Abordagem

A avaliação inicial deve incluir uma avaliação extensiva da história médica do paciente e a determinação da etiologia. Em pacientes sem risco de cirrose, outras causas de ascite devem ser investigadas, como câncer, insuficiência cardíaca congestiva, tuberculose, hemodiálise ou pancreatite. A ascite com mais de uma origem pode estar presente em cerca de 5% dos pacientes, e o quadro clínico pode ser confundidor.[14] Em pacientes com ascite em agravamento, a não adesão ao tratamento é uma causa possível, juntamente com a descompensação da doença hepática devida a desenvolvimento de carcinoma hepatocelular ou lesão hepática aguda sobreposta à crônica.

História

A investigação dos riscos para, e da presença de, doença hepática é essencial. A quantidade e a duração do consumo de álcool devem ser analisadas detalhadamente, pois a doença hepática alcoólica pode provocar ascite sem cirrose. Geralmente, é necessária uma ingestão de 80 g/dia de etanol, por 10 a 20 anos, para o desenvolvimento de cirrose, mas quantidades menores podem ser suficientes em mulheres e indivíduos com hepatite viral coexistente.

Uma história detalhada do tipo de álcool e da quantidade consumida por dia é útil para calcular o consumo de etanol total. O conteúdo alcoólico da cerveja é de 3% a 8%, do vinho é de 7% a 18% e de destilados é de >37.5%. Todas as bebidas alcoólicas nos EUA e no Reino Unido contêm cerca de 17.75 mL por copo. Uma dose padrão nos EUA inclui uma lata ou garrafa de cerveja de 360 mL, uma taça de vinho de 150 mL ou uma bebida de 45 mL composta por 40% de destilados.

Deve ser investigada uma história de possíveis toxinas ou medicamentos, como o paracetamol.

Os fatores de risco para hepatite C devem ser avaliados; eles incluem transfusão sanguínea anterior a 1992, compartilhamento de agulha durante uso indevido de drogas intravenosas, aspiração de drogas e realização de tatuagens. A hepatite B deve ser considerada nos pacientes nascidos em áreas hiperendêmicas (isto é, África, regiões da Ásia e ilhas do Caribe) e naqueles que apresentem outros fatores de risco, como vários parceiros sexuais, uso de drogas intravenosas, diálise, profissionais da área de saúde, contato domiciliar com pessoas infectadas pelo vírus da hepatite B ou diagnóstico de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).

Deve ser obtida a história familiar de doenças hepáticas, como a hemocromatose. Dores nas articulações e alterações na cor da pele podem ser encontradas em pacientes com hemocromatose.

A esteatose hepática associada à disfunção metabólica é uma causa comum de cirrose, com fatores de risco incluindo obesidade, diabetes e hiperlipidemia.[29][30][31]​ Outras causas de cirrose incluem doenças autoimunes (por exemplo, hepatite autoimune, colangite biliar primária, colangite esclerosante primária) e doenças hepáticas metabólicas (por exemplo, hemocromatose). Uma história de doenças autoimunes pode estar presente em pacientes com hepatite autoimune. Os pacientes com colangite biliar primária podem se queixar de prurido.

Dispneia durante esforços físicos ou em repouso com ortopneia é sugestiva de insuficiência cardíaca congestiva. Os pacientes podem apresentar história de doença cardíaca (por exemplo, doença coronariana, cirurgia cardíaca prévia, dor torácica durante esforços físicos ou intervenção percutânea). Pacientes com neoplasias malignas gastrointestinais podem uma neoplasia conhecida ou sintomas sugestivos de doenças malignas (por exemplo, perda de peso/apetite). A síndrome de Budd-Chiari caracteriza-se por ascite aguda e distensão abdominal, com evolução rápida no decorrer de dias. Uma história de pancreatite aguda pode ser encontrada em ascites pancreáticas, e a ascite biliar ocorre após cirurgia biliar.

Imigrantes de áreas endêmicas de esquistossomose (América do Sul, África) podem apresentar hipertensão portal não cirrótica secundária a uma doença de evolução prolongada com remissão espontânea (obstrução por esquistossomose).

