Etiologia
A diarreia aguda pode ser classificada com base na fisiopatologia ou etiologia.[14]
Classificação fisiopatológica da diarreia
Uma das classificações fisiopatológicas mais comuns divide a diarreia em duas categorias.
Diarreia inflamatória
Isso indica a presença de um processo inflamatório, que pode ser devido a infecção viral, bacteriana ou parasitária, ou pode desenvolver-se nas fases iniciais da isquemia intestinal, das lesões por radiação ou da doença inflamatória intestinal.
Geralmente está associada a fezes mucoides ou sanguinolentas, tenesmo, febre e dor em cólica intensa.
Na diarreia inflamatória infecciosa, as evacuações costumam ser pouco volumosas, porém frequentes. Portanto, ela geralmente não leva à depleção de volume em adultos, mas pode levar em crianças ou idosos.
A causa mais comum de diarreia infecciosa nos EUA é infecção bacteriana: especialmente por Campylobacter, Salmonella, Shigella, Escherichia coli e Clostridium difficile. Os vírus são mais comuns em crianças que frequentam creches. Protozoários e parasitas são causas comuns de diarreia aguda nos países em desenvolvimento.
Os exames de fezes podem revelar leucócitos, e os testes de sangue oculto podem dar positivo. A pesquisa de leucócitos fecais pode ter o inconveniente de apresentar um alto número de falso-negativos, acarretando baixa sensibilidade do teste; porém, um teste positivo é bastante revelador.
A histologia do trato gastrointestinal é anormal na diarreia inflamatória.
Diarreia não inflamatória
Geralmente as fezes são líquidas, volumosas e frequentes (>10 a 20 evacuações por dia).
A depleção de volume é possível em função do grande volume e frequência das evacuações.
Não há tenesmo, sangue nas fezes, febre ou leucócitos fecais.
Histologicamente, a arquitetura do trato gastrointestinal é preservada.
A diarreia não inflamatória pode ser subdividida em:
A) Diarreia secretória
Há uma alteração no transporte de íons pela mucosa, o que resulta em maior secreção e menor absorção de fluidos e eletrólitos do trato gastrointestinal, especialmente no intestino delgado. A diarreia secretória não tende a diminuir com o jejum. Exemplos de causas são:
Enterotoxinas: podem advir de infecções causadas por Vibrio cholerae, Staphylococcus aureus, E coli enterotoxigênica e, possivelmente, vírus da imunodeficiência humana (HIV) e rotavírus.
Agentes hormonais: peptídeo intestinal vasoativo, câncer pulmonar de células pequenas e neuroblastoma.
Uso de laxantes, ressecção intestinal, sais biliares e ácidos graxos.
A diarreia secretória também é observada na diarreia crônica com doença celíaca, colite colagenosa, hipertireoidismo e tumores carcinoides.
B) Diarreia osmótica
O volume das fezes é relativamente pequeno em comparação ao da diarreia secretória, e a diarreia osmótica melhora ou cessa com o jejum. Ela resulta da presença de solutos (magnésio, sorbitol e manitol) não absorvidos ou mal-absorvidos no trato intestinal, o que causa um aumento na secreção de líquidos para o lúmen intestinal. A medição dos eletrólitos fecais mostra aumento no "gap" osmótico (>50), mas o teste tem valor prático limitado. As fezes (normais ou diarreicas) são sempre isosmóticas (260 a 290 mOsml/L).
A diarreia osmótica pode ser subdividida em:
Má digestão: refere-se ao comprometimento digestório de nutrientes no lúmen intestinal ou nas microvilosidades das células epiteliais da mucosa. Ela pode ocorrer em casos de insuficiência pancreática exócrina e deficiência de lactase.
Má absorção: refere-se ao comprometimento da absorção dos nutrientes. Ela pode ocorrer em caso de supercrescimento bacteriano no intestino delgado, isquemia mesentérica, ressecção intestinal (síndrome do intestino curto) e doença da mucosa (doença celíaca).
Classificação etiológica da diarreia aguda
Com base em fatores etiológicos, a diarreia pode ser classificada em duas grandes categorias: infecciosa e não infecciosa.
Diarreia infecciosa
A causa mais comum de diarreia aguda no mundo inteiro é a infecção por vírus, bactérias e parasitas. A transmissão ocorre principalmente por meio da via fecal-oral, com a ingestão de água ou alimentos contaminados. A maior parte das infecções é autolimitada ou de fácil tratamento. Quando há recursos disponíveis, são justificadas investigações específicas em caso de doença moderada a grave ou se houver risco para a saúde pública, tal como alto risco de propagação da doença para outras pessoas.[2] No mundo todo, a maioria dos casos de gastroenterite infecciosa aguda é viral, como demonstrado pelo fato de que coproculturas bacterianas em pacientes com diarreia aguda são positivas em apenas 1.5% a 5.6% dos pacientes.[15] No entanto, infecções bacterianas têm maior probabilidade de serem responsáveis por casos graves de diarreia.
