Abordagem

Assim que o diagnóstico provisório de kwashiorkor é estabelecido, a doença deve ser categorizada como complicada (necessitando de tratamento em uma instituição) ou não complicada (tratável com terapia ambulatorial). O quadro clínico da criança é o principal determinante da decisão, mas os recursos disponíveis também precisam ser considerados. A decisão de oferecer cuidados hospitalares se baseia em critério clínico e na opinião de especialistas. No kwashiorkor, as complicações e o estado eletrolítico são difíceis de identificar clinicamente ou por meio de investigação laboratorial. Portanto, o tratamento deve ser baseado em um protocolo padronizado. O kwashiorkor pode ser classificado como não complicado quando a criança é aprovada no "teste do apetite". A criança deve consumir aproximadamente 30 gramas de alimentos terapêuticos prontos para uso (ready-to-use therapeutic food [RUTF]) sob observação direta. Se a criança conseguir comer essa quantidade em tempo razoável (15 minutos ou menos) e não apresentar nenhuma outra complicação evidente, é mais provável a doença seja não complicada e possa ser tratada em casa.[46][47][48] Crianças com complicações, tais como estado mental anormal, letargia acentuada, diminuição da consciência, infecção significativa concomitante ou doença subjacente, ou que sejam reprovadas no teste do apetite, devem ter as complicações urgentemente resolvidas e ser encaminhadas para internação como caso de kwashiorkor complicado.

Normalmente, menos de 10% das crianças necessitam de cuidados em uma instituição; para a maioria das crianças, o tratamento domiciliar está associado a desfechos iguais ou superiores, em comparação com cuidados hospitalares. A Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Programa Mundial de Alimentos (PAM) publicaram uma declaração defendendo a terapia domiciliar em detrimento dos cuidados hospitalares, onde a superlotação causa a disseminação frequente de infecções.[48][49]

Os objetivos da terapia consistem no tratamento de infecções concomitantes, na resolução do edema e no aumento do peso da criança para um Z-score de peso/altura >-2 ou perímetro braquial >125 mm (caso um destes estivesse baixo no momento do diagnóstico). O Z-score é definido como o desvio do valor a partir da mediana da população de referência, dividido pelo desvio padrão da população de referência.

Otimização da nutrição no kwashiorkor não complicado

Uma criança com kwashiorkor não complicado pode ser tratada em casa com RUTF.[46][47] Esse alimento terapêutico em forma de pasta é nutricionalmente equivalente às tradicionais dietas à base de leite e contém diversos micronutrientes para recuperar o crescimento e o reabastecimento dos depósitos do corpo ao ser administrado no volume de 175 kcal/kg/dia. A criança deve receber um suprimento de RUTF assim que se inscrever no programa e retornar para acompanhamento em intervalos regulares (a cada 1-2 semanas) para reavaliação e para receber suprimentos subsequentes do alimento terapêutico. Se os recursos forem limitados ou se a criança morar muito longe do centro de saúde, é aconselhável agendar o acompanhamento a cada 4 semanas.[50]

A terapia alimentar termina com a resolução do edema por, pelo menos, 1 semana, e quando a antropometria e a avaliação clínica indicarem recuperação para >-2 desvios-padrão abaixo da relação peso/altura média e/ou o perímetro braquial for ≥125 mm (o que dependerá do fato de apenas um ou os dois estarem baixos no momento da internação). Isso ocorre tipicamente entre 4 e 8 semanas depois do diagnóstico. Deve-se garantir a segurança alimentar para o período imediato após a alta, pois a recorrência é bem reconhecida se a criança retornar ao mesmo ambiente.

Na ausência de um programa que possa oferecer RUTF, os pacientes recebem tratamento para desnutrição complicada, como pacientes hospitalizados, geralmente com alimentação artificial F-75 e F-100 ou equivalentes preparados no local, até que os critérios nutricionais para alta sejam satisfeitos.[51]

Otimização da nutrição no kwashiorkor complicado

Uma criança com kwashiorkor em um quadro clínico com risco de vida imediato deve ser estabilizada em uma unidade hospitalar. Os cuidados hospitalares consistem em dar à criança pequenas quantidades de um alimento líquido à base de leite a cada 2 a 3 horas, com ingestão diária inicial recomendada de 100 kcal/kg/dia, aumentando a cada dia conforme a tolerância.[1] Assim que o quadro clínico da criança estiver estabilizado e o apetite for restabelecido, é aconselhável que o manejo passe a ser o de uma criança com desnutrição não complicada e que o tratamento seja à base de terapia alimentar domiciliar. Como o apetite, em geral, retorna lentamente, não é necessária a regulação da ingestão alimentar da criança quando isso ocorrer, contanto que a criança consuma, no mínimo, 100 kcal/kg/dia.

