Abordagem
Pacientes com suspeita clínica de esteatorreia devem primeiro ter o diagnóstico confirmado por exame para gordura nas fezes. Se confirmado, a anamnese detalhada e o exame físico devem identificar os que tenham uma possível doença pancreática ou doença intestinal que possa causar esteatorreia. Exames de sangue e de fezes subsequentes podem restringir o diagnóstico diferencial e direcionar investigações adicionais.
História
Pacientes com esteatorreia geralmente relatam fezes volumosas e gordurosas, difíceis de descerem pela descarga. Isso ocorre somente após refeições contendo gordura e, portanto, pode não ser um sintoma diário. Como a esteatorreia ocorre após as refeições, ela geralmente ocorre 2 a 3 vezes ao dia em indivíduos com uma dieta com conteúdo lipídico normal. Perda de peso e anorexia também podem se desenvolver ao longo do tempo devido à desnutrição.
Como qualquer doença que cause diarreia pode se manifestar como esteatorreia, existem alguns poucos sintomas clínicos que podem diferenciar entre as muitas etiologias subjacentes.
Dor abdominal: geralmente epigástrica, é comum em pacientes com pancreatite crônica. Ela pode ser de natureza constante ou intermitente e tende a melhorar com o tempo, à medida que o pâncreas se torna "esgotado".[29] É nesse estágio que a esteatorreia pode aparecer como uma manifestação da insuficiência exócrina.
Icterícia: comum em pacientes com coléstase, mas não é frequente em pacientes com cirrose até os estágios finais do processo da doença.
Prurido: característico da colangite biliar primária (CBP), embora a maioria dos pacientes com CBP sejam inicialmente assintomáticos.
Doença celíaca, giardíase e supercrescimento bacteriano: podem causar distensão abdominal, flatulência e dores em cólica em associação com a esteatorreia. Cada vez mais se reconhece que a doença celíaca tem características de apresentação mais sutis, como anemia sem explicação, perda de peso ou osteoporose, na ausência de diarreia.[30][31][32]
A doença de Crohn: geralmente apresenta dor na parte inferior do abdome em adultos jovens, com ou sem diarreia. Sintomas extraintestinais, como dor nas articulações, uveíte e fadiga, ocorrem em até 10% dos pacientes.[33] A doença de Crohn pode ser precedida por uma classificação como síndrome do intestino irritável em cerca de 25% dos pacientes.[34]
Aumento de apetite, combinado com perda de peso, intolerância ao calor e queda de cabelos: sugerem hipertireoidismo.
Deve-se solicitar informações a respeito das características a seguir na história médica de um paciente.
Ressecção cirúrgica anterior do estômago, pâncreas (por exemplo, operação de Whipple, pancreatectomia com preservação do piloro ou pancreatectomia total) ou do intestino delgado (por exemplo, ressecção ileal, derivação do jejuno, gastrectomia).
Pancreatite necrotizante aguda grave ou episódios recorrentes de pancreatite aguda. Alguns pacientes com pancreatite crônica não têm história prévia de episódios clínicos de pancreatite (pancreatite indolor).
Câncer na cabeça do pâncreas; tumores nessa região podem obstruir diretamente os ductos pancreáticos e podem estar associados à insuficiência pancreática exócrina.[35]
História de condições de má absorção (por exemplo, doença celíaca, giardíase, doença de Whipple, infecção por vírus da imunodeficiência humana (HIV)/síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS), linfoma, amiloidose gastrointestinal).
Uso de tetraidrolipstatina (orlistate), meclofenamato de sódio ou produtos contendo olestra (um ingrediente substituto de gordura). A disponibilidade de inibidores da lipase de venda livre nos EUA aumentou o uso desses produtos naquele país e levou à possibilidade dos pacientes não reconhecerem seus efeitos adversos.[36]
A dependência alcoólica (como fator de risco para cirrose e pancreatite crônica).
Diabetes, que pode ocorrer na pancreatite crônica.
Infecção do trato respiratório superior/pulmonar recorrente sugestiva de mutações genéticas da fibrose cística.
Exame físico
O exame físico deve focar nos sinais de doenças subjacentes que possam causar esteatorreia. Se possível, as fezes devem ser examinadas para confirmar a esteatorreia. Outras características pertinentes incluem o seguinte.
Aparência geral de emaciação/perda de peso, como pregas temporais, delapidação interóssea e falta de gordura subcutânea. Isso ocorre por má absorção crônica, cirrose em estágio terminal e doença de Crohn extensiva do intestino delgado.
