Abordagem
A avaliação de abortamento habitual normalmente começa depois do terceiro aborto espontâneo consecutivo. No entanto, dependendo dos critérios do médico e da presença de outros fatores como idade materna, as investigações podem ser iniciadas depois de 2 abortos espontâneos. A prevalência e a frequência das causas encontradas após 2 abortos espontâneos são semelhantes às encontradas após 3 ou mais abortos espontâneos.[4]
História
É necessário obter uma história para confirmar o diagnóstico clínico de abortamento habitual e para tentar descobrir qualquer causa subjacente dessa condição. É comum começar a colher a história com informações demográficas básicas como:
Idade materna e paterna
Etnia
Profissão
Consanguinidade.
Embora seja um assunto delicado, informações sobre a paternidade de todas as gestações, e se o parceiro já teve algum filho em relações anteriores, devem ser obtidas. Depois, deve-se obter informações detalhadas sobre cada gestação, de preferência em ordem cronológica, incluindo abortos espontâneos e nascimentos. Para todos os abortos espontâneos, a história precisa incluir:
A idade gestacional em que ocorreu o aborto espontâneo
Como o diagnóstico de aborto espontâneo foi feito
Achados na ultrassonografia, se tiver sido usada
Detalhes sobre como o aborto espontâneo foi tratado
Resultados de qualquer cariótipo fetal realizado.
Os abortos espontâneos também podem ser classificados em:
Aborto espontâneo no primeiro trimestre (perda precoce da gestação com <12 semanas de gestação)
Aborto espontâneo no segundo trimestre (perda tardia da gestação com >12 semanas de gestação).
O limiar gestacional para a definição de aborto espontâneo varia entre os países e regiões: nos EUA geralmente é de 20 semanas (mas pode variar em diferentes estados); no Reino Unido e na Europa, o limiar gestacional para aborto espontâneo é de 24 semanas.[26][1][70] A perda gestacional é definida como natimorte quando ocorre após o limiar gestacional para aborto espontâneo.
Essas informações podem ajudar a definir a possível etiologia e o tipo da avaliação adicional necessária. Também é importante perguntar se a paciente estava seguindo algum tratamento para prevenção de abortamento habitual.
De modo semelhante, no caso de nascidos vivos, as seguintes informações precisam ser documentadas:
Idade gestacional no nascimento
Complicações durante a gestação e o parto
Modo de parto
Peso do bebê
Condição atual do bebê.
A história ginecológica deve incluir:
História menstrual completa, incluindo último período menstrual, duração do ciclo, regularidade do ciclo e sintomas de sangramento intermenstrual
História de esfregaço cervical e qualquer tratamento prévio para esfregaços anormais, como excisão da zona de transformação por grande alça (LLETZ) ou biópsia em cone
História contraceptiva, como método, duração de uso e efeitos adversos (se relevantes)
História de doença inflamatória pélvica prévia
História de tratamentos de infertilidade (por exemplo, indução de ovulação ou concepção assistida).
A história médica deve incluir, especificamente:
Investigação sobre a presença de doença autoimune, artrite, diabetes mellitus, disfunção tireoidiana, trombose vascular e distúrbios cutâneos
Uma história familiar sobre as condições clínicas mencionadas acima
Uma história familiar de anomalias congênitas, abortamento habitual ou complicações da gestação.
A história cirúrgica deve ter como foco:
Cirurgia abdominal prévia
Cirurgia cervical (por exemplo, biópsia em cone com bisturi) ou cirurgia uterina (por exemplo, ressecção septal histeroscópica ou miomectomia)
O número de esvaziamentos uterinos cirúrgicos realizados como opção de tratamento para aborto espontâneo prévio.
Devem-se obter informações sobre quaisquer medicamentos tomados regularmente e alergias medicamentosas. É importante perguntar sobre o uso de ácido fólico se a paciente estiver tentando engravidar. A história social deve incluir o status de tabagismo e o número de cigarros fumados por dia, a quantidade de álcool ingerido e a quantidade de cafeína consumida.
Exame físico
Deve ser feita uma avaliação geral da paciente, incluindo a medição do IMC. É necessário observar especificamente a presença de hirsutismo ou acne (podem ser sinais de síndrome do ovário policístico). A palpação abdominal é rotina para descartar massas grandes, como miomas. Um exame especular é realizado para descartar anomalia estrutural cervical óbvia. O exame bimanual é realizado para avaliar o tamanho uterino e a presença de massas anexiais.
