Abordagem

A avaliação do trauma abdominal geralmente é difícil devido a fatores de confundimento, como estado mental alterado, lesões extra-abdominais simultâneas ou a falta de uma história.[1] A falha ou atraso no diagnóstico de lesão abdominal pode acarretar desfechos desfavoráveis aos pacientes.[17] É necessária uma abordagem organizada em equipe para a investigação diagnóstica de trauma abdominal, já que a ressuscitação e a avaliação de outros sistemas ocorrem simultaneamente. A abordagem diagnóstica varia de acordo com a estabilidade hemodinâmica do paciente. As prioridades na avaliação do trauma abdominal são reconhecer a instabilidade hemodinâmica e determinar a necessidade de laparotomia de urgência.

História clínica

É necessário que se faça uma tentativa dedicada para se obter a história clínica e a descrição do evento traumático do próprio paciente, da equipe médica de emergência, da polícia ou de familiares, na medida em que possam fornecer informações que influenciem a investigação diagnóstica.

  • Uma descrição do evento traumático ajuda o entendimento do mecanismo da lesão. Se o paciente esteve envolvido em um acidente com veículo automotor, é importante conhecer a velocidade em que o automóvel estava se movimentando, o nível de danos na cena do acidente, o tempo de remoção da vítima, o uso de cintos de segurança ou airbags e se houve alguma morte no acidente. Essas informações podem ser úteis para se fazer uma estimativa da quantidade de energia transferida ao paciente durante o evento.

  • As informações sobre o estado clínico do paciente e o nível de ressuscitação a ele fornecido no caminho para o hospital ajudam na estimativa do estado hemodinâmico atual do paciente. A suspeita de sangramento ativo é maior em pacientes hipotensos que já receberam múltiplos litros de fluido que naqueles em que a ressuscitação não foi aplicada.

As histórias médica e medicamentosa anteriores são úteis para estabelecer o nível inicial da saúde do paciente.

  • É importante considerar a causa do evento traumático para evitar que uma condição clínica subjacente não seja reconhecida e deixe de ser tratada. Por exemplo, a hipoglicemia em um paciente diabético ou um ataque cardíaco em um paciente com doença arterial coronariana pode ter sido o fator causador do evento traumático.

  • Saber se um paciente portador de sangramento está sendo tratado com medicamento anticoagulante pode afetar a quantidade, o tipo e o momento da transfusão de hemoderivados. Pacientes que recebem medicamentos anti-hipertensivos ou medicamentos para o controle da frequência cardíaca não têm a mesma resposta fisiológica ao sangramento que pacientes que não tomam tais medicamentos.

Exame físico

Embora o exame físico seja essencial na avaliação de trauma abdominal, muitos estudos têm demonstrado que ele não é confiável em coortes de pacientes de trauma com lesão neurológica (cérebro ou medula espinhal), naqueles que apresentam lesões dolorosas por distração, como fraturas de ossos longos ou pélvicas, ou nos que têm álcool ou outras substâncias intoxicantes em seus organismos.[23][30][31]

A avaliação do abdome começa com a inspeção de sinais externos de lesão, como ferimentos abertos ou contusões significativas da parede abdominal. A palpação do abdome é usada para avaliar a sensibilidade e sinais peritoneais. Muitos pacientes com lesão abdominal, mas não todos, se queixam de sensibilidade, podendo haver sinais peritoneais se houver lesão intestinal. Deve ser observado se o sangue presente na cavidade peritoneal não causa peritonite.

Além do exame básico, no traumatismo penetrante é útil avaliar os ferimentos de entrada e saída quanto à presença de sangramento ativo ou a projeção de omento ou vísceras para o exterior. A exploração do local de um ferimento por arma branca em um paciente hemodinamicamente estável sem sinais de peritonite é útil para avaliar a fáscia abdominal. Se a fáscia abdominal anterior estiver intacta e o paciente permanecer estável, é seguro dar alta ao paciente sem investigação adicional.[32]

Avaliação do estado hemodinâmico

Na avaliação inicial, menos da metade dos pacientes com hemoperitônio significativo apresenta achados importantes ao exame físico. Os pacientes jovens e saudáveis apresentam uma resposta fisiológica compensatória à hemorragia e, portanto, toleram grandes volumes de sangramento enquanto permanecem relativamente assintomáticos, sem manifestar sinais comuns, como hipotensão ou alterações no estado mental. Os pacientes tratados com betabloqueadores ou idosos que apresentam redução da resposta compensatória à hemorragia podem não ficar taquicárdicos nas fases iniciais do choque. Existe um perigo maior de diagnóstico tardio do choque nestes pacientes em decorrência da apresentação de sinais e sintomas atípicos.

