Etiologia

É comum dividir as associações de abortamento habitual nas seguintes categorias:

  • Genética

  • Anatômica

  • Imunológica

  • Trombofílica

  • Endocrinológica

  • Infecciosa

  • Fator masculino

  • Ambiental

  • Inexplicado.

Genética

Anomalias cromossômicas parentais

São responsáveis por cerca de 3% a 5% das pacientes que apresentam abortamento habitual e, na maioria das vezes, são translocações recíprocas ou robertsonianas equilibradas.[14] Translocação robertsoniana é uma forma comum de reorganização cromossômica que envolve os cromossomos 13, 14, 15, 21 ou 22. Ela é equilibrada e não gera excesso nem deficit de material genético, não causando, portanto, nenhum problema de saúde. Se essas anomalias forem detectadas, será indicado o encaminhamento para um geneticista clínico. Pacientes com uma translocação não equilibrada têm de 5% a 10% de chance de uma gestação que pode resultar em crianças com deficiência e, portanto, têm direito a diagnóstico pré-natal. No entanto, pacientes com translocação equilibrada têm de 50% a 70% de chance de dar à luz uma criança saudável se forem monitoradas rigorosamente, examinadas em relação a outras causas tratáveis e receberem cuidados de suporte.[15][16]

Anomalia cromossômica do feto

  • É a causa mais comum de aborto espontâneo. Responsável por até 70% dos abortos espontâneos precoces, mas por apenas 20% dos abortos espontâneos que ocorrem entre 13 e 20 semanas de gestação.[17] Portanto, a idade gestacional em que um aborto espontâneo ocorre pode ajudar a identificar sua causa. Os defeitos costumam ser trissomia, poliploidia ou monossomia. O risco de ter um feto com anomalia cromossômica é maior em mães com mais de 35 anos, confirmando a associação entre idade materna avançada e aneuploidia. No entanto, seu mecanismo subjacente é incerto.[17]

  • No contexto de abortamento habitual, a frequência de anomalia cromossômica fetal diminui significativamente com o aumento do número de abortos espontâneos anteriores.[13] Assim, um cariótipo fetal anormal em um aborto espontâneo é um fator prognóstico importante e sugere uma percentagem de desfechos favoráveis de aproximadamente 75% na próxima gestação.[13][17]

Outras causas genéticas

Têm-se sugerido em alguns estudos pequenos que anomalias genéticas moleculares como a inativação extremamente distorcida do cromossomo X como uma possível causa de abortamento habitual. No entanto, estudos maiores não conseguiram confirmar essa associação.[18][19]

Anatômica ou estrutural

É difícil avaliar a contribuição exata da anomalia uterina congênita na ocorrência de abortamento habitual, devido à grande diversidade de critérios e técnicas para diagnosticar a morfologia uterina anormal. A prevalência de anomalias uterinas como útero septado, bicorno ou arqueado na população geral é de 5.5% e parece ser mais alta em pacientes com história de aborto espontâneo (13.3%).[20] No entanto, é difícil estabelecer uma ligação de causa direta. Evidências limitadas de ensaios clínicos não randomizados mostram uma melhora nos desfechos da gestação quando essas anomalias são corrigidas cirurgicamente.[21][22] No Reino Unido, o National Institute for Health and Care Excellence (NICE) publicou diretrizes que recomendam a ressecção histeroscópica em pacientes com septo uterino e história de perda gestacional recorrente ou parto pré-termo.[23]

Incompetência cervical é uma anomalia estrutural associada ao abortamento habitual, principalmente no segundo trimestre. Infelizmente, não existem testes objetivos que identificam de modo consistente mulheres com insuficiência cervical quando não estão grávidas. Assim, o diagnóstico costuma se basear em uma história de dilatação indolor do colo uterino ou ruptura espontânea de membranas, seguida por um aborto espontâneo no segundo trimestre. O mecanismo exato de como essa afecção provoca aborto espontâneo no segundo trimestre ainda é incerto. O colo uterino provavelmente não tem uma mera função mecanística. Ainda não foi confirmado se o tratamento com inserção profilática de sutura cervical melhora os desfechos da gestação.[24]

Imunológica

A síndrome antifosfolipídica (SAF) é encontrada em cerca de 15% das pacientes que apresentam abortamento habitual.[25] O rastreamento de SAF é recomendado para todas as mulheres que apresentam abortamento habitual, pois elas podem se beneficiar com o tratamento.[26][27][28][1]

