Abordagem

A avaliação inclui quatro componentes principais:[26][27]

  1. História

  2. Exame físico

  3. Avaliação psicossocial

  4. Investigações.

A sensibilidade da história e exame físico é baixa. Uma dor na região subcostal direita, epigástrica, flanco direito ou esquerdo e na região central ou inferior pode ser útil para identificar os órgãos envolvidos.[28] ​O exame físico deve ser integrado com os achados da história e outras informações colaterais para focar a investigação diagnóstica nos possíveis diagnósticos.

A dor pode surgir de qualquer sistema, incluindo os tratos geniturinário, gastrointestinal e ginecológico. A etiologia da dor abdominal crônica é tão ampla que apenas as causas mais comuns serão tratadas aqui.

Avaliação dos sintomas

A localização da dor a partir das vísceras abdominais, principalmente o intestino delgado, é imprecisa. A maior parte do trato digestivo é percebida na linha média por causa da sua inervação simétrica. As exceções incluem as patologias do cólon ascendente/descendente e da vesícula biliar, que podem se apresentar com dor de um lado em decorrência de inervação unilateral.

A localização da dor e a percepção do paciente da distribuição anatômica pode ajudar algumas vezes a restringir o diagnóstico diferencial e direcionar a avaliação diagnóstica:

  • Dor epigástrica e na parte superior do abdome pode indicar origem esofágica (por exemplo, refluxo gastroesofágico), estomacal (por exemplo, gastrite, gastroparesia), duodenal (por exemplo, úlcera), da vesícula biliar (por exemplo, colecistite) ou pancreática (por exemplo, pancreatite).

  • A dor na parte inferior do abdome pode indicar envolvimento do intestino grosso, e a lateralização pode auxiliar a distinguir entre o cólon descendente/sigmoide (por exemplo, diverticulite do lado esquerdo) e ascendente/ceco (por exemplo, ileocolite de Crohn) ou apêndice (por exemplo, apendicite).

  • A dor pélvica pode sugerir origem ginecológica (por exemplo, cistos ovarianos, doença inflamatória pélvica [DIP]) ou síndrome da dor pélvica crônica (por exemplo, cistite intersticial, endometriose, síndrome uretral ou alterações e disfunção dos músculos pélvicos).

  • O ponto de dor máxima localizado no abdome anterior pode indicar dor na parede abdominal crônica ou síndrome do encarceramento dos nervos cutâneos abdominais.[21][29]​​[30]

A dor localizada também pode aumentar em locais específicos como os rins, ureteres e ovários, e de uma fonte focal de irritação peritoneal.

A informação sobre os fatores exacerbantes e de alívio pode fornecer outras pistas:

  • Dor agravada pela alimentação (dor pós-prandial) pode indicar úlcera gástrica, pancreatite crônica, cálculos biliares, isquemia abdominal (também denominada angina abdominal) ou transtornos funcionais como síndrome do intestino irritável, gastroparesia, dispepsia funcional ou síndrome do desconforto pós-prandial (saciedade pós-prandial).

  • Dor aliviada pela alimentação sugere úlcera péptica duodenal.

  • Dor aliviada pela evacuação pode indicar síndrome do intestino irritável.[31]

  • Dor associada a ciclos menstruais sugere origem ginecológica. Outros sintomas de dispareunia, dismenorreia, dor ao evacuar e infertilidade sugerem endometriose.[32]

  • Dor associada à urgência urinária e micção frequente sugere cistite intersticial.[33]

  • Dor no abdome anterior que é acentuada por atividade física pode indicar dor na parede abdominal crônica ou síndrome do encarceramento dos nervos cutâneos abdominais.[29][34]

Os médicos devem rastrear os sintomas associados da dor, incluindo:

  • Febre

  • Calafrios

  • Sudorese noturna

  • Náuseas e vômitos

  • Diarreia

  • Constipação

  • Sangue nas fezes[35]

  • Anemia[35]

  • Alteração no apetite ou hábito intestinal

  • Perda/ganho de peso.