Investigação laboratorial
Abortamento espontâneo idiopático habitual é o tipo mais comum de abortamento habitual e é um diagnóstico de exclusão quando todas as investigações solicitadas são normais ou têm um resultado negativo. Investigações laboratoriais são as investigações mais importantes para abortamento habitual. Os resultados de alguns desses testes podem diagnosticar uma causa de abortamento habitual. As investigações devem ser escolhidas com base em evidências e ter como foco os possíveis fatores causadores e o tratamento disponível que pode melhorar o desfecho da gestação.[26]
Os exames de sangue iniciais para todos as pacientes com abortamento habitual podem incluir:
Hemograma completo
Grupo sanguíneo e anticorpos
Anticorpos antifosfolipídeos (ensaio de imunoadsorção enzimática [ELISA] para anticorpos anticardiolipina imunoglobulina G [IgG] e imunoglobulina M [IgM]; anticoagulante lúpico usando o tempo do veneno da víbora de Russel diluído, tempo de coagulação de caolim ou tempo de tromboplastina parcial ativada; e ELISA para IgG e IgM para anticorpos para beta-2-glicoproteína-1).[1]
Embora algumas diretrizes nacionais não recomendem o rastreamento periódico para distúrbios tireoidianos, diabetes mellitus e hiperprolactinemia na ausência de sintomas, essas condições podem ser tratadas com facilidade quando existir a possibilidade de melhora do desfecho da gestação e, assim, costumam ser solicitados em muitos hospitais.
O rastreamento de trombofilia (mutação do gene de fator V de Leiden, mutação do gene G20210A de protrombina, ensaios de proteína S e C, ensaio de resistência à proteína C ativada e ensaio de antitrombina) pode identificar uma condição associada.[26][27][71] A American Society for Reproductive Medicine recomenda o rastreamento da paciente caso haja história pessoal de tromboembolismo venoso ou caso a paciente tenha um parente em primeiro grau com trombofilia conhecida ou suspeita; em outros casos, o rastreamento não é recomendado.[2] As diretrizes do Reino Unido e dos EUA não recomendam o rastreamento de trombofilia hereditária em mulheres com abortamento habitual ou história de perda fetal, respectivamente.[40][41] A avaliação direcionada para trombofilia hereditária pode ser considerada em circunstâncias clínicas específicas.[41]
Não existem evidências para o rastreamento de rotina de vários autoanticorpos (por exemplo, fator antinuclear, anticorpo de músculo liso e mitocondrial) e de anticorpos tireoidianos, pois eles não estão claramente associados a abortamento habitual e/ou não há nenhum tratamento recomendado disponível. De modo semelhante, não devem ser realizadas investigações de células natural killer, a não ser que façam parte de um ambiente de pesquisa.[72]
Análises genéticas
É importante confirmar o cariótipo de um feto abortado, pois o achado de um cariótipo anormal fornece um prognóstico melhor em uma gestação futura e tranquiliza a paciente indicando que isso provavelmente foi um evento aleatório. A análise citogenética de um segundo aborto espontâneo geralmente é recomendada antes da realização de outros exames, pois se os produtos da concepção forem anormais, investigações adicionais não serão necessárias, uma vez que o aborto espontâneo se deve ao cariótipo anormal.[60] Essa estratégia geralmente é usada em mulheres mais velhas, pois a incidência de aneuploidia é maior nessas mulheres.[73][74] A análise cromossômica por microarray mostrou estar associada a uma taxa elevada de detecção de anomalias cromossômicas em comparação com a cariotipagem; no entanto, algumas dessas anomalias são variantes de significado incerto.[75]
O cariótipo de ambos os parceiros para descartar a translocação robertsoniana equilibrada pode ser considerado. Embora o conhecimento desse problema talvez permita a realização de aconselhamento genético, não necessariamente muda o plano de tratamento (pois a intervenção ativa envolveria fertilização in vitro (FIV) com ou sem diagnóstico genético pré-implantacional para substituir somente embriões cromossomicamente normais, o que não melhora as proporções de nascidos vivos).[76][77][78] Além disso, esses casais têm desfechos de gestação encorajadores, com proporção de nascidos vivos de 70% na gestação subsequente. Assim, a cariotipagem parental de rotina para anomalias cromossômicas não é recomendado. Ela deve ser oferecida apenas quando o cariótipo dos produtos da concepção mostrar uma anomalia cromossômica estrutural desequilibrada, ou se não houver tecido da gestação disponível para testagem, ou se o teste do tecido gestacional não for bem sucedido.[26]
