Abordagem
A avaliação clínica e o uso da epidemiologia local ainda podem ser considerados as ferramentas diagnósticas iniciais mais importantes quando há suspeita de casos de infecção por cólera. No entanto, grandes avanços têm sido feitos no desenvolvimento de ensaios específicos, rápidos e fáceis de usar que permitem a identificação precoce de surtos de cólera e a mobilização de equipes e equipamentos.
Nas áreas endêmicas durante epidemias e em pessoas com fatores de risco, o tratamento empírico em casos de suspeita clínica é necessário enquanto os resultados dos exames laboratoriais confirmatórios são aguardados.[71][72]
História
Aproximadamente 70% a 80% de todas as pessoas infectadas permanecem assintomáticas. A cólera precisa ser considerada no diagnóstico diferencial de diarreia em adultos com uma história de viagem para países endêmicos de cólera e/ou fatores de risco (por exemplo, ingestão recente de água ou frutos do mar contaminados, trabalho com refugiados em áreas com saneamento inadequado, visitas a áreas com grandes inundações recentes, exposição a familiares afetados, desnutrição, acloridria, grupo sanguíneo O ou infecção pelo vírus da imunodeficiência humana [HIV]), principalmente quando se apresentam em um estado de depleção de volume.
O início súbito de diarreia aquosa grave em um paciente que se apresenta para tratamento durante uma epidemia é altamente preditivo de cólera. A febre raramente está presente.[51]
A cólera costuma afetar crianças com menos de 5 anos nas áreas endêmicas. Isso ocorre devido à imunidade preexistente entre adultos e crianças mais velhas. Nas áreas não endêmicas, os casos de cólera ocorrem mais nos adultos que nas crianças. Os vômitos são um dos primeiros sinais de cólera e são extremamente comuns entre as crianças.[73] Dor abdominal também pode ser observada em crianças.[73] A amamentação tem demonstrado proteger os bebês da ocorrência de cólera, provavelmente devido à probabilidade reduzida de exposição direta.[36] Lactentes também têm menos probabilidade de serem hospitalizados devido ao cólera.[42]
Gestantes com cólera apresentam um aumento do risco de desfechos adversos na gravidez, em particular de morte fetal.[7][8]
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Frasco de fezes com aspecto de "água de arroz" típicas de um paciente com cólera mostrando manchas de muco no fundoCDC/Dr William A. Clark [Citation ends].
Exame físico
A diarreia com débito contínuo de fluido acima de 20 mL/kg durante um período de observação de 4 horas é quase patognomônico de cólera.[74]
O exame clínico pode mostrar evidências de depleção de volume, com taquicardia, pressão arterial (PA) baixa/pulso fraco ou falta de ânimo. O grau da depleção de volume geralmente é dividido em grave (>10% de depleção de volume) e leve a moderado (5% a 10% de depleção de volume).[3]
Em depleção de volume leve a moderada, os pacientes podem demonstrar irritabilidade, olhos encovados, xerostomia, evidência de uma queda postural da PA significativa (>20 mmHg), turgor cutâneo levemente diminuído e sede, mas conseguem tomar quantidades significativas de fluidos por via oral.[3]
Em depleção de volume grave, os pacientes estão letárgicos ou comatosos com colapso circulatório (pulso filiforme, PA baixa com PA sistólica <80 mmHg), olhos encovados, ausência de lágrimas, membranas mucosas ressecadas, retorno capilar fraco >2 segundos e turgor cutâneo diminuído.[3] Esses pacientes precisam ser identificados rapidamente na triagem, pois têm uma alta mortalidade em poucas horas quando não são devidamente tratados. [Figure caption and citation for the preceding image starts]: Devido à depleção de volume grave, a cólera se manifesta com turgor cutâneo diminuído, que produz o chamado sinal de "mão de lavadeira"CDC/Dr William A. Clark [Citation ends].
