Abordagem
A endoscopia se tornou fundamental para o diagnóstico e a terapia. Entretanto, a importância da anamnese e do exame físico completo deve ser extremamente enfatizada, pois eles possibilitam a triagem rápida dos pacientes que necessitam de cuidados em enfermaria ou em unidade de terapia intensiva e também possibilitam priorizar os pacientes para a endoscopia de urgência versus a de emergência.
História
Sangue no trato gastrointestinal é um agente catártico e pró-emético. A obtenção de uma anamnese completa frequentemente permite identificar a provável causa do sangramento antes da confirmação endoscópica. Atenção específica deve ser direcionada aos seguintes sinais e sintomas.
Náuseas e vômitos
A ausência de náuseas e vômitos no quadro de melena ou hematoquezia considerada como sendo de origem do trato gastrointestinal superior sugere uma fonte de sangramento distal ao piloro.
A permanência prolongada de sangue no lúmen do canal alimentar permite a oxigenação do ferro da hemoglobina (Hb) e tem o efeito de escurecer o sangue. O vômito em borra de café é sugestivo de um sangramento mais lento, possivelmente intermitente; a melena está fortemente associada à hemorragia digestiva alta (HDA) e não à baixa (HDB), que é distal à junção duodenojejunal no ligamento de Treitz.[57] Portanto, o vômito em borra de café é mais indicativo de úlcera péptica, com menor probabilidade de sangramento varicoso.
Por outro lado, hematêmese volumosa é sugestiva de lesão com sangramento ativo, mais frequentemente de sangramento varicoso (principalmente em pacientes com sinais de doença hepática ou hipertensão portal), um sangramento de úlcera gastroduodenal ativa, ou uma lesão de Dieulafoy duodenal.
Hemorragia digestiva alta que começa após vômitos ou esforço para vomitar é sugestiva de laceração de Mallory-Weiss, embora muitos pacientes com essa síndrome não tenham história de vômitos. Uma laceração espontânea do esôfago, do esforço para vomitar (síndrome de Boerhaave), pode estar associada a uma hematêmese significativa.
Melena
Melena está fortemente associada à hemorragia digestiva alta.
A duração da melena pode ser útil para determinar se a hemorragia digestiva alta é aguda ou crônica, já que muitas condições (malformação arteriovenosa do intestino delgado etc.) podem ocasionar melena crônica. Melena com duração inferior a 24 horas é difícil de interpretar, mas melena persistente sugere hemorragia digestiva alta de duração mais longa.
A melena, por si só, não é motivo suficiente para uma endoscopia de emergência, mas a quantificação do volume de melena pode ser útil para triar os pacientes.
É importante observar que um paciente relatar melena não é o mesmo que o paciente eliminar sangue pelas fezes ativamente. Produtos contendo bismuto (por exemplo, Pepto-Bismol) e suplementos de ferro podem tornar a aparência das fezes escuras ou negras. Um exame de toque retal, incluindo o exame de sangue oculto nas fezes, deve ser realizado.
Hematoquezia
A hematoquezia é mais frequentemente observada na hemorragia digestiva baixa que na hemorragia digestiva alta. Entretanto, o sangramento retal vermelho vivo pode ser observado em uma hemorragia digestiva alta intensa, em que a rapidez do tempo de trânsito impede qualquer digestão. Consequentemente, a avaliação do volume de sangramento é imperativa por dois motivos principais:
Um grande volume de hematoquezia com outros fatores históricos, sugerindo uma origem no trato gastrointestinal superior, exige rápido diagnóstico e tratamento por endoscopia digestiva alta.
Um volume menor de hematoquezia associado apenas aos movimentos intestinais, ou na ausência de outros sinais que sugiram uma origem alta, aponta para hemorragia digestiva baixa. Portanto, indica-se uma colonoscopia.
Observando que a natureza do sangramento é saliente: hematoquezia persistente ou intermitente implica que uma fonte alta é menos provável. A realização de um exame de toque retal com uma inspeção visual completa do ânus é necessária para descartar hemorroidas externas como causa da hematoquezia. Anoscópios devem estar disponíveis na maioria dos pronto-socorros.
As varizes gástricas estão intimamente associadas a sangramento maciço e a rápido comprometimento hemodinâmico. As lesões de Dieulafoy se apresentam frequentemente com rápido sangramento, embora intermitente.
A fístula aortoentérica frequentemente se apresenta com uma "hemorragia sentinela" (um episódio de sangramento autolimitado antes de um sangramento maciço que pode acarretar exsanguinação), na forma de hematoquezia ou hematêmese.
Dieta
Não raro, pacientes que ingeriram grandes quantidades de gelatina vermelha ou bebidas vermelhas podem interpretar vômitos de cor vermelha como hematêmese.
Sintomas constitucionais
Tumores do trato gastrointestinal superior podem estar associados à perda de peso involuntária ou sudorese noturna.