Em todos os pacientes, o ponto principal para o reconhecimento de choque hemorrágico é a integração dos mecanismos da lesão, da sintomatologia atual e das alterações nos sinais vitais com relação à intensidade da ressuscitação por fluidoterapia intravenosa recebida pelo paciente.

Os pacientes com trauma abdominal que apresentam sinais de choque hemorrágico respondem à ressuscitação por fluidoterapia intravenosa de uma dentre três maneiras:

  • Os sinais vitais normalizam com a fluidoterapia intravenosa. A maioria desses pacientes sofreu perda de volume intravascular no sangramento, que foi interrompida em decorrência de coagulação e tamponamento efetivos.

  • Os sinais vitais respondem temporariamente à fluidoterapia intravenosa. Esses pacientes provavelmente apresentam sangramento intra-abdominal contínuo e geralmente necessitam de cirurgia ou, possivelmente, de angioembolização para controlar a hemorragia.

  • Os sinais vitais não respondem à fluidoterapia intravenosa. O estado clínico desses pacientes piora com a progressão da ressuscitação agressiva. Esses pacientes geralmente apresentam uma grande lesão arterial intra-abdominal ou uma lesão grave de órgão sólido e necessitam de controle cirúrgico imediato da hemorragia para evitar a morte.

Avaliação de trauma abdominal contuso hemodinamicamente estável

Pacientes hemodinamicamente estáveis com trauma abdominal contuso e sem queixas de dor ou sensibilidade abdominal e com um exame físico confiável (ou seja, sem lesões por distração ou traumatismos cranioencefálicos) geralmente não necessitam de tomografia computadorizada (TC) do abdome para investigação adicional.[21] No entanto, a ausência de desconforto abdominal não elimina completamente a possibilidade de lesão intra-abdominal.[33] Foram estudadas combinações de achados clínicos para prever a presença de lesão intra-abdominal.[34][35] Quando há outros fatores que aumentam a possibilidade de lesão intra-abdominal, como lesão não abdominal significativa (por exemplo, fraturas femorais, pélvicas, escapulares ou vertebrais) que sugiram um forte mecanismo de lesão, a TC abdominal é recomendada para avaliação da lesão intra-abdominal associada.[30][31]

Pacientes com desconforto abdominal, contusões na parede abdominal ou exame físico não confiável em decorrência de traumatismo cranioencefálico, intoxicação ou outra lesão causada por distração necessitam de investigação adicional focada por ultrassonografia na avaliação do traumatismo (focused assessment with sonography for trauma, FAST) ou por TC abdominal para diagnosticar uma possível lesão intra-abdominal. O FAST tem a maior razão de probabilidade para a presença de lesão intra-abdominal. A TC do abdome é altamente sensível para o diagnóstico de lesão em órgão sólido, lesão vascular e fraturas pélvicas, e é o estudo radiográfico de escolha para descartar lesão intra-abdominal. Ela é menos eficaz no diagnóstico de lesões diafragmáticas ou intestinais. As desvantagens do exame de TC abdominal são que ele expõe o paciente à radiação e ao contraste intravenoso, é caro e relativamente demorado, além de exigir que o paciente seja transferido para um scanner.[36]

A presença de líquido intraperitoneal livre em uma TC abdominal, sem evidência de lesão a órgão sólido, aumenta a preocupação de lesão de um órgão oco. Nesse grupo de pacientes, a lavagem peritoneal diagnóstica (LPD) pode ser útil.[26]

A LPD consiste na realização de uma pequena incisão na linha média abaixo do umbigo e no uso de uma agulha e um pequeno cateter para aspirar o fluido intraperitoneal para determinar a presença de sangue ou bile. Se o aspirado contém 10 mL de sangue macroscópico ou bile, é indicada uma laparotomia exploratória. Na ausência de sangue macroscópico ou bile, a LPD requer a infusão de 1 litro de fluido no peritônio, seguida de drenagem. O efluente deve ser enviado para um laboratório e analisado. Os critérios laboratoriais para uma LPD positiva são:

  • >1.0 × 10¹² eritrócitos/L (>100,000 eritrócitos/mm³)

  • >0.50 × 10⁹ leucócitos/L (>500 leucócitos/mm³)

  • Presença de bactérias, bile ou partículas alimentares.

