Abordagem

Crianças que apresentem sintomas urinários ou febre de origem desconhecida devem ser prontamente avaliadas para um diagnóstico de infecção do trato urinário (ITU).[39] A abordagem diagnóstica geral para as ITUs pediátricas é diferenciada por:

  • Idade do paciente

  • Gravidade da doença

  • História de anormalidades urogenitais subjacentes.

A infecção pode envolver o trato urinário superior ou inferior; ser complicada ou descomplicada; grave ou não grave; recorrente, de escape (breakthrough) ou uma reinfecção; atípica, assintomática ou sintomática. Consulte Classificação para obter mais informações.

Neonatos e lactentes com ≤2 meses de idade apresentam alto risco de infecção bacteriana grave e sepse.[1][40] Os sintomas são inespecíficos nessa faixa etária, o que dificulta a distinção da ITU em relação a outras causas de infecção bacteriana grave na avaliação inicial.[41] Essas crianças devem ser internadas no hospital para avaliação e a maioria deve receber antibioticoterapia parenteral empírica. Consulte Sepse em crianças para obter mais informações.

Crianças >2 meses de idade podem fazer primeiro a urinálise via teste de tira reagente, microscopia ou, se disponível, citometria de fluxo.[1]

O diagnóstico e o tratamento são frequentemente processos concomitantes. O tratamento empírico pode ser iniciado antes de a avaliação diagnóstica ser concluída, se houver alto risco de doença grave. Investigações adicionais podem depender da resposta à terapia inicial.

História

A história pode revelar fatores de risco fortemente associados à ITU, como idade <1 ano, sexo feminino ou menino não circuncidado, história pregressa de ITU, disfunção vesical e intestinal, refluxo vesicoureteral (RVU) e instrumentação do trato urinário.[5]

Com frequência, os neonatos apresentam sintomas muito inespecíficos, como doença febril indiferenciada, irritabilidade, vômitos ou má alimentação.[7] Uma aparência em geral ruim, manchas, sinais vitais instáveis, diminuição da atividade e ingestão oral inadequada indicam que suspeita de sepse. Menos comumente, neonatos com infecção do trato urinário podem apresentar icterícia de início tardio ou deficit de crescimento.

Em lactentes e crianças pequenas, é provável que a manifestação também seja inespecífica, incluindo febre, diarreia ou vômitos com desidratação ou deficit de crescimento. Os sintomas urinários nessa faixa etária incluem dor abdominal/no flanco, urina de odor desagradável e novo episódio de incontinência urinária.[7] Mesmo em casos de infecção bacteriana grave, os sinais e sintomas podem ser sutis.

Em crianças maiores (verbais) e adolescentes, os sintomas e sinais podem ser mais específicos para o sistema urinário e incluem disúria, urina com odor pútrido, urgência, polaciúria, incontinência urinária de novo episódio ou hematúria macroscópica.[7] Os sintomas sistêmicos, como febre, dor abdominal ou no flanco e vômitos, são altamente sugestivos de pielonefrite.

Informe-se sobre a atividade sexual em adolescentes. A relação sexual aumenta o risco de ITU em mulheres. Os sintomas de uretrite causada por infecções sexualmente transmissíveis podem mimetizar a ITU em ambos os sexos.

Exame físico

O exame físico é útil para detectar sinais de infecção do trato urinário e descartar outras possíveis causas dos sintomas do paciente.

Um exame físico completo é indicado em bebês e pacientes febris.

Em pacientes idosos, o abdome e os genitais devem ser examinados e os ângulos costovertebrais devem ser palpados. Massa vesical ou abdominal palpável, fluxo urinário fraco, baixo crescimento e pressão arterial (PA) elevada podem ser observados na uropatia obstrutiva ou doença renal crônica, e indicam ao médico a necessidade de considerar anomalias do trato urinário.

