investigações adicionais
São necessárias investigações adicionais para definir o padrão e a gravidade do comprometimento dos órgãos.
Queixas de dispneia, tosse seca ou redução da tolerância ao exercício devem suscitar uma avaliação mais aprofundada do comprometimento pulmonar ou cardíaco por radiografia torácica, ECG e ecocardiografia. Testes de função pulmonar (TFPs) completos com espirometria, volumes pulmonares e capacidade de difusão, além de uma radiografia torácica, também são realizados. Uma tomografia computadorizada (TC) de alta resolução dos pulmões é mais sensível que a radiografia torácica para a doença pulmonar intersticial inicial, e deve ser considerada em pessoas com TFPs anormais que indiquem doença pulmonar restritiva. A TC de alta resolução também poderá ser realizada se houver redução do volume pulmonar ou do estado funcional. Se os achados da ecocardiografia sugerirem hipertensão pulmonar (por exemplo, pressão sistólica no ventrículo direito elevada), deverão ser considerados o encaminhamento para cateterismo cardíaco direito e uma avaliação completa.
Uma esofagografia baritada pode ser útil para investigar características condizentes com DRGE, incluindo alteração da motilidade e refluxo. Ela também é indicada quando os sintomas de pirose piorarem, ou não melhorarem, com tratamento adequado. Sintomas e sinais de disfagia podem exigir investigação com endoscopia digestiva alta.
Pacientes com polineuropatia devem ser melhor avaliados através de estudos da condução nervosa e EMG.
Em pacientes com sintomas de artralgia ou artrite, a radiografia simples das articulações afetadas pode mostrar evidências de inflamação, artrite não erosiva ou erosões ósseas.
A biópsia tecidual em geral não é realizada como parte da avaliação diagnóstica. Ocasionalmente, a suspeita clínica de comprometimento de um órgão em particular pode incentivar exames teciduais, como uma biópsia muscular para confirmar a natureza autoimune da miosite, uma biópsia pulmonar para caracterizar melhor os infiltrados pulmonares ou uma biópsia renal para avaliar a presença de doença glomerular mediada imunologicamente.
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