Abordagem
Se tratado corretamente, nenhum paciente com cólera deve morrer. Fazer um diagnóstico formal de cólera não é essencial para iniciar o tratamento. Muitos pacientes apresentarão a doença no contexto de um surto maior. A reidratação urgente é fundamentalmente o fator mais importante do tratamento, e deve ser instituída o quanto antes.[2] A reidratação intravenosa geralmente é iniciada para os pacientes com depleção de volume grave, mas a solução de reidratação oral (SRO) é a principal terapia para doença leve a moderada e deve ser adicionada à terapia intravenosa assim que for clinicamente possível.
Os antibióticos reduzem a gravidade e a duração da doença, e devem ser usados sempre que possível. As crescentes taxas de resistência do Vibrio cholerae sugerem ser fundamental uma escolha cuidadosa, baseada na epidemiologia local. Existem algumas evidências para suplementos vitamínicos e de micronutrientes adjuvantes em casos específicos. Os agentes antissecretores não têm se demonstrado tão úteis quanto os investigadores pensavam inicialmente.
Bons cuidados médicos e de enfermagem são importantes, mas a maioria dos tratamentos mencionados pode ser administrada por profissionais de saúde associados, voluntários e, no contexto da epidemia, membros da família.
Notificação e medidas de controle e prevenção de infecções (PCI) locais
Independentemente do cenário (endêmico/não endêmico), os profissionais de saúde devem seguir os mecanismos de notificação adequados para relatar os casos suspeitos ou confirmados de cólera às autoridades de saúde locais. Também é importante assegurar todas as medidas de PCI necessárias para minimizar o risco de transmissão posterior em cenários de assistência à saúde e comunitários.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) oferece um formulário de relato de caso de cólera, desenvolvido para a coleta de dados diretamente de achados do paciente, e análise de observações clínicas ou hospitalares dos pacientes com cólera suspeitada, provável ou confirmada.[92]
Gravidade da depleção de volume
O grau da depleção de volume geralmente é dividido em grave (>10%) e leve a moderado (<10%) de depleção de volume.[3] O tratamento pode ser fornecido conforme necessário.
Leve (<5% de depleção de volume): alerta, mas com taquicardia, membranas mucosas ressecadas, pequena queda postural da pressão arterial (PA) (<20 mmHg), capaz de beber líquidos; em crianças pequenas, fontanela anterior palpável, mas não afundada.
Moderada (5% a 10% de depleção de volume): irritabilidade, olhos encovados, xerostomia, queda da PA postural significativa (>20 mmHg), turgor cutâneo levemente diminuído, sede.
Grave (>10% de depleção de volume): letargia ou coma, colapso circulatório (por exemplo, pulso filiforme, PA sistólica <80 mmHg), olhos encovados, ausência de lágrimas, membranas mucosas ressecadas, retorno capilar fraco (>2 segundos), turgor cutâneo diminuído, evidência bioquímica de insuficiência pré-renal (por exemplo, ureia elevada desproporcionalmente maior que a creatinina em uma proporção de >20:1).
Reidratação e alimentação
A reidratação apropriada é a intervenção clínica mais eficaz, reduzindo a mortalidade de 40% para cerca de 1%.[3] O início da reidratação intravenosa se baseia, inicialmente, no grau da depleção de volume e na disponibilidade de quantidades úteis nos países em desenvolvimento.
Os pacientes devem receber uma dieta normal assim que conseguirem comer, incluindo a retomada do aleitamento materno o quanto antes após a fase de reidratação inicial.
Depleção de volume grave
O cálculo preciso da depleção de volume é difícil. As equações fornecidas podem ser usadas ponderadas com observação clínica.
O fluido de reposição é administrado nas primeiras 2 a 4 horas, seguido por terapia de reposição de fluidos para perdas contínuas. O cálculo do fluido necessário pode ser feito com uma equação simples: % desidratação x peso corporal (kg) = número de litros de fluido necessários.