Medicamentos
A hemorragia digestiva associada a medicamentos é mais comum em adultos mais velhos (com idade ≥65 anos).[60]
A revisão dos medicamentos do paciente para identificar potenciais agentes causadores é mandatória.
O uso de ≥4 medicamentos está associado a úlcera péptica (UP) idiopática.[61]
Medicamentos anti-inflamatórios não esteroidais
A UP frequentemente é causada pelo uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) isoladamente ou em combinação com corticosteroides e/ou agentes antiplaquetários ou anticoagulantes.
Os pacientes podem não ter conhecimento de que estejam ingerindo AINEs, pois estes podem estar incluídos em preparações antiácidas ou em combinação com analgésicos de venda livre.
Os corticosteroides usados em combinação com AINEs são muito ulcerogênicos. Mesmo breves surtos de esteroides orais (≤14 dias) parecem estar associados a um aumento do risco de HDA, particularmente no primeiro mês após o início.[62]
Terapia antiagregante plaquetária/anticoagulante
Pacientes que sofrem eventos cardiovasculares agudos são frequentemente tratados simultaneamente com múltiplos agentes anticoagulantes e antiplaquetários, e frequentemente desenvolvem hemorragia digestiva alta.
Um estudo revelou que os pacientes que tomam aspirina e/ou rivaroxabana que apresentam sangramento gastrointestinal têm um risco 20 vezes maior de um novo diagnóstico de câncer gastrointestinal em comparação com aqueles sem sangramento gastrointestinal.[51]
História de alcoolismo ou doença hepática crônica
Quadros clínicos que causam hipertensão portal predispõem os pacientes a desenvolverem varizes. História de uso crônico e excessivo de álcool, de droga intravenosa (ou outro comportamento que ponha as pessoas em risco de contrair hepatite) ou de doença hepática subjacente, sugere enfaticamente um sangramento varicoso e são necessárias as precauções adequadas (ou seja, octreotida intravenosa).
É importante observar que a função hepática comprometida causa coagulopatia; esta pode ser grave e pode complicar a terapia endoscópica.
Outra história médica relacionada
Frequentemente, observa-se esofagite no contexto de pirose de longa duração. Os pacientes podem mencionar sensação de globus (nó na garganta); pode ocorrer também rouquidão. Muitos pacientes que apresentam melena e suspeita de úlcera péptica (UP) também poderão apresentar esofagite na endoscopia.
Uma história prévia de UP aumenta a probabilidade de recorrência.[61]
A presença de hérnia hiatal deve levantar a suspeita de laceração de Mallory-Weiss.
Malformações arteriovenosas estão associadas a cirrose, doença renal em estágio terminal, idade avançada e doença de von Willebrand.
As lesões de Dieulafoy são consideradas aneurismas vasculares congênitos, ainda que sejam mais frequentemente sintomáticas em homens com história de consumo de bebidas alcoólicas, de doença cardiovascular incluindo hipertensão, de diabetes ou doença renal crônica.
Uma história de enxerto vascular ou aneurisma aórtico deve aumentar enfaticamente a suspeita clínica de fístula aortoentérica.
Uma coagulopatia deve ser considerada na presença de história de anomalias genéticas de coagulação (por exemplo, hemofilia, doença de von Willebrand).
A hipertensão portal pode ser causada por anormalidades vasculares e condições diferentes da cirrose alcoólica; as varizes não devem ser eliminadas como consideração em pacientes pediátricos jovens.
História social
Além do uso de AINEs, a úlcera péptica também pode ser causada por infecção pela Helicobacter pylori. É importante avaliar o risco de infecção por H pylori, pois pessoas que cresceram ou viajaram recentemente para países em desenvolvimento onde a infecção é endêmica apresentam aumento do risco. Muitos pacientes que se submetem ao tratamento para H pylori nunca têm confirmação da remoção, por isso é importante reconhecer que o tratamento prévio não é sinônimo de tratamento curativo.
A esquistossomose é uma causa extremamente rara de hipertensão portal. A infecção deve ser considerada em casos específicos de nascimento, trabalho ou permanência prolongada na Ásia, América do Sul ou Caribe.
Exame físico
Em geral, o exame físico deve ser direcionado às respostas de duas perguntas primárias:
Qual o grau de anemia/hipovolemia?
Existem sinais de doença hepática crônica que possam sugerir sangramento de varizes?
Sinais vitais podem ser usados para estimar o status volêmico do paciente. A pressão arterial pode permanecer normal inicialmente, portanto o aumento da frequência cardíaca é uma medida mais sensível do estado circulatório.[63] Se as comorbidades do paciente não forem contraindicações, a taquicardia com hipotensão deve desencadear uma ressuscitação volêmica agressiva. Se o paciente estiver estável, devem ser obtidas as pressões arteriais ortostáticas. Enchimento capilar, umidade nas membranas mucosas e ausência de palidez também podem ajudar na avaliação do grau de anemia/hipovolemia.
