Considerações de urgência
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Embora as causas de dor abdominal em crianças sejam frequentemente benignas (por exemplo, constipação), sempre há potencial para doenças com risco de vida ou aos órgãos, o que requer intervenção urgente.
Ausência de ruído hidroaéreo, vômitos biliosos, diarreia hemorrágica ou sangue oculto nas fezes, febre (≥38.0 °C [≥100.4 °F]), dor à descompressão brusca e rigidez indicam uma possível necessidade de cirurgia.
Emergências gastrointestinais
Apendicite aguda resultante de perfuração
A apendicite aguda não tratada pode evoluir para isquemia, necrose e, eventualmente, perfuração. O médico pode encontrar vários quadros clínicos. Os pacientes muitas vezes se queixam de dor abdominal localizada no quadrante inferior direito; em casos mais graves, a dor pode ser difusa (por exemplo, caso uma perfuração resulte em peritonite generalizada).
A perfuração deve ser considerada quando um paciente apresentar sintomas com duração mais prolongada e/ou suspeita de apendicite com sinais sistêmicos evidentes da doença (por exemplo, febre alta [>38.3 °C, >101 °F]), taquicardia e anorexia), peritonite localizada ou generalizada com rigidez, abdome distendido com ruído hidroaéreo ausente. Pode haver uma massa palpável se houver um abscesso periapendicular devido a perfuração.
Encaminhe todas as crianças com suspeita de apendicite para a equipe de cirurgia pediátrica de plantão, se disponível. Quando não houver equipe de cirurgia pediátrica disponível, o atendimento conjunto deve ser manejado entre as equipes de pediatria e cirurgia.
A ultrassonografia (US) é geralmente o estudo diagnóstico inicial preferencial (devido ao baixo custo e à ausência de exposição a radiação).[76][77][78] Nas crianças, a especificidade e a sensibilidade da ultrassonografia são semelhantes às da tomografia computadorizada (TC) (especificidade de 92.0% vs. 94.2%; sensibilidade de 90.3% vs. 93.0%); para a RNM a especificidade é de 96.5% e a sensibilidade de 96.9%.[78] No entanto, todas as modalidades de imagem têm limitações na diferenciação entre apendicite perfurada e não perfurada.[76][78][79]
O tratamento (antibióticos e, possivelmente, cirurgia) da apendicite aguda ou perfurada deve ser instituído imediatamente, mas o quadro clínico é mais urgente do que emergente. Uma vez administrados os antibióticos, a apendicectomia pode ser adiada com segurança até o dia seguinte para casos que ocorram fora do horário normal de expediente selecionados para manejo cirúrgico.[13][14]
A apendicectomia pode ser realizada com uma abordagem aberta ou por via laparoscópica. A apendicectomia laparoscópica está associada a menos dor pós-operatória, menor incidência de infecção do sítio cirúrgico e maior qualidade de vida em crianças.[13] Deve-se considerar o encaminhamento de crianças ao hospital ou cirurgião pediátrico em crianças menores de 5 anos.[80]
Obstrução intestinal
A urgência da intervenção depende da gravidade clínica da obstrução.
As obstruções estranguladas geralmente são obstruções completas, em que o suprimento de sangue para o intestino é interrompido devido a edema, torção do intestino ou aderências. Elas geralmente apresentam peritonite difusa ou local, febre e leucocitose. Quando não tratadas, evoluem para necrose e/ou perfuração intestinal. O tratamento cirúrgico urgente é obrigatório.
Obstruções não estranguladas envolvem uma alça do intestino parcial ou completamente obstruída, mas com suprimento de sangue adequado e não necrótica. Esse tipo de obstrução geralmente não está associado a peritonite, febre ou leucocitose, mas pode estar associado a distensão abdominal, náuseas e vômitos. Embora a intervenção cirúrgica possa ser necessária, geralmente ela não é urgente. Entretanto, um atraso prolongado pode evoluir para estrangulação.
Intussuscepção
Pode causar obstrução venosa e edema da parede intestinal, podendo evoluir, se não tratada, para necrose intestinal, perfuração e, raramente, óbito.[81][82] O tratamento deve ser iniciado no momento do diagnóstico. O objetivo é a correção da hipovolemia e das anormalidades eletrolíticas, além da administração de antibióticos, seguida por redução urgente.