Exame físico

Os pacientes geralmente acumulam líquido rapidamente, podendo sentir saciedade precoce e dispneia. Os achados físicos mais úteis para o diagnóstico são aumento no volume e macicez móvel no flanco.[32] É fundamental a avaliação das condições que provocam a ascite. As manifestações clássicas da cirrose, como aranhas vasculares, eritema palmar e vasos colaterais na parede abdominal, são úteis, se estiverem presentes. Outros sinais indicativos de doença hepática incluem icterícia, atrofia muscular, leuconiquia e hepatomegalia e esplenomegalia. A estase jugular poderia sugerir insuficiência cardíaca congestiva ou pericardite constritiva, na ausência de ascite tensa, hipertensão pulmonar ou insuficiência renal.

Avalie para desconforto abdominal com dor à descompressão, que pode indicar peritonite. A sensibilidade e especificidade do exame físico podem variar de 50% a 94% e 29% a 82%, respectivamente, em comparação com a ultrassonografia como padrão de referência.[32]

Alguns pacientes podem desenvolver hidrotórax hepático (acúmulo de líquido no espaço pleural direito). Se houver derrame pleural, o exame torácico geralmente revela macicez à percussão, murmúrio vesicular diminuído ou ausente e ausência de frêmito.[33] É possível palpar uma massa ovariana no exame abdominal ou no exame bimanual. Os pacientes com síndrome nefrótica apresentariam edema periférico e história de doença renal.

Exames de imagem

Em pacientes que apresentam distensão abdominal, a ascite deveria ser primeiro diferenciada em relação à gordura secundária a obesidade. Deve ser solicitada a ultrassonografia, se o achado físico não for definitivo.[20][34] Para o diagnóstico, deve haver cerca de 1500 mL de líquido ascítico para a detecção de macicez no flanco. O International Ascites Club propôs o seguinte sistema de classificação de ascite:[35]

  • Grau 1: ascite leve detectável somente por ultrassonografia

  • Grau 2: ascite moderada com distensão simétrica moderada do abdome

  • Grau 3: ascite volumosa ou macroscópica com distensão abdominal acentuada.

A ultrassonografia de abdome é o modo mais custo-efetivo para confirmar a ascite e detectar cirrose ou neoplasia maligna. As avaliações por ultrassonografia com Doppler podem ser úteis para determinar a patência das veias hepáticas e da veia porta, e devem ser solicitadas em todos os pacientes. Uma trombose da veia porta ou uma estenose das veias hepáticas podem ser detectadas com maior precisão através de ultrassonografia com Doppler. A tomografia computadorizada ou a ressonância nuclear magnética podem ser necessárias em alguns casos de suspeita de neoplasia maligna. Um diâmetro do baço maior que 12 cm ou uma recanalização das veias umbilicais são indicativos de hipertensão portal.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Tomografia computadorizada (TC) do abdome evidenciando ascite maciça secundária a cirrose e ao carcinoma hepatocelularBrooklyn Hospital Center; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.assessment.Caption@c64ce06

Exames laboratoriais de rotina

Os perfis metabólicos básico e hepático devem ser solicitados para todos os pacientes. A peritonite bacteriana espontânea é um fator de risco para síndrome hepatorrenal, e a função renal deve ser monitorada. Uma elevação da bilirrubina e um agravamento do perfil de coagulação sugerem uma piora da cirrose. O cálculo do escore do modelo para doença hepática terminal (Model End-Stage Liver Disease; MELD) e a determinação da classe de Child-Pugh ajudariam na avaliação da cirrose subjacente. O escore MELD se baseia em medidas objetivas (bilirrubina sérica, creatinina, sódio e razão normalizada internacional); a classe de Child-Pugh se baseia em medidas objetivas e subjetivas (albumina sérica, tempo de protrombina [TP], bilirrubina sérica, grau de ascite e encefalopatia).[36] [ Classificação de Child-Pugh para gravidade da doença hepática (unidades SI) Opens in new window ] ​​​​​ Um hemograma completo é indicado para se determinar a contagem plaquetária, pois a trombocitopenia é uma indicação de hipertensão portal.