Embora a LPD em pacientes estáveis tenha utilidade limitada, ela é útil em pacientes com outros fatores que aumentam a suspeita de lesão intra-abdominal. Se for realizada uma TC abdominal de acompanhamento, o líquido adicional no abdome, secundário à LPD, pode confundir a imagem. Em pacientes estáveis, a LPD consiste em um excelente estudo adjuvante quando não puderem ser realizados exames abdominais em série.[26] Um exemplo desse fato é o paciente obnubilado que apresenta líquido livre na TC abdominal sem lesão de órgão sólido identificada. No paciente consciente, exames físicos em série e a presença de sinais peritoneais ou o agravamento da dor abdominal podem significar a necessidade de uma cirurgia.

A avaliação laboratorial é útil para a obtenção do nível de hematócrito basal, pois muitos pacientes com trauma abdominal contuso estarão hemodinamicamente estáveis, mas terão evidências de algum sangramento intra-abdominal de órgão sólido na TC abdominal. Esses pacientes deverão ser hospitalizados, sendo submetidos a exames abdominais em série e avaliação dos níveis de hematócrito para observar a presença de sangramento contínuo. Se houver diminuição constante do nível de hematócrito, poderá ser necessária uma transfusão de sangue ou uma intervenção para controlar o sangramento. Um perfil metabólico basal é útil para determinar a linha basal da função renal. As enzimas pancreáticas ocasionalmente são úteis no diagnóstico de lesão pancreática, embora não constituam um estudo sensível como parte da investigação inicial do trauma. A toxicologia pode ser útil na avaliação de um paciente com estado mental alterado.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Tomografia computadorizada (TC) mostrando laceração hepáticaColeção do MetroHealth Medical Center [Citation ends].com.bmj.content.model.assessment.Caption@5fb0bd69[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Tomografia computadorizada (TC) mostrando líquido intraperitonealColeção do MetroHealth Medical Center [Citation ends].com.bmj.content.model.assessment.Caption@4b8928ae

Avaliação de trauma abdominal contuso hemodinamicamente instável

Em pacientes hemodinamicamente instáveis com trauma abdominal contuso, a avaliação e a ressuscitação ocorrem simultaneamente. O objetivo da avaliação é determinar o local do sangramento e, ao mesmo tempo, iniciar a terapia adequada para o controle do mesmo. Pacientes hemodinamicamente instáveis necessitam, pelo menos, de dois acessos intravenosos periféricos de grosso calibre, para ressuscitação agressiva com hemoderivados e fluidos, e um cateter urinário de Foley, para permitir o monitoramento preciso do débito urinário. É também importante garantir que o paciente tenha vias aéreas desobstruídas o tempo todo, pois os pacientes geralmente apresentam redução do nível de consciência e podem piorar rapidamente.[14]

Se for difícil estabelecer os acessos intravenosos periféricos, recomenda-se inserção de um cateter femoral ou subclávio curto de grosso calibre. Cateteres centrais longos de duplo ou triplo lúmen devem ser evitados, pois o fluido não pode ser infundido rapidamente através deste tipo de cateter. Caso se preveja a necessidade de uma transfusão, deve-se extrair sangue para a realização de prova cruzada e preparar várias unidades de concentrados de eritrócitos. Pacientes com choque hemorrágico profundo sugerido por hipotensão extrema e estado mental gravemente alterado (ou seja, coma), necessitam de transfusão sanguínea imediata sem prova cruzada.

As radiografias realizadas no setor de trauma são úteis para descartar hemotórax ou fratura pélvica.[37] O exame FAST é útil para diagnosticar rapidamente a presença de hemorragia intra-abdominal.[23][24] O exame FAST usa um aparelho de ultrassonografia à beira do leito para fornecer imagens do quadrante superior direito, do quadrante superior esquerdo e da pelve para avaliar a hemorragia intra-abdominal.[21] Em 2006, um estudo realizado no Reino Unido constatou que o exame FAST tem uma sensibilidade de 78% e uma especificidade de 99% na detecção de hemorragia intra-abdominal.[38] Uma revisão sistemática constatou que a presença de líquido intraperitoneal ou lesão de órgão na ultrassonografia é mais precisa que a história e os achados do exame físico na avaliação diagnóstica para lesões intra-abdominais após trauma abdominal contuso.[33] Se o exame FAST não estiver disponível ou não for confiável, pode ser executada uma lavagem peritoneal diagnóstica (LPD) para avaliação do sangramento intraperitoneal.[26]