A redução pode ser realizada com um estudo de enema radiográfico (o ar é preferido ao reagente de contraste) ou por cirurgia.[83]
Há um risco de recorrência da intussuscepção após a redução, especialmente nas primeiras 48 horas, portanto, uma reavaliação imediata é necessária se os sintomas recorrerem.[84]
Volvo
A má rotação com volvo do intestino médio é uma emergência cirúrgica, e vômitos biliosos em crianças devem ser motivo de preocupação imediata quanto a esse quadro clínico até confirmação em contrário.
Com história e exame físico compatíveis (vômitos biliosos e dificuldade para alimentar-se, especialmente em lactentes durante o primeiro mês de vida), nenhuma outra intervenção diagnóstica é necessária, recomendando-se exploração cirúrgica imediata.
Casos ambíguos podem exigir a realização estudo de contraste do trato gastrointestinal superior (o teste padrão ouro). Entretanto, esses procedimentos não devem excluir uma intervenção cirúrgica caso a suspeita seja alta.
Hérnia encarcerada
A presença de hérnia umbilical ou inguinal encarcerada requer atenção imediata em decorrência do perigo de estrangulação intestinal (comprometimento do fluxo sanguíneo para o intestino com consequente isquemia ou gangrena intestinal). O encarceramento, com ou sem estrangulação, ocorre quando o conteúdo intra-abdominal é retido no saco herniário protruso.
Clinicamente, a hérnia é irredutível e sensível. Os sintomas associados podem incluir náuseas, vômitos e dor abdominal generalizada. Em casos graves, podem ocorrer febre, distensão abdominal e alterações cutâneas.
A peritonite é uma contraindicação à tentativa de redução não cirúrgica.
Em caso de estrangulação evidente, é necessário cirurgia urgente para a retirada do segmento intestinal com necrose gangrenosa.
Enterocolite necrosante
Trata-se da emergência médica/cirúrgica mais comum que afeta os neonatos, particularmente bebês prematuros pesando menos de 1500 g.[35]
Os sinais e sintomas incluem intolerância alimentar, apneia, letargia, fezes com sangue, distensão abdominal, sensibilidade, eritema na parede abdominal e bradicardia.
A intervenção precoce é obrigatória para evitar morbidade e mortalidade em razão do comprometimento de múltiplos órgãos. O tratamento pode ser clínico ou cirúrgico, sendo determinado pela gravidade do quadro clínico. [
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Trauma abdominal
Emergências geniturinárias
Gravidez ectópica rota
Se tratada incorretamente ou não diagnosticada, uma gravidez ectópica rota pode causar a morte materna decorrente de ruptura do local de implantação e hemorragia intraperitoneal.
A apresentação clássica inclui dor na parte inferior do abdome, amenorreia e sangramento vaginal. As pacientes com teste de gravidez positivo na urina e ausência de gestação intrauterina conforme ultrassonografia transvaginal são consideradas portadoras de gravidez ectópica até que se confirme o contrário.
Um exame de ultrassonografia rápido e focado para avaliar a presença de fluidos livres ou sangue pode ser útil quando há suspeita do diagnóstico, mas não deve protelar outros cuidados.
A instabilidade hemodinâmica associada a uma gravidez ectópica rota resulta de hipovolemia grave secundária ao sangramento. Portanto, o manejo dessas pacientes envolve a estabilização com ressuscitação fluídica de emergência e a transferência imediata para a sala de cirurgia. A rápida reposição volêmica com solução isotônica e hemoderivados é de suma importância para evitar a lesão isquêmica e o dano a múltiplos órgãos.
A laparoscopia urgente com salpingectomia ou salpingostomia é realizada em caso de gravidez ectópica rota.
Torção ovariana
O giro ou a torção do ovário compromete o influxo arterial e o refluxo venoso, produzindo isquemia, que, se não tratada prontamente, pode afetar a viabilidade do ovário.
Manifesta-se com dor na parte inferior do abdome de início agudo e causa frequentemente náuseas e vômitos. Os sintomas podem ser intermitentes e flutuar quanto à gravidade.