Tratamento de complicações agudas

Sepse

  • Todas as crianças com desnutrição aguda grave não complicada devem ser tratadas com um antibiótico oral de amplo espectro, já que a sepse, provavelmente em virtude de translocação bacteriana, é pouco valorizada. Essa recomendação se baseia em dois grandes ensaios clínicos duplo-cegos randomizados, conduzidos na região rural da África. Foi demonstrado que amoxicilina ou cefdinir é eficaz e, provavelmente, outros agentes também são eficazes.[52][53]

  • A sepse ocorre em 15% a 60% das crianças com desnutrição grave complicada, sendo a prática padrão a administração de antibióticos parenterais de amplo espectro.[54] Se forem identificadas infecções específicas, pode ser adicionado tratamento específico. Se as hemoculturas indicarem resistência ao tratamento em vigor, deve-se aplicar uma terapia direcionada.

Deficiências de micronutrientes

  • Crianças com idade de 6-59 meses com desnutrição aguda grave devem receber suplementação de vitamina A durante todo o período de tratamento, seja junto com alimentos terapêuticos prontos para uso que atendam às especificações da OMS ou como parte de uma formulação com vários micronutrientes.​[55][56]

  • É administrada vitamina A (retinol) por via oral, em doses mais altas, caso haja sinais de xeroftalmia.[57]

Choque

  • Crianças gravemente desnutridas devem ser cuidadosamente monitoradas quanto à ocorrência de choque. O choque pode ser resultante de insuficiência cardíaca, comprometimento da integridade capilar ou, menos comumente, perdas de fluidos. A determinação da etiologia do choque orientará o tratamento e influenciará o desfecho. Oxigênio suplementar é administrado quando possível. Frequentemente, os médicos se preocupam se as crianças gravemente desnutridas sofrerão choque hipovolêmico por depleção do fluido intravascular, uma vez que elas ingerem baixos volumes de líquidos, podem ter algumas evacuações diarreicas diariamente e apresentar estado mental alterado. No entanto, esses sintomas podem ser observados em choque de qualquer etiologia. A ocorrência de choque hipovolêmico é mais provável se ocorrerem 6 evacuações por dia ou grandes volumes de fezes aquosas.

  • Infusões intravenosas de fluidos raramente são administradas em crianças gravemente desnutridas. Esse tratamento foi identificado como fator de risco para morte, mesmo depois de controlar a gravidade da doença.[58] As recomendações padrão de tratamento determinam que fluidos isotônicos parenterais só devem ser administrados em casos de diarreia aquosa profusa e quando o médico estiver firmemente convencido, por observação clínica, quanto à ocorrência de choque. Recomenda-se o reinício da administração de líquidos e alimentos por via oral assim que eles forem tolerados.[54][59]

  • No caso de confirmação de choque, a ressuscitação com fluidoterapia intravenosa deve ser cautelosa (10-15 mL/kg/hora), avaliando-se a resposta (redução da frequência cardíaca, redução da frequência respiratória, melhora do enchimento capilar) ou a ocorrência de hiper-hidratação (aumento da frequência cardíaca e da frequência respiratória, aumento do tamanho do fígado). Depois de 2 horas, a criança deve ser reavaliada e, caso haja alguma melhora, deve ocorrer a continuação do tratamento com reidratação oral em quantidades estimadas para repor as perdas de líquidos, em associação com leite terapêutico F-75.

  • Deve ser considerada a possibilidade de tratar a criança com reposição de volume com solução coloide ou sangue, caso ela não esteja respondendo e não esteja hiper-hidratada, pois a falta de resposta pode representar choque séptico.

Desidratação

  • Em crianças desnutridas, é difícil estabelecer um diagnóstico preciso.

  • Para crianças com diarreia contínua, o controle com base em um protocolo padronizado de reidratação oral foi associado à redução da mortalidade.[59]

  • A solução de reidratação para desnutrição (Rehydration Solution for Malnutrition - ReSoMal) é usada para crianças desnutridas com desidratação, tanto para obter a euvolemia quanto para repor perdas gastrointestinais contínuas. A solução pode ser administrada por via oral ou através de uma sonda nasogástrica.[54] Os sais para reidratação oral padrão recomendada pela OMS têm alto teor de sódio (70 mmol/L de sódio) e baixo teor de potássio para serem administrados, pois aumentam o risco de insuficiência cardíaca (retenção de sódio pela incapacidade dos rins de excretar uma carga alta de sódio no contexto de um músculo cardíaco fino e atrofiado em crianças gravemente desnutridas).[29][30]

  • Geralmente, bastam de 70 a 100 mL de ReSoMal por kg de peso corporal para reidratar. A administração deve ser por via oral ou por sonda nasogástrica durante 12 horas, começando com 5 mL/kg a cada 30 minutos nas primeiras 2 horas e, depois, 5-10 mL/kg/h (mais lento do que para crianças que não estão gravemente desnutridas). A criança deve ser reavaliada pelo menos a cada hora. A quantidade exata a ser administrada deve ser baseada na quantidade que a criança consegue ingerir, no volume de perdas contínuas por diarreia ou vômito ou qualquer sinal de hiper-hidratação, sobretudo sinais de insuficiência cardíaca. A hiper-hidratação é indicada pela elevação da frequência de pulso (aumento de ≥25 batimentos/minuto) e pelo aumento da frequência respiratória (aumento de ≥5 respirações/minuto), ingurgitamento das veias jugulares ou aumento do edema (por exemplo, pálpebras inchadas).[1]

  • A terapia de reidratação pode ser interrompida quando ≥3 dos seguintes sinais ocorrem: a criança não está mais com sede, está urinando, apresenta-se menos letárgica, com redução nas frequências de pulso ou respiratória, a dobra da pele retorna menos lentamente após ser beliscada, presença de lágrimas, olhos úmidos, boca úmida. No entanto, muitas crianças gravemente desnutridas não apresentarão esses sinais mesmo quando hidratadas.