Por exemplo, um paciente de 60 kg com depleção de volume grave (10%) precisará de 6 litros de fluidoterapia intravenosa ao longo de 2 a 4 horas ou de 1.5 a 3 litros por hora.
A OMS recomenda 30 mL/kg ao longo de 30 minutos seguidos por 70 mL/kg ao longo de 2 a 3 horas.
WHO/UNICEF: clinical management of acute diarrhoea Opens in new window
Também é importante contabilizar as perdas insensíveis. Por exemplo, um paciente de 60 kg precisa de 480 a 960 mL a cada 24 horas ou de 20 a 40 mL por hora para compensar as perdas insensíveis. Para uma criança de 6 kg, usando uma suposição de 0.3 a 0.5 mL/kg/hora, a manutenção é de 2 mL por hora para compensar as perdas insensíveis.
Se a fluidoterapia intravenosa não estiver disponível, o fluido poderá ser administrado por meio de uma sonda nasogástrica em pacientes obnubilados, contanto que seja possível verificar a posição do tubo após a colocação (por exemplo, radiografia torácica ou teste de papel de tornassol confirmando conteúdo ácido aspirado no estômago).
Como a diarreia secretora na cólera tem altos teores de sódio, potássio e bicarbonato, a solução de Ringer com lactato ou as soluções de Hartmann (em vez do soro fisiológico ou de dextrose a 5%) devem ser usadas. Com a perda de bicarbonato e potássio nas fezes, os pacientes com cólera têm uma profunda acidose metabólica e depleção do potássio corporal total. Com a correção da acidose, a concentração de potássio diminui ainda mais. Assim, o potássio deve ser reposto pela inclusão de potássio nos fluidos intravenosos ou orais, independentemente do nível inicial de potássio.
Depleção de volume de leve a moderada
Se os pacientes conseguirem tomar quantidades significativas de fluido oral quando oferecido, a reidratação oral geralmente é preferida. Isso também evita as complicações da fluidoterapia intravenosa, como a infecção no local da cânula, dor e lesões causadas pela picada da agulha.
Duração da terapia: a reidratação agressiva de reposição por 2 a 4 horas é seguida por fluidos de manutenção até o desaparecimento da diarreia, que geralmente acontece de 2 a 5 dias depois. O equilíbrio hídrico preciso é necessário e, portanto, é preciso usar-se a maca de tratamento do cólera, que permite que o paciente evacue enquanto está deitado e que a equipe médica avalie a perda entérica. O objetivo é repor as perdas a cada hora com um volume igual de fluidoterapia oral ou intravenosa. Também é importante contabilizar as perdas insensíveis. Por exemplo, um paciente de 60 kg precisa de 480 a 960 mL a cada 24 horas ou de 20 a 40 mL por hora para compensar as perdas insensíveis. Para uma criança de 6 kg, usando uma suposição de 0.3 a 0.5 mL/kg/hora, a manutenção é de 2 mL por hora para compensar as perdas insensíveis.
Vários tipos de SRO estão disponíveis: durante epidemias, a SRO padrão da OMS vem pré-concentrada e contém (em mmol/L) Na+ 75, K+ 20, Cl- 65, citrato 10 e glicose 75, com uma osmolalidade de 245 mOsm/L. Uma revisão Cochrane comparando SROs de osmolalidade diferente para pessoas com diarreia devida à cólera sugeriu que hiponatremia assintomática pode ocorrer com mais frequência com a SRO de osmolalidade menor (≤270 mOsm/L) comparada a uma SRO com osmolalidade ≥310 mOsm/L.[93] [
] No entanto, se possível, a SRO de arroz com uma concentração semelhante de eletrólitos deve ser usada para a cólera, pois reduz o volume da evacuação. O uso de SRO baseada em polímeros (por exemplo, produtos a base de arroz ou trigo) pode estar associado à redução do débito fecal e da duração da diarreia, comparado com a SRO baseada em glicose.[94] Deve-se tomar cuidado durante epidemias para garantir que a água usada para SRO seja fervida ou devidamente tratada.