Os testes sorológicos para o vírus da hepatite A, B e C devem ser solicitados rotineiramente para determinar o status de exposição e a necessidade de imunização.

Paracentese abdominal

Uma paracentese abdominal diagnóstica é indicada para pacientes com novo episódio de ascite, admissão hospitalar, deterioração clínica (isto é, febre, dor ou sensibilidade abdominal, alteração do estado mental, íleo paralítico, hipotensão), sangramento gastrointestinal (alto risco para peritonite bacteriana espontânea) ou qualquer anormalidade laboratorial que indique infecção (isto é, leucocitose periférica, acidose, piora na disfunção renal).[20][37]

Um estudo, que utilizou a ultrassonografia para medir a espessura da parede abdominal e a profundidade da ascite em 52 pacientes, demonstrou que o quadrante inferior esquerdo é o local ideal para a paracentese, devido à menor espessura da parede abdominal e à grande profundidade de líquido.[38]

Hemorragia pós-procedimento é muito rara após paracentese diagnóstica.[39][40]​ As diretrizes não recomendam o uso profilático de rotina de plasma fresco congelado ou plaquetas antes da paracentese.[41][42] Os pacientes com coagulação intravascular disseminada ou evidência clínica de fibrinólise não devem ser submetidos à paracentese até a melhora dessas condições. Consulte a orientação local.


Demonstração animada de uma paracentese abdominal
Demonstração animada de uma paracentese abdominal

Demonstra como realizar uma paracentese abdominal diagnóstica e terapêutica.


Os testes de rotina para líquido ascítico são:[21]

  • Celularidade e diferencial

  • Albumina

  • Concentração total de proteínas

Uma albumina sérica simultânea (ou no mesmo dia) também deve ser medida para se calcular o gradiente de albumina soro-ascite (GASA).

Se houver suspeita de infecção, então a cultura do líquido ascítico (em frascos de hemocultura) deve ser adicionada a esses testes de rotina.[21]

Se o GASA for <11 g/L (<1.1 g/dL), sugerindo uma causa não cirrótica da ascite, os testes adicionais no líquido ascítico podem incluir:[21]

  • Medição de glicose, lactato desidrogenase e amilase

  • Análise por coloração de Gram

  • Esfregaço e cultura para tuberculose (se houver suspeita de peritonite tuberculosa)

  • Citologia (para uma possível carcinomatose peritoneal)

  • Adenosina desaminase (para distinguir entre peritonite tuberculosa e carcinomatose)

  • Peptídeo natriurético do tipo B (para doença cardíaca subjacente ou adicional)

  • Concentração de triglicerídeos (se houver suspeita de ascite quilosa, por exemplo, devido a trauma ou obstrução linfática)

  • Bilirrubina (se houver suspeita de ascite biliar, por exemplo, história de cirurgia biliar, trauma abdominal ou colecistite)

Biópsia hepática

Quando houver suspeita de cirrose hepática e o quadro clínico não for muito esclarecedor, a biópsia hepática pode detectar ou descartar a cirrose como causa da ascite. A biópsia hepática também pode detectar a etiologia da cirrose como sendo por hemocromatose, doença hepática alcoólica ou hepatite viral. Entretanto, características do insulto primário (por exemplo, esteatose hepática associada à disfunção metabólica [anteriormente conhecida como doença hepática gordurosa não alcoólica ou hepatite autoimune]) podem não ser mais detectáveis no momento em que o procedimento é realizado. O estadiamento preciso da fibrose e a classificação da inflamação podem orientar a terapia na hepatite viral.

A medição do gradiente de pressão venosa hepática (GPVH) pode ser alcançada durante uma biópsia hepática transjugular. Um GPVH ≥10 mmHg, que indica hipertensão portal significativa, pode ajudar a diferenciar a etiologia da ascite.[48]

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