Pode-se observar irritação ou secreção vaginal em casos de vaginite (inclusive vaginite irritante), o que pode identificar o trato reprodutivo, em vez do trato urinário, como fonte dos sintomas, particularmente em bebês e crianças pequenas. Adesões labiais em meninas e fimose grave em meninos podem predispor a ITUs recorrentes.

Investigações iniciais

Urinálise

Teste inicial em crianças sintomáticas ≥2 meses.

A amostra uterina deve ser coletada o mais rápido possível, de preferência na consulta. Caso não seja possível, uma amostra deve ser coletada e devolvida em até 24 horas.[4] As amostras de urina devem ser coletadas antes de iniciar o tratamento com antibiótico, a menos que haja alto risco de doença grave.[4]

A amostra de urina é analisada com tira reagente para exame de urina, microscopia ou, se disponível, citometria de fluxo.[1]

A urina é examinada quanto a evidências de piúria (esterase leucocitária positiva/presença de leucócitos na microscopia) e/ou bacteriúria (nitritos/bactérias positivos visíveis após a coloração de Gram).

Os possíveis resultados da tira reagente são os apresentados a seguir.

  • Positivo para esterase leucocitária e nitrito: razão de probabilidade positiva 28:2.[42] Esse exame é melhor para diagnosticar a doença, com o melhor rendimento em crianças >2 anos de idade.[43] 

  • Positivo para esterase leucocitária ou nitrito: sensibilidade 92%, razão de probabilidade negativa 0.2.[42][44] Esse teste é melhor para descartar doenças. 

    • Positivo para nitrito isoladamente: sensibilidade de 58%, especificidade de 99%, razão de probabilidade+ 15.9, razão de probabilidade- 0.51.[42][44] Esse exame apresenta um alto valor preditivo positivo. Em crianças de todas as idades, os nitritos são altamente específicos para ITU.[45] Os nitritos são formados pela conversão de nitratos urinários em nitritos por bactérias gram-negativas. Em crianças com <2 anos, a sensibilidade dos nitritos é particularmente baixa (23%).[45] A formação de nitritos por bactérias requer que a urina seja mantida na bexiga por 4 a 6 horas, e as crianças pequenas costumam realizar micção com uma frequência maior que essa.[46] Os nitritos não estarão presentes em infecções com espécies enterocócicas ou estafilocócicas. Portanto, a ausência de nitritos não descarta ITU. 

    • Positivo para esterase leucocitária isoladamente: sensibilidade 84%, especificidade 77%, razão de probabilidade+ 5.5, razão de probabilidade- 0.26.[42][44] 

  • Negativo para esterase leucocitária e nitrito: deve-se investigar uma causa alternativa para os sintomas do paciente. No entanto, podem ocorrer resultados falsos negativos caso o paciente tenha sido exposto a antibióticos; nesse caso, uma amostra deve ser enviada para cultura.

Os possíveis resultados da microscopia são os apresentados a seguir.

  • Piúria (presença de leucócitos): sensibilidade de 78%, especificidade de 87%; razão de probabilidade- 0.27.[42][44] Piúria significativa é ≥10 leucócitos/mm³ em uma urinálise avançada ou ≥5 leucócitos por campo de grande aumento em uma amostra de urina centrifugada. O ponto de corte ideal para o diagnóstico de piúria varia de acordo com a concentração de urina em crianças de <24 meses, desde 3 leucócitos por campo de grande aumento na urina diluída até 8 leucócitos por campo de grande aumento na urina concentrada.[47] Outras condições inflamatórias ou a presença de cálculos renais podem causar piúria na ausência de ITU.[13]

  • Bacteriúria: sensibilidade de 88%, especificidade de 93%, razão de probabilidade+ 14.7, razão de probabilidade- 0.19.[42][44] A presença de qualquer bactéria na microscopia indica bacteriúria. As características de morfologia e coloração gram podem auxiliar na identificação precoce do organismo causador.