Exames laboratoriais gerais
Nenhum dos exames a seguir é essencial para o tratamento bem-sucedido de um caso de cólera suspeito ou confirmado em campo, e a reidratação não deve ser protelada enquanto se esperam os resultados. Exames laboratoriais inespecíficos podem ser realizados como parte da investigação de rotina para avaliar a gravidade da doença, conforme orientado pelos achados clínicos. Os distúrbios do equilíbrio eletrolítico e do equilíbrio ácido-básico refletem a gravidade da doença e da depleção de volume.[75] Alguns ou todos os exames laboratoriais de rotina talvez não estejam disponíveis em campo ou quando há limitação de recursos.
O hemograma completo pode mostrar hematócritos elevados em pacientes não anêmicos em resultado da depleção de volume, e uma alta contagem de neutrófilos pode estar presente em infecção grave.[76]
Os testes de bioquímica sérica são importantes para avaliar o grau da depleção de volume; os níveis de ureia e creatinina estão frequentemente elevados devido à depleção de volume.
A avaliação da gasometria arterial é útil porque a infecção por cólera frequentemente resulta em um baixo nível de bicarbonato sérico acompanhado de acidose, bem como em lactato elevado com um anion gap alto (devido a hiperproteinemia, ácido lático e hiperfosfatemia).
Um eletrocardiograma pode demonstrar taquicardia sinusal. A bradicardia é um sinal ominoso de doença grave. A hipocalemia pode produzir um intervalo PR prolongado e ondas T planas.
Exames laboratoriais específicos
O diagnóstico definitivo depende da identificação de Vibrio cholerae nas fezes das pessoas afetadas. Diversos outros testes também podem ser usados.
Os testes de tira reagente são úteis para detectar os primeiros estágios dos surtos de cólera, evitando a alta mortalidade em localidades onde o nível de capacitação da equipe pode ser baixo (áreas remotas ou campos de refugiados). O teste de tira reagente comercialmente disponível tem um alto grau de sensibilidade, e especificidade moderada, para detectar o V cholerae O1/O139 em condições epidêmicas. Os técnicos de laboratório locais conseguiram usar corretamente o teste de tira reagente seguindo as instruções escritas ao analisar amostras de fezes durante um surto de cólera em 2008.[77][78] No entanto, a confirmação e posterior especificação da cepa do V cholerae é fortemente recomendada por meio de exames laboratoriais padrão, como cultura bacteriana.
Outro exame inicial útil no campo é a microscopia de campo escuro/contraste de fases, que pode mostrar uma grande quantidade de bacilos curvos no exame das suspensões em soro fisiológico das amostras fecais frescas.[4] Os V cholerae geralmente variam de tamanho de 1 a 3 micrômetros de comprimento a 0.5 a 0.8 micrômetro de diâmetro, com um único flagelo polar e uma motilidade típica em saltos.[79]
O exame de coloração de Gram da coprocultura é barato e está amplamente disponível, mas não é um exame laboratorial subsequente particularmente útil. A coloração de Gram das fezes geralmente não é feita na prática porque existem muitos outros organismos Gram-negativos nas fezes, e a preparação úmida é melhor e mais rápida. Os esfregaços podem demonstrar pequenos bacilos curvos Gram-negativos.
A confirmação da presença de V cholerae por coprocultura bacteriana é a ferramenta mais específica. As colônias são tipicamente descritas como amarelas (devido à fermentação da sucrose) e brilhantes, de 2 a 4 mm de diâmetro, com crescimento seletivo no ágar tiossulfato-citrato-sais biliares-sacarose (TCBS) ou meio de taurocolato-telurito-gelatina (meio Monsur) extremamente seletivo de fezes líquidas, suspensão fecal ou swab retal. O V cholerae também é positivo para oxidase. O TCBS está comercialmente disponível, é fácil de preparar, não requer autoclave e é extremamente diferencial e seletivo. A água peptonizada alcalina é a solução enriquecida mais escolhida, recomendada especialmente nos casos não agudos ou crônicos em que a quantidade de V cholerae deve ser baixa e a quantidade de organismos concorrentes alta (por exemplo, quando as amostras são transportadas por vários dias). Um meio adequado de transporte da amostra para o laboratório é essencial para aumentar o rendimento das culturas positivas. As amostras fecais devem ser colocadas em Cary-Blair ou meios de conservação comercialmente disponíveis semelhantes para transporte ao laboratório, principalmente se houver um atraso de mais de algumas horas.