Pacientes que apresentarem um volume significativo de líquido intra-abdominal livre de acordo com o exame FAST (ou LPD) e estiverem hemodinamicamente instáveis devem se submeter a cirurgia urgente.[39]

Avaliação do trauma abdominal penetrante

A maioria dos casos de trauma abdominal penetrante estão relacionados a ferimentos por armas de fogo e armas brancas. Após a avaliação das condições das vias aéreas, da respiração e da circulação, é importante expor o paciente por completo para identificar todos os ferimentos.

Pacientes que apresentam sinais de peritonite ou instabilidade hemodinâmica necessitam laparotomia urgente.[40] Portanto, eles devem ser submetidos a preparação imediata para cirurgia, com vias aéreas desobstruídas, acessos intravenosos periféricos de grosso calibre, cateter de Foley e exames laboratoriais pré-operatórios, incluindo tipo sanguíneo e prova cruzada.

Pacientes estáveis podem se submeter a avaliações adicionais de forma oportuna. Aqueles que tiverem ferimentos por arma branca na parede abdominal necessitam da exploração do ferimento para avaliar a perfuração da fáscia da parede abdominal. A exploração local do ferimento é executada através da preparação do campo e da limpeza do ferimento e da pele circundante. Após a injeção de anestésico local, a pele e os tecidos subcutâneos sofrem uma incisão suficientemente grande para permitir a visualização da fáscia da parede abdominal. Se a fáscia anterior não tiver sido acometida, pode-se presumir com segurança que os órgãos intra-abdominais não sofreram lesão. Pacientes com ferimentos que penetram na fáscia abdominal necessitam de avaliação adicional e observação estrita através de exames abdominais em série, laparoscopia para descartar lesão de órgão intra-abdominal ou laparotomia imediata.[32]

Para lesões por arma branca no flanco ou costas, é necessário obter uma tomografia computadorizada (TC) do abdome para descartar lesões intra-abdominais (por exemplo, lesões colônicas, esplênicas ou renais). Geralmente, ferimentos por arma branca no flanco acarretam lacerações renais que são geralmente tratadas de forma não cirúrgica.

Ferimentos por arma de fogo no abdome geralmente são tratados cirurgicamente independentemente da condição clínica do paciente.[40] Devem ser solicitadas radiografias do tórax e abdome com marcadores metálicos (por exemplo, clipes de papel) nos ferimentos de entrada e de saída (caso haja), para determinar a trajetória da bala. As balas podem percorrer caminhos inesperados através do corpo e é importante descartar lesões torácicas antes da exploração cirúrgica do abdome. O conhecimento da trajetória da bala também é útil para o cirurgião prognosticar as lesões intra-abdominais.

Em centros de trauma com considerável experiência em traumatismo penetrante, tem havido algum interesse na observação de determinados pacientes com ferimentos por arma de fogo, principalmente na região toracoabdominal direita, em vez de dar preferência à laparotomia imediata. [ Cochrane Clinical Answers logo ] Esse procedimento traz o risco de se ignorarem importantes lesões intra-abdominais ou retroperitoneais e deve ser muito cautelosamente cogitado em locais onde ferimentos por armas de fogo são tratados apenas ocasionalmente. Como foi demonstrado que o manejo não cirúrgico em caso de lesão hepática isolada é bem-sucedido, uma TC abdominal com contraste intravenoso pode ser cogitada em pacientes estáveis com trajetórias de balas sugestivas de tal lesão.[41][Figure caption and citation for the preceding image starts]: Vista laparoscópica da lesão diafragmáticaColeção do MetroHealth Medical Center [Citation ends].com.bmj.content.model.assessment.Caption@22c56f27[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Reparo laparoscópico do diafragmaColeção do MetroHealth Medical Center [Citation ends].com.bmj.content.model.assessment.Caption@57231be[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Tomografia computadorizada (TC) mostrando laceração esplênicaColeção do MetroHealth Medical Center [Citation ends].com.bmj.content.model.assessment.Caption@40cb9bcf

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