A citometria de fluxo é realizada em amostras não centrifugadas e fornece contagens de leucócitos e bactérias na urina.[1] Estudos sugerem que essa técnica pode ter maior sensibilidade e especificidade em crianças que o teste de tira reagente ou a microscopia; no entanto, não está amplamente disponível.[48][49]

Um resultado positivo para nitrito (bacteriúria) ou esterase leucocitária (piúria) deve ser seguido por uma cultura de urina.[1][4]

No Reino Unido, o National Institute for Health and Care Excellence (NICE) também recomenda cultura de urina nos seguintes cenários:[4]

  • A criança tem <3 meses de idade

  • Há suspeita de ITU superior

  • Há risco intermediário a alto de doença grave

  • A criança apresenta resultado positivo para esterase leucocitária ou nitrito

  • A ITU é recorrente

  • A ITU não apresenta resposta ao tratamento em 24-48 horas

  • A criança apresenta sinais e sintomas, mas os resultados do teste de tira reagente são negativos.

Urocultura

As amostras para cultura devem ser obtidas por técnica asséptica, aspiração suprapúbica ou cateterismo. Amostras de urina em bolsas urinárias não são adequadas para cultura, pois há uma alta taxa de falso-positivos. No entanto, amostras de urina em bolsas urinárias podem ser usadas para urinálise. Se a urinálise for negativa, a ITU é improvável. Se for positiva, uma amostra adequada deve ser obtida para cultura.[1]​​ As seguintes concentrações geralmente indicam resultado positivo:[1][40]

  • Aspirado suprapúbico: qualquer crescimento

  • Amostra de urina de jato médio: >1000-10,000 UFC/mL

  • Cateterização: >10,000 UFC/mL.

Um valor ≥100,000 UFC/mL constitui infecção grave.[1]

Geralmente, os resultados preliminares ficam disponíveis após 24 a 48 horas.

Exames por imagem

Exames de imagem são realizados para identificar anormalidades estruturais ou funcionais que predispõem a infecções recorrentes e para detectar quaisquer complicações da infecção.

Existem opiniões clínicas divergentes quanto à indicação de realizar exames de imagem em todas as crianças após a primeira ITU ou apenas naquelas consideradas com risco mais alto de cicatrização e anormalidades subjacentes após a ITU. As recomendações de diretrizes diferem de acordo com a região do mundo.

Ultrassonografia

A ultrassonografia está prontamente disponível e não é invasiva. Ela pode identificar anormalidades anatômicas, como hidronefrose, sistema renal duplicado, ureterocele e hidroureter, mas tem baixa sensibilidade para detectar refluxo vesicoureteral ou cicatrização renal.[11] A ultrassonografia também pode identificar trabeculação da parede da bexiga, aumento da espessura da parede da bexiga (que sugere disfunção da micção ou bexiga neurogênica) volumes de resíduo pré e pós-miccional na bexiga e diâmetro retal (aumentado na constipação crônica). A ultrassonografia pode ser realizada para procurar evidências de abscesso perinefrético ou renal quando o resultado for negativo para urinálise e cultura, mas a dor abdominal e a febre persistirem. 

O American College of Radiology (ACR) e a American Academy of Pediatrics (AAP) recomendam que todos os bebês com menos de 2 meses de idade façam uma ultrassonografia renal após a primeira ITU.[5][11]​​​ A AAP e a Canadian Paediatric Society também recomendam uma ultrassonografia renal e vesical após a primeira ITU febril confirmada para crianças entre 2 e 24 meses, e 2 e 36 meses de idade, respectivamente.[5][40]​​

As diretrizes da European Association of Urology (EAU) recomendam a ultrassonografia renal e vesical em até 24 horas em lactentes com ITU febril para descartar obstrução do trato urinário superior e inferior.[1]

No Reino Unido, o NICE recomenda a ultrassonografia para lactentes e crianças com ITU atípica para identificar anormalidades estruturais. Lactentes com menos de 6 meses, com o primeiro episódio de ITU, que apresentam boa resposta ao tratamento devem fazer uma ultrassonografia não urgente em até 6 semanas após o diagnóstico. A ultrassonografia também é indicada em crianças de 6 meses a <3 anos de idade, na presença de ITUs recorrentes.[4]