Icterícia na pele, sugestiva de obstrução biliar. A icterícia primeiramente aparece sob a língua, depois na esclera e depois por toda a pele. Marcas de arranhões na pele sugerem prurido associado à cirrose biliar primária (CBP). A doença de Crohn pode apresentar-se com eritema nodoso.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Braços e mãos de um paciente mostrando a presença de eritema nodosoCortesia do CDC/ Dra. Margaret Renz; usado com permissão [Citation ends].
Alterações nas mãos, como baqueteamento digital das unhas, podem ocorrer na fibrose cística e leuconíquia nas unhas devido a hipoalbuminemia por má absorção. Telangiectasia e eritema palmar sugerem cirrose subjacente. Equimoses (hematomas) podem ocorrer devido a anormalidades da coagulação no contexto de cirrose ou deficiência de vitamina K.
Contrações ou espasmos musculares podem ocorrer devido à hipocalcemia.
Ligeiro tremor, bócio, exoftalmia e taquicardia são associados ao hipertireoidismo.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Retração da pálpebra e proptose leveCortesia do Dr. Vahab Fatourechi; usado com permissão [Citation ends].
Sinais pulmonares, como bases pulmonares embotadas e crepitações grossas, ocorrem quando se desenvolve bronquiectasia na fibrose cística.
Sinais abdominais de hepatomegalia ou esplenomegalia, e posteriormente ascite, indicam cirrose. Cicatrizes cirúrgicas de ressecções prévias podem sugerir causas não consideradas na história do paciente. Ocasionalmente, a doença de Crohn pode causar uma massa abdominal inferior, assim como o linfoma do intestino delgado.
Investigações
As investigações laboratoriais e radiológicas devem:
Confirmar esteatorreia
Determinar o tipo de esteatorreia
Avaliar as condições que causaram a má absorção de gordura.
Embora as fezes com gordura tenham uma aparência característica, deve-se confirmar objetivamente o excesso de gordura fecal. Como a má absorção de gordura depende de uma ingestão de gordura alimentar adequada, os pacientes que restringem a composição lipídica das suas dietas, ou estejam em jejum, não terão esteatorreia, independentemente da causa. É, portanto, importante que os pacientes submetidos a exames para identificar gordura fecal consumam aproximadamente 100 g de gordura por dia para assegurar uma avaliação adequada da absorção de lipídios.
Exame para gordura fecal em pacientes com suspeita de esteatorreia
A coloração de Sudão de uma amostra aleatória de fezes homogeneizadas (também conhecida como teste qualitativo de gordura fecal) é tipicamente o exame inicial. Ácido acético e coloração Sudão III são adicionados à amostra fecal, que é então aquecida e colocada em uma lâmina de vidro. A quantidade e o tamanho dos glóbulos de gordura por campo de grande aumento (cga) recebem uma pontuação (normal ≤20/cga, 1-4 micrômetros de tamanho; ligeiramente elevado >20/cga, 1-8 micrômetros de tamanho; definitivamente elevado >20/cga, 6-75 micrômetros de tamanho).[37] Uma modificação desse método demonstrou 94% de sensibilidade e 95% de especificidade no diagnóstico de gordura fecal quando comparado à análise química de gordura.[38]
O esteatócrito é a medida quantitativa de gordura como proporção do todo de uma amostra fecal homogeneizada e centrifugada.[39] Um nível de esteatócrito testado aleatoriamente levemente ácido (normal <10%) foi relatado como tendo 100% de sensibilidade e 95% de especificidade quando comparado à análise quantitativa de gordura de 72 horas.[40]
Análise química de gordura de 72 horas (método van de Kamer) é considerado o exame mais preciso para quantificação da gordura fecal, embora uma amostra de 24 horas seja obtida com maior frequência. Os pacientes precisam de preencher um diário alimentar para garantir o consumo adequado de gordura alimentar durante o exame (100 g/dia).[41] O resultado normal é <7 g de gordura por período de 24 horas (ou <21 g de gordura por período de 72 horas).[42] Deve-se observar que qualquer causa de diarreia de grande volume pode ocasionar níveis de gordura fecal elevados (7 a 14 g/dia) independente de um sistema intacto de absorção de lipídios, de forma que os níveis com discreta elevação sejam interpretados com cautela.[43] A estimativa de gordura fecal é desagradável e trabalhosa, e não é mais realizada em muitos laboratórios.[44][45]
A maioria dos laboratórios realiza primeiro um exame de fezes aleatório (por amostragem) com coloração Sudão. Se for positivo em um paciente com dieta normal, deve ser realizado um exame quantitativo de 24 horas. Um resultado negativo no exame torna a esteatorreia improvável.[46]
As seguintes investigações podem ajudar a determinar se é somente gordura que está sendo mal-absorvida ou também outros nutrientes.