Diagnóstico de SAF

A presença de pelo menos um componente clínico e um laboratorial dos seguintes critérios é frequentemente usado como guia para o diagnóstico de SAF:[29]

Os critérios clínicos incluem:

  • Trombose vascular (arterial ou venosa) em qualquer tecido ou órgão

  • 3 ou mais abortos espontâneos consecutivos antes de 10 semanas de gestação

  • 1 ou mais óbitos inexplicados de um feto morfologicamente normal em 10 semanas de gestação ou mais

  • 1 ou mais nascimentos prematuros de um feto morfologicamente normal antes de 34 semanas de gestação associados a pré-eclâmpsia grave ou insuficiência placentária.

Os critérios laboratoriais incluem:

  • Títulos médios ou altos de anticorpos anticardiolipina (aCL) imunoglobulina G (IgG) e/ou imunoglobulina M (IgM) em 2 ou mais testes com um intervalo de pelo menos 12 semanas

  • Presença de anticoagulante lúpico (AL) em 2 ou mais testes com um intervalo de pelo menos 12 semanas

  • Altos títulos de anticorpos antibeta-2-glicoproteína-1 IgG e/ou IgM em 2 ou mais testes com um intervalo de pelo menos 12 semanas.

O American College of Rheumatology (ACR) e a European Alliance of Associations for Rheumatology (EULAR) produziram critérios de classificação de alta especificidade destinados à pesquisa da SAF.[30]

Outros estados imunológicos

Células Natural Killer desreguladas (no sangue periférico ou no endométrio) têm sido associadas a abortos recorrentes e a falhas de implantação recorrentes.[31][32]​ Mais pesquisas se fazem necessárias.

Os fatores de risco imunológicos adicionais implicados no aborto recorrente incluem fator antinuclear, anticorpos anti-tireoidianos, anticorpos IgA contra transglutaminase (tTG-IgA), células T regulatórias (Tregs), compartilhamento de HLA e associações de HLA e polimorfismos de citocinas.[26][33][34]​ Existe, no entanto, uma ausência de evidências de alto nível para dar suporte à associação entre muitos destes fatores imunológicos e o aborto recorrente.[33] Uma revisão sistemática de 20 ensaios clínicos de diversas imunoterapias como imunização com células paternas, imunização com células de doadores terceiros, infusão de membrana trofoblástica e imunoglobulina intravenosa não mostrou benefícios significativos na melhora das proporções de nascidos vivos em relação ao placebo.[35]

Trombofilia

As mulheres com abortos recorrentes devem realizar testes para trombofilia adquirida, particularmente para anticoagulante lúpico e anticorpos anticardiolipina.[26][1]

Trombofilia hereditária

Metanálises relatam que a mutação FVL (associada à resistência à proteína C ativada) e a mutação do gene da protrombina estão associadas a abortos recorrentes e a desfechos adversos na gestação.[36][37]

Duas revisões sistemáticas concluíram que a prevalência de trombofilia hereditária em mulheres com abortos recorrentes é semelhante à da população em geral.[38][39]​ As diretrizes do Reino Unido e dos EUA não recomendam o rastreamento rotineiro de trombofilia hereditária em mulheres com abortamento recorrente ou história de perda fetal, respectivamente.[40][41] A avaliação direcionada para trombofilia hereditária pode ser considerada em circunstâncias clínicas específicas.[41]

Endocrinológica

Síndrome do ovário policístico

  • A prevalência de síndrome do ovário policístico (SOP) em abortamento habitual varia de 4.8% a 82%, pois havia uma enorme variação nos critérios para diagnosticar SOP antes da disponibilidade dos critérios de diagnóstico de Rotterdam.[42][43] Assim, é necessário reavaliar a prevalência de SOP no abortamento habitual usando os critérios de Rotterdam.