A duração e a frequência dos sintomas fazem parte dos critérios diagnósticos para a maioria dos distúrbios da função gastrointestinal. Os critérios diagnósticos para a síndrome do intestino irritável e a dispepsia funcional incluem o início dos sintomas pelo menos 6 meses antes do diagnóstico e a presença de sintomas nos 3 meses anteriores.[31][36]

Exame físico

O exame físico deve focar primeiro nos sinais vitais. Febre, taquicardia, taquipneia e hipotensão sugerem doença aguda que requer avaliação urgente.

Um exame de cabeça e pescoço é útil para sinais inespecíficos de patologia intra-abdominal, incluindo:

  • Redução da musculatura temporal, olhos encovados e clavículas proeminentes, sugerindo perda de peso significativa

  • Membranas mucosas secas, indicando depleção de volume

  • Esclera ictérica, indicando doença hepatobiliar

  • Conjuntiva pálida, sugerindo anemia.

A doença vascular periférica é sugerida pela redução dos pulsos e pode coexistir com a angina intestinal ou a isquemia mesentérica. Uma dor à inspiração profunda sugere dor referida dos pulmões, dor no quadrante superior esquerdo, ou no direito.

Em muitos casos, o exame físico não apresenta nada digno de nota, mas dor à descompressão brusca, defesa ou sensibilidade na palpação requer consideração urgente. A localização precisa da dor no abdome anterior com sinal de Carnett positivo (ou seja, aumento da dor/sensibilidade na repalpação durante a contração dos músculos abdominais, sugerindo origem na parede abdominal) pode ajudar na diferenciação entre dor na parede abdominal e patologia intra-abdominal.[21][29][30]

O exame cuidadoso do reto e o exame pélvico são parte de uma avaliação completa. Sangramento, diarreia, secreção/muco, sensibilidade, massas retais ou obstrução podem fornecer outras pistas importantes para o processo da doença subjacente. Em mulheres com dor pélvica/na parte inferior do abdome, deve-se considerar o exame ginecológico.

O exame físico deve incluir a pele e a boca para achados inespecíficos como úlceras, vesículas, angioma aracniforme, sangramento ou hematoma, ou lesões específicas (por exemplo, eritema nodoso).

A cintura pélvica, a coluna lombar e o tórax (costelas e coluna) devem ser examinados, pois podem fornecer pistas sobre sintomas erroneamente atribuídos aos órgãos abdominais.

Avaliação psicossocial

A associação entre a dor abdominal crônica e uma história de transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), abuso, somatização, ansiedade e depressão é bem conhecida.​[37]​​​[38] Além disso, a relação e o funcionamento familiar podem ser fatores importantes na avaliação da incapacidade relacionada à dor, principalmente em crianças e adolescentes.[39] A avaliação de fatores psicossociais pode ajudar a reduzir investigações desnecessárias, determinar um plano de tratamento apropriado e influenciar no desfecho do manejo.

O transtorno afetivo pode tanto resultar da experiência da dor crônica quanto contribuir para ela. O quadro clínico, a gravidade dos sintomas e a resposta ao tratamento podem variar de acordo com anormalidades no estado mental.[40]

A flutuação dos sintomas e o estado mental devem ser monitorados rigorosamente.

Investigações

Algoritmos específicos para a investigação diagnóstica da dor abdominal crônica não existem. Investigações apropriadas devem ser adaptadas à história e aos achados do exame físico e ser realizadas caso a caso. Na ausência de características alarmantes, testes laboratoriais e de imagem devem ser solicitados de forma conservativa e custo-efetiva.

Investigações laboratoriais

Deve-se fazer perguntas ao paciente sobre investigações prévias já que, em decorrência da cronicidade de seus sintomas, muitos pacientes já foram investigados e as informações existentes podem estar disponíveis para análise.

Os exames laboratoriais padrões incluem:

  • Hemograma completo com diferencial para exame de infecção ou anemia.[35] A contagem de plaquetas e a velocidade de hemossedimentação podem significar um processo inflamatório.

  • Eletrólitos, glicose, creatinina e ureia séricos para causas metabólicas.

  • Testes da função hepática, lipase e amilase, principalmente em pacientes com dor na parte superior do abdome.