Doença hepática crônica causando hipertensão portal pode se apresentar de uma ou mais das seguintes maneiras:
Encefalopatia com ou sem asterixis (flapping)
Esclerótica ictérica
Telangiectasias aracniformes, também conhecidas como aranha vascular, no rosto, tórax ou abdome
Ginecomastia
Hepatomegalia ou esplenomegalia
Ascite
Cabeça de medusa com ou sem sopro de Cruveilhier-Baumgarten
Hipogonadismo
Unhas de Terry (unhas brancas)
Eritema palmar.
A visualização das narinas e da orofaringe às vezes pode identificar uma origem de sangramento que não necessita de manejo endoscópico, pois epistaxe ou sangramento gengival pode ocasionalmente mimetizar hemorragia digestiva alta.
A realização de exame de toque retal é mandatória. A inspeção visual do períneo pode descartar a presença de hemorroidas externas. Exame de sangue oculto nas fezes deve ser realizado.
O grau, o local e a característica da dor e do desconforto podem ser úteis. Na úlcera péptica, a ingestão de alimentos frequentemente melhora a dor abdominal; é comum ocorrer sensibilidade à palpação na região epigástrica média. O sangramento às vezes é acompanhado de dor na região epigástrica média ou de dor retroesternal em pacientes com laceração de Mallory-Weiss. A fístula aortoentérica pode se apresentar com dor abdominal ou dorsalgia significativas e febre.
A esofagite às vezes está associada à rouquidão. A caquexia deve levantar a suspeita de um tumor gastrointestinal ou outro tipo de tumor. Além disso, pacientes que apresentam tumores do trato gastrointestinal superior têm uma massa abdominal palpável e/ou hepatomegalia.
Exames laboratoriais e de imagem
Os testes decisivos a serem realizados nos pacientes com HDA incluem o hemograma completo e índices de coagulação (razão normalizada internacional e tempo de protrombina). Uma vez que os pacientes com HDA podem sofrer uma rápida deterioração clínica, o sangue deve ser enviado para tipagem e prova cruzada, para o caso de um uso de hemoderivados se tornar necessário.
Um nível elevado de ureia pode frequentemente ser observado na HDA; à medida que o sangue passa ao longo do intestino delgado e é parcialmente digerido, o nível de ureia e a relação ureia/creatinina podem aumentar.
Se a origem do sangramento não for evidente a partir da anamnese e do exame físico, uma tomografia computadorizada abdominal com contraste oral e intravenoso deve ser realizada.
Endoscopia
A endoscopia é altamente eficaz para diagnosticar e tratar a maioria dos casos de HDA ao mesmo tempo.[2]
Momento para realização da endoscopia
Em geral, a endoscopia deve ser realizada em até 24 horas após a internação hospitalar, uma vez que o paciente estiver hemodinamicamente estável.[10][17][27][37][38][39][40][41]
Em ambientes adequados, a endoscopia pode ser usada para avaliar a necessidade de internação hospitalar. Quando avaliados no ambiente do pronto-socorro, até 46% dos pacientes hemodinamicamente estáveis, avaliados quanto à presença de hemorragia digestiva alta por meio de endoscopia alta e que apresentam sinais de baixo risco para sangramento recorrente, podem receber alta com segurança e ser acompanhados como pacientes ambulatoriais.[34][64] A endoscopia está também associada a uma redução da necessidade de transfusão sanguínea, do tempo de permanência na unidade de terapia intensiva e do tempo total de internação.[65]
Manejo endoscópico
As opções para hemorragia não relacionada a varizes incluem:[2][10][41]
Cauterização térmica (sondas aquecedoras, sondas bipolares, coagulação com plasma de argônio)
Clipes mecânicos (desde os pequenos clipes do sistema "through-the-scope" até os clipes do sistema "over-the-scope")
Injeção de soro fisiológico ou adrenalina diluída para induzir tamponamento juntamente com:
Outro esclerosante, ou
Cauterização, ou
Clipes
Pó hemostático aplicado na forma de spray para controlar o sangramento agudo, seguido por uma modalidade terapêutica adjuvante (por exemplo, terapia térmica ou mecânica) para oferecer uma hemostasia durável.[42][43] Pós hemostáticos estão disponíveis nos EUA e em algumas outras partes do mundo.[44][45][46][47][48]
As opções para hemorragia por varizes incluem:[49]
Ligação varicosa
Escleroterapia.
Biópsias da mucosa gástrica obtidas durante a endoscopia devem ser enviadas ao laboratório para teste de H pylori e histologia.
Nos EUA, a injeção endoscópica de cianoacrilato pode ser usada para varizes gástricas. Entretanto, ela não está amplamente disponível e só deve ser realizada por endoscopistas com treinamento específico, com radiologistas intervencionistas experientes disponíveis caso haja complicação.[36]
Se a localização do sangramento não puder ser identificada na endoscopia ou o sangramento não puder ser controlado, a arteriografia visceral ou a angiotomografia são os próximos passos apropriados.[66][67]
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