A ultrassonografia com Doppler tem apenas confiabilidade variável no diagnóstico de torção ovariana.[87][88]
Não se sabe por quanto tempo um ovário pode suportar a isquemia sem danos permanentes (pode ser até 72 horas ou mais), mas uma intervenção cirúrgica definitiva deve ser realizada o mais rápido possível.[89][90] Um atraso no momento da cirurgia está associado a uma redução na possibilidade de recuperação do ovário.[91]
O manejo conservador com destorção é altamente recomendado, independentemente do aspecto real do ovário.[60][92][93]
Torção testicular
Deve ser descartada em meninos que apresentam dor abdominal. A torção dos testículos e do cordão espermático causa a obstrução do influxo arterial e a drenagem venosa dos testículos.
Essa condição apresenta comumente dor testicular de início súbito; entretanto, meninos mais novos podem apenas se queixar de desconforto abdominal, náuseas e/ou vômitos.
Os achados físicos sugestivos de torção testicular incluem ausência do reflexo cremastérico, sensibilidade testicular difusa, testículos elevados e em uma posição horizontal, em vez de vertical.
O rápido reconhecimento e a intervenção cirúrgica precoce são necessários para evitar a perda dos testículos. A distorção manual pode ser tentada enquanto são feitos os preparos para a cirurgia.
A ultrassonografia com Doppler duplex é o exame definitivo para torção testicular e deve ser obtida a menos que o exame protele desnecessariamente a intervenção em uma criança com alto índice de suspeita.[94][95]
Sepse
Sepse e choque séptico
Pacientes com sepse intra-abdominal podem apresentar dor abdominal.[96]
A sepse é um espectro de doença na qual existe uma resposta sistêmica e desregulada do hospedeiro a uma infecção.[97]
A apresentação varia desde sintomas sutis e inespecíficos (por exemplo, indisposição com temperatura normal) a sinais graves com evidências de disfunção de múltiplos órgãos e choque séptico. Os pacientes podem apresentar sinais de taquicardia, taquipneia, hipotensão, febre ou hipotermia, enchimento capilar lentificado, pele manchada ou pálida, cianose, estado mental recém-alterado, débito urinário reduzido[98]
A sepse e o choque séptico são emergências médicas.
Em crianças, os fatores de risco para sepse incluem: idade inferior a 1 ano, imunidade prejudicada (por doença ou medicamentos), cirurgia recente ou outros procedimentos invasivos, qualquer violação da integridade da pele (por exemplo, cortes, queimaduras) e acessos venosos ou cateteres.[98]
O reconhecimento precoce da sepse é essencial porque o tratamento precoce melhora os desfechos.[98][99][Evidência C] Contudo, a detecção pode ser desafiadora porque o quadro clínico da sepse pode ser sutil e inespecífico. Portanto, é importante um limiar baixo para se suspeitar de sepse.
A chave para o reconhecimento precoce é a identificação sistemática de qualquer paciente que tenha sinais ou sintomas sugestivos de infecção e esteja em risco de deterioração devida a disfunção orgânica. Foram desenvolvidos critérios para identificar sepse e choque séptico em crianças e jovens menores de 18 anos.[100] Existem várias outras abordagens para a estratificação do risco. Todas contam com uma avaliação clínica estruturada e o registro dos sinais vitais do paciente.[98][100][101][102][103] É importante consultar as orientações locais para obter informações sobre a abordagem recomendada pela sua instituição.
A cronologia das investigações e tratamentos deve ser orientada por essa avaliação inicial.[103]
A Surviving Sepsis Campaign produziu diretrizes de tratamento que constituem ainda hoje o padrão mais amplamente aceito.[99] Na primeira hora:[99]
Siga os protocolos institucionais para o manejo da sepse/choque séptico em crianças; eles melhoram a velocidade e a confiabilidade da assistência.
Obtenha hemoculturas antes de administrar antibióticos (desde que isso não protele substancialmente a administração dos antibióticos).
Administre antibióticos de amplo espectro.
Administre cristaloides, ajustados pelos sinais clínicos de débito cardíaco e interrompidos se houver evidências de sobrecarga de volume. Consulte os protocolos locais.
Use as tendências dos níveis sanguíneos de lactato para orientar a ressuscitação. Se a hipotensão da criança for refratária à ressuscitação fluídica, considere o uso de vasopressores.
Para mais informações sobre sepse, consulte nosso tópico Sepse em crianças.
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