  • Fluidos administrados para manter a hidratação devem ser baseados na vontade da criança de beber e, se possível, na quantidade de diarreia em curso. Em geral, crianças com menos de 2 anos de idade devem receber 50-100 mL (entre um quarto e metade de um copo grande) de ReSoMal depois de cada evacuação diarreica, enquanto crianças mais velhas devem receber 100-200 mL, com continuação até cessar a diarreia.[1]

Hipoglicemia

  • A hipoglicemia é definida como glicose sanguínea <3 mmol/L (<54 mg/dL). Para tratar a hipoglicemia em uma criança consciente, pode ser administrado um alimento em bolus de solução de glicose ou sacarose. Para uma criança inconsciente ou com convulsões, uma solução de glicose dextrose ou sacarose a 10% pode ser administrada por via intravenosa ou através de uma sonda nasogástrica. Esta é seguida por um quarto da quantidade da alimentação recebida de 2 em 2 horas, a cada 30 minutos, pelas primeiras 2 horas, continuando o tratamento até a glicose sanguínea atingir 3 mmol/L.

  • É aconselhável repetir o teste de glicose sanguínea com glicemia capilar do dedo/calcanhar após 2 horas. A maioria das crianças estabiliza em 30 minutos, quando as alimentações a cada 2 horas podem ser iniciadas. Caso não haja sucesso, ou se a temperatura retal cair para <35.5 °C (96 °F) ou o nível de consciência deteriorar, o tratamento poderá ser repetido.

Desequilíbrio eletrolítico

  • Característico, embora possa não ser refletido na bioquímica sérica. Os alimentos devem ser preparados sem sal e é recomendada inicialmente a administração de fluido de reidratação F-75 adicional e ReSoMal, se necessário. São recomendadas dietas ricas em fosfato e potássio.

Hipotermia

  • Para prevenir hipotermia, a criança é mantida seca, envolvida em mantas e junto ao corpo da mãe. Se a temperatura retal estiver <35.5 °C (96 °F), é aconselhável alimentação imediata, preservando o aquecimento e a permanência da criança junto à mãe.

Dermatose

  • Se a área das fraldas estiver afetada pela dermatose, o melhor é deixá-la descoberta. Caso a dermatose afete outras áreas, curativos com pomada de óxido de zinco ou gaze parafinada podem auxiliar a analgesia e prevenir infecção. As áreas afetadas devem ser banhadas em permanganato de potássio a 0.01% por 10 minutos diariamente para auxiliar na prevenção de infecção, embora também sejam administrados antibióticos.

Anemia

  • Crianças desnutridas frequentemente têm hemoglobina baixa, tipicamente de 80 a 100 g/L (8 a 10 g/dL). Quando estão em choque, crianças desnutridas parecem pálidas, o que pode levar o médico a considerar erroneamente se a anemia é a causa da resposta hemodinâmica das crianças.

  • Normalmente, a anemia não compromete o fornecimento de oxigênio para os tecidos e as transfusões sanguíneas foram identificadas como um fator de risco para insuficiência cardíaca. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a administração de transfusões sanguíneas apenas se a hemoglobina estiver <40 g/L (4 g/dL) ou na existência de insuficiência cardíaca secundária à anemia. O ferro por via oral está associado a um desfecho mais desfavorável e não deve ser administrado na fase inicial do tratamento.[60]

Pacientes resistentes ou infecções comórbidas

  • Se o edema não responder em 5 a 7 dias e a diarreia continuar, a OMS recomenda a adição de metronidazol, especialmente se for identificada a presença de giárdia nas fezes.[1]

    Deve ser considerada a hipótese de tuberculose (TB); a história familiar, a radiografia torácica e o teste cutâneo de TB são úteis, embora nem sempre sejam positivos, mesmo na presença de TB, particularmente caso também exista infecção por vírus da imunodeficiência humana (HIV). Veja Tuberculose pulmonar.

  • As crianças imunossuprimidas apresentam um aumento do risco de infecções oportunistas e são suscetíveis a patógenos atípicos. Recomenda-se sulfametoxazol/trimetoprima profilático caso a infecção por HIV seja conhecida ou se houver suspeita de exposição, particularmente em uma área endêmica. Além disso, a terapia antirretroviral deve ser considerada caso ainda não esteja estabelecida, mas ela também depende da disponibilidade da medicação. Consulte Infecção por HIV.

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