Infecções bacterianas
Escherichia coli: é a causa mais comum de diarreia em países em desenvolvimento em comparação com países desenvolvidos. Ela é o agente mais comum que acarreta hospitalizações por diarreia infecciosa em países em desenvolvimento.[16] Geralmente, há epidemias dessa infecção no verão. Fontes de infecção incluem: carne bovina, suína, restaurantes fast food (hambúrgueres malcozidos), sidra, folhas de alface, leite, queijo, espinafre e brotos. Essa bactéria é mais frequente em pessoas muito jovens ou idosas e pode afetar o intestino delgado (E coli enterotoxigênica ou enteropatogênica). Ela é uma causa comum de diarreia do viajante (enterotoxigênica) e de diarreia em crianças, podendo afetar também o cólon (E coli enteroinvasiva, entero-hemorrágica e enteroagregativa). Essa infecção é complicada pela disenteria no subtipo enteroinvasivo. A E coli entero-hemorrágica (principalmente a E coli O157:H7) causa síndrome hemolítico-urêmica, com alta mortalidade associada.[17] Alguns estudos sugerem que o uso de antibióticos para tratar a E coli O157:H7 aumenta a incidência da síndrome hemolítico-urêmica ou de mortalidade.[18][19] No entanto, esse achado não é consistente entre os poucos ensaios clínicos. Sobretudo, não há evidências claras sobre o fato de os antibióticos serem benéficos ou prejudiciais.[20][21]
Campylobacter: em países desenvolvidos, esta infecção normalmente se dá pela ingestão de aves contaminadas e mal cozidas.[22]A Campylobacter é uma das duas doenças transmitidas por alimentos mais comuns nos EUA (a outra é por Salmonella). A diarreia pode ser aquosa ou sanguinolenta e está frequentemente associada a dor em cólica. Ela já foi associada a sérias complicações, como artrite reativa e a síndrome de Guillain-Barré.[23][24]
Salmonella: em países desenvolvidos, a salmonelose não tifoide é a principal causa de doenças de origem alimentar e uma causa comum de diarreia que acarreta cuidados ambulatoriais.[22]A Salmonella está mais comumente associada à ingestão de aves, ovos e laticínios. O paciente pode tornar-se um portador assintomático.
Shigella: esta é a causa clássica de diarreia colônica ou disentérica. A Shigella continua sendo um grande problema em creches e espaços institucionais. Essa infecção se apresenta com fezes sanguinolentas, febre, cólicas e tenesmo.
Clostridioides difficile: é uma das infecções hospitalares (nosocomiais) mais comuns, sendo uma causa frequente de morbidade e mortalidade entre os pacientes hospitalizados mais idosos. O C difficile coloniza o trato intestinal humano e, depois que a microbiota normal for alterada pela antibioticoterapia, pode causar colite pseudomembranosa. A doença é muitas vezes recorrente, o que pode se dever a alterações imunológicas do hospedeiro. O C difficile produz toxinas, que estão envolvidas na doença. Reação leucemoide e hipoalbuminemia, insuficiência renal e choque ocorrem em casos graves. A colectomia é necessária nos casos graves. O diagnóstico é feito pela detecção das toxinas A e B ou apenas B, teste de citotoxicidade celular ou detecção de C difficile toxigênica nas fezes.[25]
Yersinia: a infecção geralmente se dá pela ingestão de carne ou intestino de porco. Ela causa colite aguda ou crônica e pode mimetizar doença de Crohn ou apendicite aguda.
Aeromonas: é um isolado comum em pacientes assintomáticos, mas foi implicado como causa de diarreia, principalmente de diarreia do viajante.[26]
Plesiomonas: foi documentado em surtos de diarreia associados à água contaminada e a ostras que continham o micro-organismo.[27]
Listeria: é relativamente rara; há 0.1 a 10 casos de listeriose por 1 milhão de pessoas por ano, dependendo do país/região.[28] Geralmente, essa bactéria é transmitida por água ou laticínios contaminados. Ela pode crescer à temperatura do refrigerador.
Staphylococcus aureus: causa vômitos e, em alguns casos, diarreia em 4 a 8 horas após a ingestão de alimento contaminado com a toxina pré-formada.
Bacillus cereus: resulta de toxinas pré-formadas termoestáveis que causam os sintomas em até 6 horas após a ingestão. Em casos raros, a infecção causa necrose hepática aguda.[29]
Clostridium perfringens: causa diarreia aquosa decorrente de toxinas pré-formadas. A ingestão de esporos de C perfringens geralmente se dá pelo consumo de aves, carne e molho de carne. Em casos raros, essa infecção pode resultar em uma complicação séria: enterite necrosante, uma necrose hemorrágica do jejuno.[30]
Vibrio cholerae: a característica marcante desta infecção é a diarreia intensa, volumosa, não sanguinolenta, secretora, desidratante e induzida por toxinas. A infecção pode ser assintomática; presente como uma doença leve, indistinguível de gastroenterite; ou presente como uma doença grave (cólera gravis), levando à deterioração rápida e grave de um indivíduo saudável. Essa infecção é diagnosticada pela detecção de bactérias ou toxina colérica nas fezes. Essa infecção pode ser prevenida com vacinas.[5][31]
Klebsiella oxytoca: foi associada a alguns casos de colite hemorrágica relacionada a antibióticos e não ligada ao C difficile.[32]
Infecções virais
Rotavírus: a principal causa conhecida de gastroenterite viral grave em bebês e crianças pequenas em todo o mundo. Essa infecção pode ser prevenida com vacinas.[33] Ela causa diarreia que resulta em depleção de volume em crianças e adultos jovens. O pico dessa infecção ocorre nos meses de frio.