Depois do crescimento e do isolamento do V cholerae, a confirmação do sorogrupo usando antissoros e o teste de sensibilidade aos antibióticos (que é feito de acordo com as diretrizes sobre faixas de referência de sensibilidade aos antimicrobianos) são realizados. Uma colônia bacteriana de TCBS é inoculada em uma infusão de coração ou ágar Luria inclinado. Depois de 6 a 24 horas, é realizada a sorologia da lâmina usando-se antissoros polivalentes específicos do grupo O1 ou O139. As cepas não O1 e não O139 são observadas somente em casos esporádicos e não epidêmicos de doença diarreica, de modo que podem ser diagnosticadas com o antissoro apropriado quando os testes negativos não condizem com o quadro clínico da doença.[79][80][81] A sensibilidade aos antimicrobianos (antibiograma) geralmente é determinada com o método de difusão de disco, mas tiras de teste epsilométrico (E) para testes rápidos de sensibilidade também são usadas quando há suspeita de resistência limítrofe.
Os outros métodos diagnósticos para o V cholerae incluem detecção molecular via reação em cadeia da polimerase multiplex, que fornece um diagnóstico rápido e confiável de V cholerae, e ensaio de imunoadsorção enzimática (ELISA). No entanto, a correlação com os resultados de epidemiologia local, o quadro clínico e a cultura bacteriana sempre é fortemente recomendada.
A reação em cadeia da polimerase multiplex é altamente sensível e específica e é útil nas áreas endêmicas, devido à sua capacidade de detectar outros patógenos de maneira rápida e custo-efetiva.[82] Ensaios baseados em reação em cadeia da polimerase são usados para testar o V cholerae toxigênico O1/O139 e conseguem determinar simultaneamente sorotipo, biotipo e outros fatores, ao detectar os genes ctxA, tcpA El Tor/clássico, wbe/wbf e toxR.[83]
O ensaio de amplificação circular isotérmica (LAMP) é outra técnica diagnóstica molecular que usa a amplificação de ácidos nucleicos, oferecendo um diagnóstico mais rápido e mais simples que a reação em cadeia da polimerase convencional ao detectar V cholerae produtor de toxina de cólera.[84][85]
Os diagnósticos moleculares estão cada vez mais disponíveis em cenários com recursos limitados de laboratórios de saúde pública, ou podem ser realizados em laboratórios governamentais maiores para fins de referência e vigilância, podendo prevenir a disseminação rápida por detecção precoce dos surtos de cólera. No entanto, os custos dessas tecnologias ainda podem representar um obstáculo em cenários com recursos limitados; as novas ferramentas diagnósticas moleculares no local de atendimento ainda desempenham um papel importante na identificação do V cholerae.[86]
Radiologia
Os exames radiológicos raramente são úteis nos estágios iniciais do tratamento dos casos de cólera e não devem retardar as tentativas de reidratação. Radiografias do tórax e abdominais são ferramentas inespecíficas para descartar emergências que envolvem o intestino delgado depois de depleção de volume grave resultante de diarreia secretora. Esses exames de imagem também podem fazer parte da investigação de rotina inicial de um viajante que retorna com diarreia, mas raramente são úteis em áreas epidêmicas. Eles podem ser usados para tentar descartar as possíveis complicações de diarreia grave (por exemplo, obstrução do intestino delgado, íleo paralítico e perfuração) ou patologia abdominal não infecciosa (por exemplo, constipação grave causando diarreia paradoxal).[87] No entanto, tentar realizar esses exames pode retardar a terapia de reidratação intensiva.
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