  • Os mecanismos mais prováveis pelos quais a SOP pode causar abortamento habitual são hiperandrogenismo, obesidade e resistência insulínica, embora novas investigações sejam necessárias para avaliar isso.[42][44] Constatou-se que pacientes com SOP e morfologia ovariana anormal na ultrassonografia, hormônio luteinizante (LH) elevado e testosterona elevada têm proporções de nascidos vivos semelhantes às das mulheres sem SOP.[45]

Problemas da fase lútea

Esses distúrbios são diagnosticados quando existem baixos níveis de progesterona e a data histológica do endométrio é 2 ou mais dias anterior à data menstrual em, no mínimo, 2 ciclos menstruais. A associação de problemas da fase lútea a abortamento habitual é controversa, mas acredita-se que esteja relacionada a diminuição da produção de progesterona pelo corpo lúteo, secreção de LH anormal ou resposta insatisfatória do endométrio à progesterona disponível.[46] Embora uma revisão sistemática do tratamento com progestogênio não tenha mostrado nenhuma diferença significativa no risco de aborto espontâneo, uma análise de um subgrupo de ensaios clínicos envolvendo mulheres que tiveram abortamentos habituais mostrou uma diminuição significativa na taxa de aborto espontâneo.[47] [ Cochrane Clinical Answers logo ] ​​ Um grande ECRC demonstrou que não há benefício em administrar suplementação de progesterona a mulheres com perdas gestacionais recorrentes inexplicadas.[48] No entanto, uma reavaliação recente dos resultados deste estudo e de outro estudo envolvendo a suplementação com progesterona em mulheres com sangramento na gravidez mostra uma tendência de aumento do benefício da suplementação com progesterona com o número crescente de abortos espontâneos.[49]

Hiperprolactinemia

A função de hiperprolactinemia em abortamento habitual é debatida.[46] Além disso, um ensaio clínico randomizado e controlado que constatou uma melhora no êxito da gestação quando pacientes com hiperprolactinemia que já tiveram abortamento habitual foram tratadas tem sido criticado devido a sua metodologia.[50] Assim, a relação ainda é incerta.

Distúrbios tireoidianos não diagnosticados e não tratados

Esses distúrbios são associados aos abortos espontâneos, mas, quando as mulheres são eutireoideas durante o tratamento, os distúrbios tireoidianos não são fatores de risco para abortamento habitual, e essas gestações podem chegar ao fim com complicações mínimas.[51] Constatou-se que a presença de anticorpos tireoidianos está associada a uma taxa mais alta de aborto espontâneo.[52] No entanto, a presença da associação não significa causa e pode ser explicada por mecanismos como um estado autoimune subjacente ou insuficiência tireoidiana leve.[52] Embora não exista nenhum tratamento disponível para a autoimunidade contra o aloenxerto fetal, o rastreamento de hipotireoidismo subclínico pode ser feito, pois as pacientes podem ser tratadas e ter desfechos melhores em gestações.[51]

Diabetes mellitus

Quando não controlado, o diabetes mellitus causa abortos espontâneos e malformações congênitas. No entanto, quando bem controlado, o diabetes mellitus isoladamente não é um fator de risco para aborto espontâneo e, assim, não deve causar abortamento habitual.[53]

Infecciosa

As infecções graves foram associadas a abortos espontâneos. No entanto, para que a infecção seja considerada uma causa de aborto recorrente, a bactéria ou vírus deve ser capaz de persistir no trato genital (para facilitar um estado de portador infeccioso) ou ser capaz de causar infecção placentária repetidamente.[26]​​[54]​ A presença de vaginose bacteriana é um fator de risco reconhecido para aborto espontâneo tardio e nascimento pré-termo quando detectada no início da gestação.[55]

Não existem evidências de que outras infecções bacterianas ou virais, como por Chlamydia, Ureaplasma, Mycoplasma, citomegalovírus, vírus adeno-associado, papilomavírus humano (HPV), toxoplasmose, rubéola, herpes-vírus e listeriose, estejam associadas a abortamentos habituais no primeiro trimestre.[54][56] O fato de ser portador do vírus do herpes simples não implica maior suscetibilidade a abortamentos habituais.

Há evidências crescentes de que mulheres com perdas gestacionais recorrentes têm uma incidência aumentada de endometrite crônica (29.67%), diagnosticada por visualização histeroscópica, avaliação histológica e/ou coloração de CD138 na biópsia do endométrio. A endometrite crônica pode ser tratada com êxito com antibióticos; no entanto, não está claro se isso leva a um aumento na proporção de nascidos vivos.[57]

Fator masculino

Tem havido interesse em investigar as causas do fator masculino na perda gestacional recorrente, especificamente a fragmentação do DNA espermático. Duas metanálises revelaram uma associação entre o aumento da fragmentação do DNA espermático nos parceiros do sexo masculino e abortamento habitual inexplicado.[58][59] Testes para avaliar a fragmentação do DNA espermático medem quebras de DNA de fita simples e/ou dupla nos espermatozoides direta ou indiretamente.