Cistouretrografia miccional

A cistouretrografia miccional detecta o refluxo vesicoureteral.[11] A cistouretrografia miccional possibilita a avaliação da anatomia da bexiga (para descartar ureterocele, pólipos e divertículos) e volume residual pós-miccional. O meio de contraste é gotejado na bexiga, e as imagens fluoroscópicas são obtidas durante o enchimento e a micção. Uma radiografia durante a micção permite a visualização da uretra e é essencial em crianças do sexo masculino para descartar valvas uretrais posteriores.[50] 

A AAP recomenda que uma cistouretrografia miccional seja considerada em crianças com ultrassonografia renal e vesical anormal, patógeno causador atípico, evolução clínica complexa ou cicatrização renal conhecida.[5] A cistouretrografia miccional também pode ser considerada em pacientes com história familiar de RVU ou anomalias congênitas dos rins e do trato urinário após a primeira ITU febril.[5]

Da mesma forma, a EAU aconselha que a cistouretrografia miccional só deve ser usada se houver uma sugestão de RVU de alto grau, por exemplo, ITU febril, ultrassonografia renal anormal e/ou infecção por não Escherichia coli.[1]

O NICE recomenda a cistouretrografia miccional em lactentes com menos de 6 meses se apresentarem uma ultrassonografia anormal, ITU atípica ou ITU recorrente.[4] 

Uma revisão sistemática comparando as taxas de detecção de RVU na cistouretrografia miccional não constatou nenhuma diferença significativa entre o teste precoce (<8 dias após o início dos antibióticos), em comparação com o teste tardio (≥8 dias após o início dos antibióticos).[51]

Nem a ultrassonografia nem a cintilografia cortical renal são suficientemente precisas na detecção do RVU a ponto de se recomendar seu uso para este fim.[52][Figure caption and citation for the preceding image starts]: Imagem fluoroscópica mostrando refluxo vesicoureteral de alto grauDo acervo de Dra. Mary Anne Jackson [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@357101fc  

Cintilografia cortical renal

A cintilografia cortical renal usa ácido dimercaptossuccínico Tc-99m (DMSA) para detectar a cicatrização renal e a pielonefrite.[11] É recomendada pelas diretrizes do Reino Unido e dos EUA em crianças com ITU recorrente ou atípica, 4 a 6 meses após a infecção aguda.[4][11]

Investigações adicionais

Devem ser realizadas medições de creatinina sérica, cistatina c, ureia e eletrólitos e pressão arterial, e o rastreamento urinário para proteinúria nos pacientes hospitalizados com ITU complicada.[1]

Marcadores inflamatórios (proteína C-reativa e procalcitonina) não são recomendados rotineiramente. Por causa da heterogeneidade entre estudos, uma revisão Cochrane concluiu não haver evidências convincentes para usar esses testes na prática clínica.[53] Os médicos podem solicitar marcadores inflamatórios e hemograma completo para orientar as decisões sobre a realização da punção lombar e o início da antibioticoterapia empírica em bebês com boa aparência ≤2 meses de idade.[54]

Pacientes imunossuprimidos são suscetíveis a ITUs por Candida. A cultura de urina para fungos deve ser solicitada especificamente, pois requer diferentes técnicas laboratoriais em comparação com a cultura bacteriana padrão.[55]

O teste de amplificação de ácido nucleico para infecção por clamídia e gonorreia é recomendado em adolescentes sexualmente ativos. Consulte Infecção do trato genital por clamídia e Infecção por gonorreia para obter mais informações.

Uma possível infecção com esquistossomose também deve ser considerada, especialmente com uma história recente ou pregressa de viagem para um país tropical. Consulte Esquistossomose para obter mais informações.

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