Rastreamento para infecção
Não é necessário ou benéfico realizar universalmente um swab vaginal elevado em todas as pacientes com aborto recorrente para detectar infecções vaginais, incluindo vaginose bacteriana.[26] O rastreamento e o tratamento sistemáticos da vaginose bacteriana em gestações de baixo risco não parecem reduzir o risco de aborto espontâneo tardio ou nascimento pré-termo espontâneo.[79][80] As pacientes com abortos recorrentes que são examinadas e tratadas para vaginose bacteriana no início da gravidez podem ter um risco menor de outro aborto espontâneo tardio ou nascimento pré-termo.[80][81] A endometrite crônica pode ser tratada com êxito com antibióticos; no entanto, não está claro se isso leva a um aumento na proporção de nascidos vivos.[57]
Exames de imagem e investigações cirúrgicas
As diretrizes recomendam que uma ultrassonografia transvaginal ou transabdominal, idealmente tridimensional, seja organizada para todas as pacientes como parte das investigações iniciais, para descartar malformações uterinas congênitas óbvias e para avaliar a morfologia de ambos os ovários.[26][82] No entanto, as evidências para o tratamento e os desfechos de malformações uterinas e síndrome do ovário policístico na próxima gestação continuam inconclusivas, e as pacientes precisam ter conhecimento disso antes se submeterem à ultrassonografia.
A ultrassonografia tridimensional (3D) não é invasiva e oferece diagnóstico e classificação precisos das anomalias uterinas congênitas. Além disso, ela é extremamente reprodutível e não depende do operador, pois o volume é gerado pelo escaneamento automático pelo transdutor mecânico. Ela pode eliminar a consideração de outras investigações cirúrgicas, como histeroscopia ou laparoscopia diagnóstica.[83] A sono-histerografia ou a ultrassonografia com infusão de soro fisiológico podem ser consideradas se a ultrassonografia tridimensional não estiver disponível.[84] A RNM pode ser usada para diagnosticar anomalias müllerianas complexas, ou se os achados de outras imagens forem inconclusivos.[85]
Em uma paciente com abortos espontâneos no segundo trimestre ou história sugestiva de incompetência cervical, a ultrassonografia transvaginal pode ser realizada no segundo trimestre e depois em série para medir o comprimento cervical, já que isso estima o risco de nascimento pré-termo.[86] Em não gestantes, a medição do comprimento cervical não tem sido útil para estimar o desfecho em uma gestação subsequente. Um comprimento cervical >25 mm no segundo semestre de gestação é associado a um risco reduzido de parto prematuro.[86]
Investigações cirúrgicas (histeroscopia ou laparoscopia diagnóstica) geralmente só serão consideradas se as investigações mencionadas anteriormente estiverem normais. Mesmo assim, elas não costumam ser realizadas, a não ser que haja uma indicação específica. A histeroscopia agora é realizada somente quando existem dúvidas sobre o diagnóstico de uma anomalia uterina. Medidas terapêuticas podem ser realizadas simultaneamente, como remoção de pólipos endometriais, adesiólise endometrial e correção de anomalias uterinas.[21][22] De modo similar, a laparoscopia diagnóstica era usada tradicionalmente para diagnosticar útero bicorno, mas, com os avanços da ultrassonografia, ela raramente é realizada agora para essa indicação.
Eventos comuns de perda de gestação e achados de ultrassonografia[87]
Perda gestacional bioquímica:
Gestação típica <6 semanas
Nenhuma atividade fetal detectada
Gestação não localizada na ultrassonografia
Os níveis de gonadotrofina coriônica humana (beta-hCG) estão baixos e, em seguida, diminuem.
Perda gestacional precoce:
Gestação tipicamente entre 6 e 8 semanas
Nenhuma atividade fetal detectada
Saco vazio ou aumentado com estruturas mínimas sem atividade cardíaca fetal
Os níveis de beta-hCG mostram uma elevação inicial e, em seguida, diminuem.
Perda gestacional tardia:
Gestação típica >12 semanas
Perda de atividade cardíaca fetal
Comprimento craniocaudal e atividade cardíaca fetal previamente identificados
A beta-hCG sobe, e então permanece estática ou cai.
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