  • Urinálise e urocultura para ajudar a descartar infecção do trato urinário e cistite intersticial.[33]

Outros exames laboratoriais com base em cada caso incluem:

  • Exames de fezes para cultura, ovos e parasitas e antígeno da Giardia devem ser realizados se houver suspeita de causa bacteriana, parasitária ou protozoária da dor abdominal.

  • O teste de calprotectina fetal é um biomarcador não invasivo e validado, que pode ser útil para diferenciar a doença inflamatória intestinal (DII) de condições não-DII (inclusive síndrome do intestino irritável) em adultos e crianças. Ele permite a avaliação da gravidade e da evolução da inflamação intestinal.[41][42]

  • Teste de gravidez urinário ou sérico: esse exame deve ser realizado antes das investigações por radiografia ou endoscopia.

  • Sorologia para Helicobacter pylori nos pacientes com sintomas no trato gastrointestinal superior, incluindo saciedade precoce e desconforto epigástrico (isto é, sintomas dispépticos).

  • Testagem sorológica incluindo imunoglobulina A-transglutaminase tecidual (IgA-tTG), imunoglobulina G-transglutaminase tecidual (IgG-tTG), IgG contra peptídeos de gliadina desamidados (DGPs) e anticorpo antiendomísio (EMA) para os pacientes com suspeita de doença celíaca.[43]

  • Swabs vaginais, antígeno prostático específico e citologia da urina podem ser úteis em certos casos de dor pélvica e de dor na porção inferior do abdome.

  • Avaliação para câncer colorretal: as diretrizes do Reino Unido e dos EUA relatam limiares de risco para a testagem de pacientes sintomáticos.[44][45]​​​​​​[46] As diretrizes dos EUA recomendam que adultos com idade <50 anos com sintomas de sangramento colorretal sejam submetidos a colonoscopia ou avaliação suficiente para determinar a causa do sangramento.[44]​ As diretrizes do Reino Unido recomendam determinados testes imunoquímicos quantitativos fecais (FITs) como base para o encaminhamento nos casos de suspeita de câncer colorretal em adultos:[45][46]

    • idade de 40 anos ou mais com perda de peso inexplicada e dor abdominal

    • idade abaixo de 50 anos com sangramento retal e dor abdominal inexplicada

    • idade de 50 anos ou mais com dor abdominal inexplicada.

Consulte as diretrizes para obter uma lista exaustiva dos sinais e/ou sintomas que podem suscitar uma avaliação para a presença de câncer colorretal.[44][45][46]​​

Endoscopia

Considerada em qualquer paciente >50 anos de idade com dor abdominal crônica e indicada em alguns indivíduos que tiverem sintomas específicos concomitantes.

  • A colonoscopia (e/ou FIT) é indicada em pacientes com suspeita de câncer colorretal. Consulte as diretrizes para obter uma lista exaustiva de sinais e/ou sintomas sugestivos de câncer colorretal.[44][45][46]

  • É indicada realização de endoscopia digestiva alta se a dor estiver localizada no abdome superior, principalmente se houver sintomas do trato gastrointestinal superior (saciedade precoce, náuseas, vômitos) ou se houver elevada suspeita de doença celíaca.[43]

  • O National Institute for Health and Care Excellence (NICE) do Reino Unido recomenda que pacientes com 55 anos ou mais com dor na parte superior do abdome e perda de peso devem realizar uma endoscopia digestiva alta com urgência (em até 2 semanas).[45] Aqueles com 55 anos ou mais com dor na parte superior do abdome e contagem plaquetária elevada ou níveis baixos de hemoglobina ou náuseas e vômitos devem realizar uma endoscopia digestiva alta não urgente.[45]

Exames por imagem

Investigações adicionais dependem dos achados clínicos.