Antibioticoterapia
Os antibióticos podem reduzir o volume e a duração da diarreia e encurtar o período de disseminação do V cholerae.[95]
As diretrizes atuais recomendam o tratamento com uma dose única de antibiótico oral para pacientes que:[44][95][96][97][98]
Estiverem gravemente doentes
Apresentarem desidratação grave, ou algum nível de desidratação, com grande purgação de fezes (uma ou mais evacuações por hora durante as primeiras 4 horas de tratamento de reidratação)
Estiverem grávidas
Tiverem comorbidades (por exemplo, HIV) que representarem risco elevado na cólera.
A antibioticoterapia deve ser administrada assim que o paciente for capaz de tolerar medicamentos por via oral.
A doxiciclina em dose única é recomendada como tratamento de primeira linha para adultos (inclusive gestantes) e crianças. Historicamente, as tetraciclinas eram contraindicadas para gestantes devido a preocupações relativas a potencias efeitos teratogênicos, e para crianças menores de 8 anos de idade (<12 anos em alguns países, como o Reino Unido) devido ao risco de descoloração dentária. No entanto, uma revisão sistemática recente não demonstrou essas correlações com o uso da doxiciclina.[99]
Embora a doxiciclina seja o tratamento de primeira linha preferido, a escolha do antibiótico deve ser baseada nos padrões locais de suscetibilidade a antibióticos.[2] Se a resistência à doxiciclina for documentada, uma dose única de azitromicina ou ciprofloxacino é recomendada como opção alternativa.[97][98] No Reino Unido, as tetraciclinas não são recomendadas para uso em crianças com 12 anos ou menos.
Os antibióticos fluoroquinolonas sistêmicos, como o ciprofloxacino, podem causar eventos adversos graves, incapacitantes e potencialmente duradouros ou irreversíveis. Isso inclui, mas não está limitado a: tendinopatia/ruptura de tendão; neuropatia periférica; artropatia/artralgia; aneurisma e dissecção da aorta; regurgitação da valva cardíaca; disglicemia; e efeitos no sistema nervoso central, incluindo convulsões, depressão, psicose e pensamentos e comportamento suicida.[100]
Restrições de prescrição aplicam-se ao uso de fluoroquinolonas e essas restrições podem variar entre os países. Em geral, o uso de fluoroquinolonas deve ser restrito apenas em infecções bacterianas graves e de risco de vida. Algumas agências regulatórias também podem recomendar que eles sejam usados apenas em situações em que outros antibióticos comumente recomendados para a infecção sejam inadequados (por exemplo, resistência, contraindicações, falha do tratamento, indisponibilidade).
Consulte as diretrizes locais e o formulário de medicamentos para obter mais informações sobre adequação, contraindicações e precauções.
Uma revisão Cochrane de ensaios clínicos controlados (randomizados e quase randomizados) em adultos e crianças com cólera revelou que, comparada ao placebo e à ausência de tratamento, a terapêutica antimicrobiana:[95]
[ ]
Diminuiu a duração média de diarreia em cerca de 1.5 dia (diferença mediana de -36.77 horas, intervalo de confiança [IC] de 95% -43.51 a -30.03, 19 ensaios, 1013 participantes)
Reduziu o volume total de fezes pela metade (razão de medianas de 0.5, IC de 95% 0.45 a 0.56, 18 ensaios, 1042 participantes)
Reduziu a quantidade de fluidos de reidratação necessários em 40% (índice mediano de 0.60, IC de 95% 0.53 a 0.68, 11 ensaios, 1201 participantes).