Insuficiência pancreática exócrina pode ser rastreada pela medição da elastase-1 fecal, um exame simples e não invasivo para a insuficiência pancreática exócrina. Essa enzima é produzida no pâncreas e é estável durante o trânsito intestinal; portanto, a concentração fecal da enzima se correlaciona bem com a secreção exócrina do pâncreas.[47] A repetição do exame de elastase-1 fecal deve ser considerada se uma amostra fecal aquosa for relatada pelo laboratório (ela pode estar falsamente baixa devido à diluição) ou quando nenhuma causa definida de insuficiência pancreática exócrina for identificada, para garantir o diagnóstico correto.[35]
Exames mais especializados para insuficiência pancreática exócrina incluem aspiração do conteúdo pancreático após a administração de secretina ou secretina-colecistoquinina, teste respiratório de 14C-trioleína e teste respiratório de colesterol-[1-13C] octanoato.[48][49]
A má absorção de carboidratos pode ser testada com o uso do teste de D-xilose (concentração normal de D-xylose sérica >1.33 mmol/L [20 mg/dL] 1 hora após uma dose oral de D-xylose) e má absorção de proteínas pelo teste de excreção fecal de alfa 1-antitripsina (normal <2.6 mg/g de fezes) ou excreção fecal de quimotripsina (normal >6 U/g).[50]
A deficiência de sais biliares no jejuno pode ser investigada com gama-câmera cintilográfica após a ingestão de ácido homocólico-taurina marcado com selênio 75 (75Se-HCAT). Este teste determina a porcentagem de reabsorção dos ácidos biliares e identifica a absorção prejudicada (retenção <10%).[51][52]
Todos os pacientes com esteatorreia confirmada devem realizar um exame da elastase fecal e, se negativo, um exame de D-xilose e alfa-1-antitripsina. Se todos forem negativo, então deve ser considerado o encaminhamento a um centro especializado para testar a deficiência de sais biliares.
Orientada pelos achados da história e dos exames, qualquer uma das investigações seguintes pode ser apropriada na avaliação de um paciente com esteatorreia.
Laboratório
Elastase-1 fecal ao investigar uma possível insuficiência pancreática exócrina devido à pancreatite crônica. Nível sérico de IgG4 pode ajudar a descartar pancreatite autoimune.
Microscopia das fezes e coprocultura para detecção de ovos, cistos, parasitas ao investigar uma possível infecção por Cryptosporidium, Giardia, microsporídios, Cyclosporidium ou Clostridium difficile. Ensaio imunoenzimático pode ser usado como uma alternativa.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: A eletromicrografia de varredura de uma cultura de Giardia lamblia in vitro. A imagem mostra trofozoítos e um aglomerado de cistos em maturação (abaixo à direita)Cortesia do CDC/Dr. Stan Erlandsen; usado com permissão [Citation ends].
Bilirrubina sérica direta, fosfatase alcalina, testes gama-GT em pacientes com possível obstrução biliar.
O título de IgA-transglutaminase tecidual (tTG-IgA), o nível sérico total de IgA, a IgG peptídeo de gliadina desamidada (DGP-IgG) e a IgG-transglutaminase tecidual (Ig-tTG) (realizada em todos os pacientes com níveis baixos de IgA ou deficiência de IgA) e o anticorpo antiendomísio devem ser considerados nos pacientes com suspeita de doença celíaca.[16][Figure caption and citation for the preceding image starts]: Imagem histológica demonstrando atrofia vilosa do intestino delgado e hiperplasia da cripta na doença celíacaCortesia do Dr. Daniel A. Leffler; usado com permissão [Citation ends].
Os marcadores inflamatórios, como a proteína C-reativa, estão bem relacionados à atividade da doença de Crohn.[53]
Anticorpos antimitocondriais séricos e fosfatase alcalina são os testes de diagnóstico iniciais ao investigar a colangite biliar primária (anteriormente conhecida como cirrose biliar primária). A biópsia hepática pode ser necessária para confirmar o diagnóstico.[54][Figure caption and citation for the preceding image starts]: Padrões de autoanticorpo característicos na colangite biliar primária. Seta branca: coloração antimitocondrial; seta vermelha: coloração de fator antinuclear (FAN) em múltiplos pontos nuclearesCortesia do Dr. DEJ Jones; usado com permissão [Citation ends].