A European Society of Human Reproduction and Embryology (ESHRE) recomenda a realização de testes de fragmentação de DNA espermático para fins explicativos nas perdas gestacionais recorrentes, enquanto outras sociedades não endossam essa recomendação.[1][60]​ Atualmente, não há consenso internacional geral para oferecer este teste como um exame diagnóstico de rotina.

Ambiental

Substâncias químicas

Existe a preocupação de que substâncias químicas, ingeridas ou presentes nas proximidades, podem contribuir para abortamento habitual. No entanto, é difícil fornecer informações exatas sobre o impacto dessas substâncias na reprodução, pois não existem evidências prontamente disponíveis.[61] A possibilidade de uma substância química ambiental causar aborto espontâneo também depende do tipo e da duração da exposição, da extensão em que ela entra na circulação fetal, da idade gestacional da gestação no momento da exposição e de outros fatores gestacionais relacionados, como a presença de algum distúrbio clínico. Está claro que metais pesados (por exemplo, chumbo e mercúrio), solventes orgânicos, radiação ionizante e medicamentos teratogênicos são toxinas, e a exposição pode contribuir para a perda gestacional.[61] Se houver suspeita de que a exposição a esses perigos ocupacionais é a causa de um aborto espontâneo, é melhor evitar um novo contato, se possível, com a esperança de evitar a ocorrência de outro aborto espontâneo.

Bebidas alcoólicas e tabagismo

O álcool é uma substância teratogênica que pode causar síndrome alcoólica fetal, com uma relação entre dose e resposta.[61] Nenhuma quantidade de álcool é considerada segura durante a gestação e, mesmo moderado, o consumo de bebidas alcoólicas pode causar um aborto espontâneo.[62] Assim, pode-se presumir que, se não for removido, esse risco também está relacionado ao abortamento habitual. De modo similar, muitos estudos encontraram uma associação dose-dependente entre aborto espontâneo e tabagismo. Infelizmente, é difícil validar com exatidão a precisão dos relatos de tabagismo com medições bioquímicas de tabaco.[61] Não existem evidências sobre adaptação de estilo de vida e seu efeito em mulheres com aborto espontâneo inexplicado.

Cafeína

A associação não é tão evidente com cafeína. Diversos estudos têm observado uma correlação positiva entre a ingestão materna de cafeína e o risco de aborto espontâneo. Infelizmente, a maioria desses estudos tem problemas metodológicos e possíveis tendências que não permitem comparar os resultados. Assim, as evidências para essa ligação causal continuam sendo inconclusivas.[63] Fatores genéticos podem estar envolvidos, o que é demonstrado por um possível aumento no risco de abortamento habitual com aumento da ingestão de cafeína quando polimorfismos genéticos estão presentes.[64]

Radiografias diagnósticas, radiação, viagens aéreas, ultrassonografias e cosméticos

Acredita-se que radiografias diagnósticas, viagens aéreas, ultrassonografias e cosméticos como esmaltes e tintura de cabelo não causam abortamento habitual.[61] Radiação <5 rad não é teratogênica, e a maioria das imagens radiológicas de diagnóstico emitem menos que isso. Além disso, qualquer risco atribuído por radiação baixa é muito menor que o risco a priori de aborto espontâneo ou anomalia congênita. Também acredita-se que a ultrassonografia é segura quando realizada para as indicações certas, e reduz a necessidade de exposição à radiação.[65]

Inexplicada

Nenhuma causa ou associação é encontrada em >50% das pacientes com abortamento habitual, e essas pacientes são enquadradas na categoria de abortamento habitual inexplicado ou idiopático.[4][5] No entanto, elas têm um prognóstico excelente. Até 75% delas conseguem dar à luz em futuras gestações quando recebem apenas cuidados de suporte (com ultrassonografias periódicas para tranquilização) e apoio psicológico em uma unidade de avaliação de gestação precoce (UAGP) dedicada.[7][26]​​​ Assim, o tratamento empírico nesse grupo de mulheres é desnecessário e não recomendado.[26]

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