Além disso, a revisão revelou que a terapêutica antimicrobiana reduziu a eliminação fecal do V cholerae em cerca de 3 dias em comparação ao placebo ou à ausência de tratamento (duração média -2.74 dias, IC de 95% -3.07 a -2.40, 12 ensaios, 740 participantes).[95]
Sempre que possível, a escolha do antibiótico deve ser baseada no conhecimento dos padrões de suscetibilidade das cepas de V cholerae recentemente isoladas. Nos países de baixa renda, a escolha do antibiótico provavelmente será limitada pelo que estiver disponível em quantidades suficientes para atender a alta demanda, e o teste de sensibilidade provavelmente demorará mais que a duração média da doença, forçando a terapia empírica. Uma ampla variedade de antibióticos tem demonstrado atividade contra o V cholerae, incluindo as tetraciclinas (por exemplo, doxiciclina, tetraciclina), as fluoroquinolonas (por exemplo, ciprofloxacino), os medicamentos com sulfa (por exemplo, sulfametoxazol/trimetoprima) e os macrolídeos (por exemplo, eritromicina e azitromicina).
Na revisão Cochrane de terapêutica antimicrobiana para cólera, comparações diretas revelaram que tetraciclina e doxiciclina (três ensaios de qualidade muito baixa, 230 participantes) e tetraciclina e ciprofloxacino (três ensaios de qualidade moderada, 259 participantes) apresentam eficácias semelhantes sobre as reduções na duração da diarreia e no volume de fezes.[95] Entretanto, comparações indiretas (que incluíram mais ensaios) sugeriram que a tetraciclina pode reduzir a duração da diarreia e o volume de fezes em comparação com doxiciclina e sulfametoxazol/trimetoprima.[95]
Algumas evidências sugerem que tetraciclina e a eritromicina administradas por um período de 3 dias podem reduzir a disseminação do V cholerae nas fezes, mas há boas evidências do uso de uma única dose de alguns medicamentos, como doxiciclina, ciprofloxacino e azitromicina.[74][88][101][102]
Terapias adjuvantes
Vitaminas e micronutrientes
Existem poucas evidências de boa qualidade para suplementos vitamínicos e de micronutrientes no tratamento da cólera, com exceção do zinco em crianças. Um ensaio que observou o efeito da suplementação de zinco por via oral em crianças com cólera mostrou que a suplementação de zinco reduziu significativamente a duração e a gravidade da diarreia.[103] O mecanismo provavelmente se deve a um efeito no transporte de íons dos enterócitos, com a oposição do zinco à secreção de eletrólitos induzida pela toxina da cólera.[104]
A OMS recomenda suplementação com vitamina A para crianças com mais de 6 meses em ambientes com poucos recursos nos quais a desnutrição tende a ser um problema. Crianças com diarreia nesses ambientes estão particularmente em risco de deficiência de vitamina A e devem receber suplementação em altas doses.[105][106][107] Uma revisão Cochrane demonstrou que, em crianças com idade entre 6 meses e 5 anos que moram em áreas rurais ou urbanas/periurbanas, a suplementação de vitamina A está associada a uma redução clinicamente significativa no risco de mortalidade por todas as causas; especificamente, com uma redução de 12% na mortalidade geral e nas mortes decorrentes de diarreia.[108]
Agentes antissecretores
Não existem evidências de que agentes como a loperamida ou agentes antissecretores (por exemplo, análogos da somatostatina ou ácido nicotínico) tenham algum benefício no tratamento da cólera.
Cuidados de enfermagem
Os pacientes com depleção de volume moderada e grave e aqueles com altas taxas de evacuação (por exemplo, >1 L/hora) devem ser cuidados em uma cama para tratamento de cólera. Esses leitos simples, feitos com um orifício no meio e de um material que pode ser desinfetado entre os pacientes, permitem o monitoramento rigoroso das perdas de fluido registrando as perdas por hora e, assim, a reposição de fluidos desejada na próxima hora. As camas para tratamento de cólera podem ser feitas localmente.
O isolamento dos casos geralmente é difícil nos surtos, mas é essencial nos países desenvolvidos durante o tratamento de pessoas que voltaram de viagem. Não é difícil matar o organismo com agentes de limpeza padrão disponíveis nas instalações médicas.
Os pacientes podem excretar bactérias por até 14 dias na fase de recuperação. Eles devem ser instruídos a usar medidas de higiene simples como lavar as mãos depois de evacuar.
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