Norovírus: esta é uma causa importante da gastroenterite viral epidêmica. Os norovírus são a causa mais comum de surtos de gastroenterite não bacteriana nos EUA.[34] Estudos de vigilância sobre doenças de origem alimentar indicam que dois terços delas são causados por norovírus.[35] Ele está se tornando a principal causa de atendimento médico devido a gastroenterites agudas em países com altos níveis de cobertura vacinal para rotavírus.[36]
Adenovírus: o adenovírus entérico é a segunda maior causa viral de diarreia depois do rotavírus, especialmente em creches.
Astrovírus: responsável por 4% a 7% dos casos de diarreia em creches, é uma causa conhecida de doença nosocomial em crianças pequenas.[37][38] Ele também atinge pessoas imunocomprometidas e pacientes mais idosos internados.[39] Diferentemente do norovírus, o astrovírus é uma causa incomum de gastroenterite epidêmica.
Infecção por COVID-19 (síndrome respiratória aguda grave por coronavírus 2 [SARS-CoV-2]): sintomas gastrointestinais são comuns na infecção por COVID-19 e a diarreia pode ser o único sintoma manifesto. A diarreia associada à COVID-19 pode ser grave, mas geralmente é leve e autolimitada.[40]
Infecções parasitárias/protozoárias
Entamoeba histolytica: anualmente, em todo o mundo, cerca de 40 a 50 milhões de pessoas desenvolvem colite ou doenças extraintestinais, com 40,000 mortes.[41] Essa infecção é comumente assintomática. A amebíase clínica costuma ter início subagudo, geralmente de 1 a 3 semanas. Os sintomas variam de diarreia leve a disenteria intensa, produzindo dor abdominal (12% a 80%), diarreia (94% a 100%) e fezes com sangue (94% a 100%). A perda de peso é relatada em quase 50% dos pacientes.[42] Também é possível haver febre.
Giardia lamblia: causa tanto infecções epidêmicas quanto esporádicas e é um importante agente etiológico da diarreia causada por água ou alimentos contaminados, de surtos em creches e da diarreia em viajantes internacionais ou pessoas adotadas de outros países.[43] É mais comum em pacientes com deficiência de imunoglobulina A. O diagnóstico é pelo exame de fezes para detecção do antígeno Giardia (mais sensível que o teste para detecção de ovos e parasitas).
Cryptosporidium: é conhecido desde 1976, mas tornou-se mais prevalente com o aumento na prevalência do vírus da imunodeficiência humana/síndrome de imunodeficiência adquirida (HIV/AIDS), com o aumento no número de transplantes e necessidade de imunossupressão e com o envelhecimento da população.[44] A diarreia pode ser aguda ou crônica; transitória, intermitente ou contínua; e escassa ou volumosa com até 25 L/dia de fezes aquosas.
Microsporidiose: essa é uma causa menos conhecida de diarreia do viajante em hospedeiros normais. Ela também está associada a diarreia crônica em pacientes imunossuprimidos.
Cyclospora: este organismo é uma das causas da diarreia do viajante prolongada.[45] Pacientes infectados podem ter um único episódio autolimitado, mas é comum haver um decurso de aumento e diminuição dos sintomas gastrointestinais, que podem durar semanas ou meses.[46]
Parasitas helmintos (vermes), exceto os Strongyloides (em hospedeiros imunocomprometidos), raramente causam diarreia.
Diarreia não infecciosa
Medicamentos: vários medicamentos estão associados à diarreia aguda. Isso inclui, mas não está limitado a, antiácidos contendo magnésio, antiarrítmicos (por exemplo, quinidina), antibióticos (como causa primária ou por causar infecção por C difficile), anti-hipertensivos (betabloqueadores, hidroclorotiazida), anti-inflamatórios (por exemplo, anti-inflamatórios não esteroidais [AINEs], sais de ouro), agentes antineoplásicos (incluindo inibidores do checkpoint imunológico, que podem causar diarreia e colite), medicamentos antirretrovirais, agentes redutores de ácido (por exemplo, antagonistas H2, inibidores da bomba de prótons), colchicina, análogos da prostaglandina (por exemplo, misoprostol), teofilina, vitaminas e suplementos minerais, medicamentos fitoterápicos, metais pesados e uso excessivo de medicamentos para constipação.[47][48] O mecanismo difere entre as classes de medicamentos. Acredita-se que a maioria destes medicamentos possam causar diarreia secretória.
A diarreia aguda pode ser uma manifestação inicial da diarreia crônica, como observado na doença inflamatória intestinal, na isquemia intestinal e nas lesões por radiação.
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