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Aparências histológicas características na colangite biliar primária: (a) estágio inicial da doença; (b) estágio avançado da doença; (c) doença com componente inflamatório significativoCortesia do Professor Alastair Burt, Newcastle University; usado com permissão [Citation ends].
É necessário teste de anticorpo antivírus da imunodeficiência humana (HIV) para confirmar a infecção por HIV.
O teste genético, em busca do regulador da condutância transmembrana ou da mutação no gene do tripsinogênio, ao considerar doenças hereditárias do pâncreas, como fibrose cística.
Os testes de autoanticorpos, como a coloração para anticorpos anticitoplasma de neutrófilos com padrão perinuclear (p-ANCA), pode ajudar no diagnóstico de colangite esclerosante primária.
Avaliação da tireoide por hormônio estimulante da tireoide, hormônios tireoidianos livres e varredura da tireoide com captação de radioiodo (cintilografia) para avaliar hipertireoidismo.
Exames por imagem
TC abdominal com contraste oral e intravenoso para avaliar linfoma do intestino delgado, doença de Crohn ou anormalidades pancreáticas.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Tomografia computadorizada (TC) mostrando espessamento do íleo terminal em um paciente com exacerbação da doença de CrohnCortesia do Dr. Wissam Bleibel, Dr. Bishal Mainali, Dr. Chandrashekhar Thukral e Dr. Mark A. Peppercorn; usado com permissão [Citation ends].
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Tomografia computadorizada (TC) mostrando espessamento do íleo terminal em um paciente com exacerbação da doença de CrohnCortesia do Dr. Wissam Bleibel, Dr. Bishal Mainali, Dr. Chandrashekhar Thukral e Dr. Mark A. Peppercorn; usado com permissão [Citation ends].
A ultrassonografia endoscópica do pâncreas pode ser usada para investigar anormalidades pancreáticas quando a TC não estiver disponível.
Colangiopancreatografia por ressonância magnética (CPRM)/RNM para avaliar doença biliar ou doença nos ductos pancreáticos. Se forem identificadas estenoses relevantes no contexto de sintomas de alarme, ultrassonografia endoscópica ou colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) devem ser realizadas para obter mais informações de imagem e colher amostras de tecido para exame citológico.[55][56] Para estenoses extra-hepáticas, a aquisição de tecido guiada por ultrassonografia endoscópica pode ser preferencial à CPRE.[57][Figure caption and citation for the preceding image starts]: Achados de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) em um paciente com colangite esclerosante primária: estenoses multifocais dos ductos biliares intra e extra-hepáticosCortesia do Dr. Kris Kowdley; usado com permissão [Citation ends].
A CPRM com secretina pode ser considerada se a imagem transversal ou a ultrassonografia endoscópica não for confirmatória e a suspeita clínica de pancreatite crônica permanecer alta.[58]
Endoscópicas
Endoscopia digestiva alta (EDA) e biópsia do intestino delgado, caso esteja investigando um possível caso de doença de Whipple.
A colonoscopia e a biópsia podem ser úteis na investigação de doença de Crohn, microsporídios, infecção por citomegalovírus (CMV) e histoplasmose, enquanto a colonoscopia/endoscopia e a biópsia podem ser úteis na investigação de linfomas. A biópsia por cápsula está surgindo como um exame promissor no diagnóstico de lesões iniciais da doença de Crohn.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Inflamação significativa na parede do cólon, alargamento da submucosa e agregados linfoides densos na submucosaCortesia do Dr. Wissam Bleibel, Dr. Bishal Mainali, Dr. Chandrashekhar Thukral e Dr. Mark A. Peppercorn; usado com permissão [Citation ends].
[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Criptite e abscessos em cripta com distorção morfológica das criptas acompanhadas de inflamação e plasmócitos e linfócitos abundantesCortesia do Dr. Wissam Bleibel, Dr. Bishal Mainali, Dr. Chandrashekhar Thukral e Dr. Mark A. Peppercorn; usado com permissão [Citation ends].
A biópsia retal profunda é necessária para confirmar o diagnóstico de suspeita de amiloidose gastrointestinal.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Vaso sanguíneo com coloração vermelho Congo em biópsia da medula óssea demonstrando birrefringência verde patognomônica de amiloidoseCortesia do Dr. Morie A. Gertz, MD/Mayo Clinic; usado com permissão [Citation ends].
Outra
Teste do hidrogênio no ar expirado ao avaliar supercrescimento bacteriano.[59]
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