  • A ultrassonografia abdominal superior e/ou TC abdominal pode ser indicada para avaliar o quadrante superior direito ou dor epigástrica, principalmente se forem encontradas enzimas pancreáticas ou hepáticas elevadas.[47][48]

  • Indica-se a ultrassonografia abdominal pélvica e transvaginal e/ou uma ultrassonografia transretal para a avaliação da dor na parte inferior do abdome.​[49] As diretrizes do Reino Unido recomendam que as mulheres com medição de Ca125 sérico ≥35 UI/mL realizem uma ultrassonografia do abdome e da pelve.[45]

  • A tomografia computadorizada (TC) e/ou RNM pode ajudar a avaliar alças intestinais dilatadas; descartar obstrução intestinal parcial; detectar anormalidades em outros órgãos abdominais (por exemplo, pâncreas, fígado, rins); identificar processos inflamatórios (por exemplo, doença inflamatória intestinal, diverticulite, abscessos); investigar massas retroperitoneais ou pélvicas; e identificar anormalidades anatômicas congênitas (por exemplo, cisto de duplicação duodenal).[50][51] Uma TC urgente (dentro de 2 semanas) deve ser considerada em pacientes com 60 anos ou mais com dor abdominal e perda de peso, para avaliar o câncer de pâncreas. Se a TC urgente não estiver disponível, uma ultrassonografia urgente deve ser realizada.[45]​​

  • A ultrassonografia abdominal pode ser usada para determinar a presença de aderências pós-cirúrgicas entre o intestino e a parede abdominal.[52]​ A RNM pode ser usada para visualizar as aderências entre as vísceras; no entanto, há a tendência de se diagnosticarem aderências em excesso.[52] Não há evidências suficientes para apoiar o uso da TC como modalidade diagnóstica para aderências.[52] Deve-se considerar a possibilidade de estudo de esvaziamento gástrico em pacientes com sintomas que sugiram gastroparesia.[53]

Cirurgia

  • A laparoscopia abdominal pode ser considerada em pacientes adequados com dor abdominal crônica, nos quais houver suspeita de etiologia orgânica. A laparoscopia diagnóstica pode ser usada para identificar causas orgânicas, como adesões intestinais, hérnias internas, linfonodos mesentéricos aumentados, endometriose e apendicite crônica.[54]

Distúrbios gastrointestinais funcionais

Se todas as investigações forem negativas, o diagnóstico provável é um distúrbio gastrointestinal funcional (DGIF), atualmente também chamado de distúrbio da interação intestino-cérebro (DIIC).[55]​ O diagnóstico de transtornos funcionais específicos depende da presença e das características de dor abdominal e outros sintomas associados. A síndrome do intestino irritável e a dispepsia funcional são causas comuns de dor abdominal crônica em adultos.[12]

​Se houver presença de dor abdominal, independentemente de outros sintomas intestinais ou distúrbios intestinais sensitivos e motores, a síndrome da dor abdominal mediada centralmente (SDAMC) é um possível diagnóstico.[25] O diagnóstico é clínico e caracteriza-se por um forte componente central de dor que não é explicada por nenhum outro distúrbio GI estrutural ou funcional, ou outras afecções clínicas.[25] Acredita-se que a SDAMC (antes chamada de síndrome da dor abdominal funcional) resulte da sensibilização central, com desinibição dos sinais de dor, em vez de uma maior excitabilidade aferente.[25]

A dor decorrente da SDAMC normalmente é localizada no abdome, em vez da região pélvica, e não está relacionada com o consumo de alimentos ou a defecação. A dor abdominal é recorrente, contínua ou quase contínua, associada com a perda de atividades diárias, e deve estar presente por, pelo menos, 6 meses antes do diagnóstico.[25]

A síndrome do intestino narcótico, outra entidade de distúrbios de dor GI mediados centralmente, refere-se à hiperalgesia GI induzida por opioides. Caracteriza-se por um aumento paradoxal da dor abdominal com doses contínuas ou crescentes de narcóticos.[25][56]

​Assim como em outros transtornos gastrointestinais funcionais, a SDAMC e a síndrome do intestino narcótico não podem ser explicadas por distúrbios estruturais ou metabólicos, e acredita-se que estejam relacionadas com alterações na percepção da dor e nos circuitos de modulação da dor.[25][57]

É importante reconhecer que a DGIF/DIIC ou a SDAMC podem estar presentes e coexistir em pacientes com doenças GI orgânicas conhecidas, como DII quiescente ou doença celíaca. A identificação e o manejo dos sintomas GI funcionais nessas condições pode ser útil para direcionar o tratamento adequado e evitar testes diagnósticos e tratamentos desnecessários.[58]


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